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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.31 Rio de Janeiro Oct. 2015

 

TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS: LAÇO SOCIAL

 

Campo de Concentração: uma metáfora para a definição de devastação

 

Concentration camp: a metaphor to the definition of devastation

 

 

Pricilla Pesqueira de Souza*

Fórum do Campo Lacaniano do Mato Grosso do Sul
Universidade da Grande Dourados

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho pretende abordar a relação de uma mãe com sua filha pelo viés da devastação. Em 1932, em seu texto "A Feminilidade", Freud aponta para a importância da relação pré-edipiana para uma menina, bem como das consequências complicadas do complexo de castração, principalmente no que diz respeito aos sentimentos e reivindicações feitas à mãe. Lacan (1972) usa o termo devastação para descrever a relação entre uma mãe e uma filha. Fundamenta sua tese com a noção de Gozo Outro, fora do fálico – um gozo suplementar para os sujeitos que se posicionam do lado feminino nas fórmulas da sexuação. A devastação é a manifestação do Gozo Outro na relação entre uma mãe e sua filha, se fundamenta na ausência de significante que diga o que é uma mulher. Com o objetivo de clarificar do que se trata a devastação, recorreremos a Milan Kundera. Em A insustentável leveza do ser, o autor usa a expressão "campo de concentração" para se referir à relação de Tereza e sua mãe.

Palavras-chave: Complexo de Édipo, Devastação, Gozo Outro, Campo de concentração.


ABSTRACT

The present work intends to address the relationship between a mother and her daughter through the lenses of devastation. In 1932, in his text The Femininity, Freud stresses to the importance of the pre-Oedipal relationship to a girl, as well as to the complicated consequences of castration complex, especially in regard to the feelings and demands made to the mother. Lacan (1972) uses the term devastation to describe the relationship between a mother and a daughter. He bases his argument on de concept of Jouissance Another, outside the phallic – a supplementary jouissance to the subjects that are positioned on the feminine side in the formulae of sexuation. Devastation is the manifestation of Jouissance Another in the relationship between a mother and her daughter, and it is based on the absence of significant to say what a woman is. With the objective of clarifying what devastation is about, we resorted to Milan Kundera. In his book The unbearable lightness of being, the author uses the term "concentration camp" to refer the relationship between Tereza and her mother.

Keywords: Oedipus complex, Devastation, Jouissance Another, Concentration camp.


 

 

Já é bem sabido que a feminilidade foi, para Freud, material para suas descobertas iniciais, já que foram as mulheres que deram o primeiro impulso para seu trabalho, bem como objeto de um mistério, de um desconhecido que o intrigou deveras do início ao fim de sua obra. A incompreensão com relação ao feminino não é própria da ciência, mas das civilizações. Segundo Freud, "o enigma da feminilidade tem colocado dúvidas aos homens de todos os tempos" (1932, p. 105).

Mesmo em seus escritos iniciais, Freud não estava contente com a correspondência, estabelecida por ele, como hipótese, entre o Édipo masculino e feminino. Mas foi somente por volta de 1925, em seu texto "A diferença anatômica entre os sexos", que ele começa a estabelecer a ideia de que, diferentemente do homem, na mulher havia uma pré-história edípica. Essa pré-história foi mais bem discutida no texto "A feminilidade", de 1932. Na ocasião, Freud afirma que em uma mulher duas modificações deveriam operar para que ela deixasse de ser um "homenzinho": uma modificação de objeto (da mãe para o pai), e uma modificação de zona erógena (do clitóris para a vagina, ao menos parcialmente). Além disso, era notável uma diferença fundamental entre meninos e meninas: enquanto para os meninos o complexo de castração representava, na melhor das hipóteses, um "sepultamento" do complexo de Édipo, nas palavras de Freud "[...] equivale, quando se consuma idealmente, a uma destruição e cancelamento do complexo" (1924, p. 185), para a menina, a castração possibilitava o início do Édipo, cujo fim, segundo Freud, era incerto: "excluída a angústia de castração, está ausente também um poderoso motivo para instituir o supereu e interromper a organização genital infantil" (1924, p. 186) e ainda "para a menina, a situação edípica é o desenlace de um longo e difícil processo [...] uma posição de repouso que não se abandona facilmente [...]" (1932, p. 119).

O que Freud chama de pré-história edípica é cheio de consequências para a feminilidade. Enquanto que no homem o Édipo é primário, nas mulheres é uma "formação secundária" (Freud, 1925, p. 270), consequência da responsabilização da mãe, por parte da filha, pela falta de pênis, mais especificamente, pela falta de um apêndice que simbolize o falo (1925). Sobre isso, Freud nos fala:

Sabíamos, há tempos, que havia existido um estádio prévio de ligação-mãe, mas não sabíamos que pudesse possuir um conteúdo tão rico, durar tanto tempo, deixar como sequela tantas ocasiões para fixações e predisposições. Durante esse período o pai é somente um importuno rival; em muitos casos a ligação-mãe ultrapassa o quarto ano. Quase tudo o que mais tarde achamos no vínculo com o pai preexistiu nela, e foi transferido daí para o pai. Em suma, chegamos ao convencimento de que não se pode compreender a mulher se não se pondera esta fase de ligação-mãe pré-edípica (1932, p. 111, grifo do autor).

Portanto, no texto "A feminilidade", Freud aborda a importância dessa relação filha e mãe, que atravessou toda a pré-história da menina. Também aponta para uma particularidade muito interessante da ligação com a mãe em comparação com a ligação com o pai:

Na época em que o principal interesse se dirigia ao descobrimento de traumas sexuais infantis, quase todas as minhas pacientes mulheres faziam referência de que haviam sido seduzidas pelo pai. Por fim tive que chegar à conclusão de que esses informes eram falsos, e assim compreendi que os sintomas histéricos derivam de fantasias, não de episódios reais. Somente mais tarde pude discernir nessa fantasia de sedução pelo pai a expressão do complexo de Édipo típico na mulher. E agora reencontramos a fantasia de sedução na pré-história pré-edípica da menina, mas a sedutora é em geral a mãe. Entretanto, aqui a fantasia toca o terreno da realidade, pois foi efetivamente a mãe quem como resultado dos esforços com o cuidado corporal provocou sensações prazerosas nos genitais, e acaso até as despertou pela primeira vez (1932, p. 112, grifo nosso).

Sobre esse aspecto, Colette Soler acrescenta:

O grande princípio moderno, antissadeano, de que ninguém tem o direito de dispor do corpo do outro acaba, desse modo, encontrando um obstáculo nessa zona limite da maternação, ficando a humanização primária do corpo exposta a excessos e transgressões que, antes mesmo de entrar em jogo para a criança a apreensão da diferença sexual, já a aprisionam no 'serviço sexual da mãe', na posição de fetiche e, às vezes, na de vítima (SOLER, 2005, p. 93).

A relação da criança com a mãe, depois da descoberta da ausência de pênis, acaba em ódio e se externaliza em acusações (FREUD, 1932). Nesse sentido Soler desenvolve:

[...] na associação livre, sejam quais forem as variações individuais, é mais como acusada que a mãe se instala. Imperiosa, possessiva, obscena ou, ao contrário, indiferente, fria e mortífera, presente demais ou ausente demais, atenta demais ou distraída demais, quer cubra de mimos, quer prive, quer se preocupe, quer se mostre negligente, por suas recusas ou por suas dádivas, ela é, para o sujeito, uma imagem de suas primeiras angústias, lugar de um enigma insondável e de uma ameaça obscura (2005, p. 91).

Como se observa, para toda criança, seja menino ou menina, a mãe ocupa um lugar, no mínimo, complicado. Além de iniciar a criança nas questões da sexualidade, como foi visto acima, ela também tem uma função que Colette Soler chama de "polícia do corpo" (2005. p. 93), na medida em que restringe a sexualidade da criança a fim de civilizá-la, de educá-la. E isso também para toda criança, seja ela menino ou menina. Então resta a pergunta: qual a particularidade que faz com que na menina, a relação com a mãe seja descrita por Lacan (1972) como devastadora?

O criador da psicanálise nos diz que nas meninas, por questões estruturais, existe uma característica que se sobressai e que é típica da sexualidade feminina, "a inveja do pênis", que, diante de uma leitura atenta de Freud, não pode ser reduzida a uma inveja do órgão pura e simplesmente, mas uma inveja por não ter alguma coisa no corpo que seja um símbolo do falo. Segundo Freud, essa inveja feminina "[...] deixa marcas imborráveis em seu desenvolvimento e na formação do seu caráter [...]" (1932, p. 116). Não é que os homens não necessitem de objetos fálicos, que a posse de um pênis baste a um homem, mas nas mulheres há um plus nesse sentido. "A comparação com o menino, tão melhor dotado, é uma afronta a seu amor-próprio [...]" (FREUD, 1932, p. 117). Essa inveja do pênis existe porque o órgão sexual feminino, a vagina, não é reconhecida no nível da constituição do sujeito; em vez de perceber um órgão diferente no corpo da mulher, o que se vê é uma ausência. É com as seguintes palavras que Freud define essa visão: "[...] horror frente a criatura mutilada, ou menosprezo triunfalista por ela" (1925, p. 271). E ainda com relação às mulheres:

Superada a primeira tentativa de explicar sua falta de pênis como castigo pessoal, e depois de apreender a universalidade deste caráter sexual, começa a compartilhar o menosprezo do homem por esse sexo mutilado em um ponto decisivo e, ao menos nesse sentido, se mantém em igualdade com o homem (FREUD, 1925, p. 272).

Em termos lacanianos, isto se dá pela ausência de significante que represente A mulher (LACAN, 1972-1973). E por isso, diferentemente do menino, que sai do Édipo "bem armado", uma menina precisa construir o seu ser mulher. Freud coloca a saída para a feminilidade no Édipo. Após a percepção da castração, uma menina precisa se voltar ao pai na esperança de que ele lhe dê um pênis, que, na equivalência simbólica, pode ser um filho; entretanto, Freud é bem claro: "mas quem sabe deveríamos ver nesse desejo de pênis, melhor, um desejo feminino por excelência" (1932, p. 119).

Para abordarmos o conceito de devastação é preciso, antes, entender o que Lacan chama de Gozo Outro (LACAN, 1972-73), o gozo que se difere do gozo fálico. A norma fálica, o falocentrismo, é atributo de todos os neuróticos, próprio do recalque. Estar referido à castração à maneira do neurótico significa que o falo entra em cena como uma baliza, um norte, ele dá enquadramento ao sujeito.

Acontece que para os sujeitos que se colocam do lado feminino nas fórmulas da sexuação, o gozo fálico não é o limite (LACAN, 1972-73). Eles experimentam um outro gozo, chamado por Lacan de Gozo Outro. Trata-se de um gozo totalmente alheio ao gozo fálico, ilimitado, cujas qualificações são pouco sabidas, já que não podem ser ditas. É um gozo em que se podem ver algumas manifestações, mas não se pode dizer nada dele, "[...] é inacessível por não corresponder a nenhum desejo e, portanto, não pode ser de forma alguma apreendido ou significantizado" (MIRANDA, 2001, p. 245). Colette Soler chega a dizer que se trata de "um ponto de foraclusão" (2005, p. 97) que se manifesta, segundo Elizabeth da Rocha Miranda (2001), como desrazão, loucura e também nas manifestações dos místicos. Ele é tributário da ausência de significante que diga o que é uma mulher. Utilizando uma terminologia freudiana, é consequência do não reconhecimento da vagina no plano da constituição do psiquismo. O que faz de uma mulher não-toda na castração. Assim, para aqueles que se posicionam do lado feminino, e que por isso têm acesso ao Gozo Outro, as experiências de desrazão, descontrole, de uma certa modalidade de loucura não são raras.

Na relação de uma mãe com sua filha, a manifestação desse Gozo Outro se chama devastação e se relaciona a algo do ser mulher que não pode ser dito, porque está fora da linguagem, não há significante capaz de nomeá-lo. Nas palavras de Soler (2005, p. 97): "[...] o não-todo se cala, por definição, e com um silêncio absoluto, que frequenta as margens de tudo o que se ordena na série fálica".

Diante do que foi exposto, resta a pergunta: existe saída para uma mulher? No que tange à relação com sua mãe, a devastação parece tratar-se de algo estrutural.

Nas palavras de Elizabeth Rocha Miranda:

Se a devastação é uma não resposta do Outro em relação à falta de um significante que diga A mulher, a devastação é então, para a mulher, estrutural, na medida em que não se pode dizer A mulher. Mas poderá ou não ser amenizada de acordo com o desenrolar edípico e com a relação da mãe com sua própria alteridade e o gozo aí implicado. É a relação da mulher que é mãe com o não-todo fálico que a habita que situará a filha de modo a permitir que ela lide com sua alteridade de forma mais ou menos devastada (2001, p. 141).

Carmen Gallano (2011, p. 155) afirma que Lacan "quase faz do estrago um assunto estrutural"; na sequência do texto desenvolve:

Logo, a subsistência de sua essência feminina, a menina não pode receber do pai. Então, onde buscá-la? Na mãe. Mas a busca na mãe como mãe? Não, a busca na mãe como mulher. E a menina, às vezes, vai interpretá-la, de maneira selvagem, o que faz surgir essa relação dolorosa e às vezes demolidora é a feminilidade de sua mãe. É uma chamada para que a mãe responda do segredo de seu gozo de mulher. A falta de resposta a essa interpolação é estrutural porque a mãe nada pode dizer de sua relação direta com S() (2011, p. 155-156).

Existe, como vimos, aquilo que uma mãe não pode fazer, porque não tem meios para isso. Porém, segundo Elizabeth da Rocha Miranda "uma mãe precisa vestir o corpo da filha de modo a ensiná-la a suportar a falta fálica" (2001, p. 139); já um pai precisa ser "um porto seguro [...] onde a filha se refugiaria para se proteger dos ataques de um amor excessivo, exclusivo, devastador com a mãe" (2001, p. 139-140). Gallano (2011) afirma que uma mãe precisa mostrar à filha como resolveu sua dupla privação: fálica e feminina, e mesmo que o que é uma mulher não possa ser dito em significantes, isso não significa que não exista uma saída, caminhos possíveis para ser mulher.

Elizabeth da Rocha Miranda acrescenta:

[...] se seguirmos Lacan em seu aforismo 'A mulher não existe', as mulheres têm que ser inventadas uma a uma, e, para tanto, elas esperam da mãe 'mais substância como mulher', esperam uma resposta, uma orientação para inventar-se como mulher. A resposta só pode vir através dos meios ditos da mulher que é mãe, passando pelo que ela, a mãe, inventou para si própria do que é ser mulher [...] mas se do lado da mulher que é mãe a 'resposta' não vem, e do lado pai não há uma 'promessa efetiva', o que surge é a devastação (2001, p. 141).

A resposta à pergunta o que é uma mulher? precisa vir pelo semblante. Agora, quando os semblantes e as máscaras não são suficientes, o ilimitado do gozo Outro, este ponto de foraclusão, atinge o corpo:

[...] a interdição fracassa e surge a tentativa de fazer a relação sexual existir através do corpo a corpo com a filha. Aqui a clínica é vasta e desastrosa na medida em que não há o que decifrar. As invasões que afetam o corpo – carinhos exagerados, brigas que ambas se batem, a impossibilidade de a filha assumir a propriedade do próprio corpo – são relatadas sempre acompanhadas de 'um não sei o que acontece', 'quando vi já tinha feito', 'não ligo' e na maioria das vezes não aparece como queixa [...] (MIRANDA, 2001, p. 145).

Três exemplos, dois deles casos clínicos, exemplificam essa ausência de limites entre uma filha e sua mãe, expressão do Gozo Outro. Catarina queixa-se de ter uma mãe muito brava, que a agredia fisicamente com frequência diante de motivos banais. Certo dia a mãe disse: "eu limpei a casa, e se você entrar aí eu vou te bater". Catarina desafia: "se você me bater por causa disso, eu vou contar ao meu pai". Ao que a mãe responde: "se você contar ao seu pai, eu vou te bater de novo". A menina entra na casa, apanha da mãe, Catarina conta ao pai. Ele diz à esposa: "você é louca, olha como está essa menina, toda marcada por causa de uma besteira. Você está proibida de fazer isso". A mãe se cala e dirige um olhar para a filha. Quando o pai se afasta, a mãe recomeça a tortura. Essa cena se repete durante anos. Catarina, então, tem treze anos. Foge para ir a uma festa. O pai fica furioso e a mãe pede que Catarina conte os detalhes do que fez na festa. Todos eles. A agressão física desde então é totalmente substituída. Catarina nunca mais apanha, a tortura é outra: contar à mãe todos os detalhes das suas noites, os homens com quem dorme, como se dá o sexo etc.

Outro caso. Madalena tem uma mãe excessivamente presente em sua vida. Elas dormem juntas, a mãe confidencia à filha detalhes de sua vida conjugal com o marido, a mãe vai junto com ela para a faculdade, nas consultas etc. Madalena tem trinta e oito anos e conseguiu começar a faculdade agora. Passa por dificuldades, sente que todas as pessoas estão de olho nela, vigiando-a o tempo todo. Caso ficássemos apenas no nível do fenômeno, isso seria descrito como mania de perseguição, que não tem nada de delirante, já que é real. Eu digo "o mundo não te vigia como sua mãe o faz". Ela se emociona e responde: minha mãe pensa que me superprotege, mas o que ela faz é o oposto disso, eu fico desprotegida diante do mundo.

O terceiro caso é a Tereza, de Kundera. Em seu livro A insustentável leveza do ser, Milan Kundera nos presenteia com uma metáfora belíssima da devastação: campo de concentração. Trata-se, a meu ver, de uma definição com o rigor próprio de uma boa definição teórica. Então, diante do indizível do Gozo Outro, recorramos à arte como Freud bem nos ensinou. Conheçamos Tereza e sua mãe. Tereza era fruto de uma gravidez que ocorreu ao acaso, cujo resultado, devido à impossibilidade de encontrar um médico que fizesse o aborto, foi um casamento indesejado. A mãe de Tereza fora uma mulher muito vaidosa, que gostava de se olhar no espelho, era muito bonita. Não suportou quando as rugas começaram a aparecer "[...] e disse a si mesma que esse casamento tinha sido um erro" (KUNDERA, 1984, p. 39). Abandonou o marido e Tereza. Após a morte do pai, Tereza se viu obrigada a morar com a mãe e seu novo marido. Sobre a convivência das duas, o autor nos diz:

[...] sentia-se culpada, mas era uma culpa indefinida, como o pecado original. Fazia tudo para expiar essa culpa [...] tudo o que ganhava entregava à mãe. Estava disposta a tudo para poder merecer seu amor. Tomava conta da casa, ocupava-se dos irmãos e irmãs [...]. Em casa não existia pudor. A mãe ia e vinha no apartamento em roupas de baixo, às vezes sem sutiã, às vezes completamente nua [...] Seu padrasto não andava nu, mas só ia ao banheiro quando sabia que Tereza estava no banho. No dia em que ela resolveu trancar a porta, a mãe fez uma cena: – Quem você pensa que é? Você acha que ele vai arrancar um pedaço de sua beleza? [...] Que seu marido olhasse Tereza com desejo, a mãe ainda podia admitir, mas não admitia que a filha quisesse se emancipar e ousasse reivindicar direitos (KUNDERA, 1984, p. 41).

Em outro trecho:

Num dia de inverno, a mãe pôs-se a andar nua no quarto com a luz acesa. Tereza correu para abaixar a veneziana, de modo que a mãe não pudesse ser vista do prédio em frente. Ouviu-a rir às suas costas. No dia seguinte algumas amigas foram visitar a mãe. A mãe imediatamente aproveitou para contar como Tereza quis proteger seu pudor. Ela ria, e todas as mulheres a imitavam. Depois disse: – Tereza não quer admitir que o corpo humano mija e peida. – Tereza ficou vermelha como um pimentão, mas a mãe prosseguiu: – Que mal há nisso? – E, imediatamente, ela mesma deu a resposta, soltando sonoros peidos. Todas as mulheres riam (KUNDERA, 1984, p. 42).

Sobre a mãe de Tereza:

Seu comportamento não é senão um gesto brutal que nega sua juventude e sua beleza. Na época em que os nove pretendentes se ajoelhavam em círculo à sua volta, ela tomava um cuidado escrupuloso com sua nudez. Era em termos de seu pudor que calculava o preço de seu corpo. Se é despudorada agora, ela o é radicalmente: com esse despudor, passa um risco solene sobre a vida e grita bem alto que a juventude e a beleza, que ela superestimara, não têm na realidade nenhum valor [...] Insisti em que a filha fique com ela no mundo do despudor, onde a juventude e a beleza não têm nenhum sentido, e onde o universo não é mais que um gigantesco campo de concentração de corpos idênticos e almas invisíveis (KUNDERA, 1984, p. 42-43).

O trecho acima citado demonstra que, diante da impossibilidade de representar o feminino, a mãe de Tereza encontrava-se irremediavelmente aprisionada na beleza. Quando percebe que sua beleza não havia sido garantia de nada, escolhe um caminho doloroso: permanecer nesse mundo indiferenciado que é um campo de concentração. Desse horror não suportava que Tereza saísse, que se emancipasse. Mas, ao acaso, Tereza encontra um amor, Tomas. Sai da casa da mãe e vai morar com o amado em Praga. A mãe ainda fez uma tentativa desesperada:

Quando a mãe de Tereza compreendeu que sua agressividade não tinha mais poder sobre a filha, passou a mandar cartas lastimosas para Praga. Queixava-se do marido, do patrão, de sua saúde, de seus filhos, e dizia que Tereza era a única pessoa que lhe restava na vida. Tereza acreditou estar ouvindo, enfim, a voz do amor materno, pela qual ansiava há vinte anos, e teve vontade de voltar. E essa vontade era ainda mais intensa porque se sentia fraca. As infidelidades de Tomas lhe revelavam de repente sua impotência, e desse sentimento de impotência nascia a vertigem, um imenso desejo de cair. A mãe lhe telefonou. Estava com câncer, dizia que tinha apenas alguns meses de vida. [...] Falou com Tomas sobre a doença da mãe e anunciou que iria tirar uma semana de licença para ir vê-la. Havia um desafio em sua voz. [...] Tomas lhe desaconselhou a viagem. Telefonou para o dispensário da pequena cidade. Na Boemia, os dossiês dos exames de câncer são muito detalhados, e ele pôde verificar, facilmente, que a mãe de Tereza não tinha nenhum sintoma de câncer e que há mais de um ano não fazia nenhuma consulta. Tereza obedece e não foi ver a mãe. Mas no mesmo dia caiu na rua, seu passo tornou-se hesitante; caía quase todos os dias, esbarrava nas coisas ou, na melhor das hipóteses, deixava cair todos os objetos que tinha nas mãos. Sentia um desejo irresistível de cair. Vivia em uma vertigem contínua. Quem cai diz: 'Levanta-me!' Pacientemente, Tomas a levantava (KUNDERA, 1984, p. 54-55).

Campo de concentração é uma expressão muito propícia para definição de devastação, uma maneira belíssima de dizer o indizível. Kundera, de maneira poética, consegue ilustrar, a meu ver, a manifestação do Gozo Outro na relação mãe e filha. Continuemos com as palavras do autor:

Tereza olhava para a prefeitura destruída, e esse espetáculo lembrou-lhe, de repente, sua mãe: essa necessidade perversa de expor suas ruínas, de se gabar de sua feiura, de ostentar sua miséria, de mostrar o coto de sua mão amputada e de obrigar o mundo inteiro a olhar. Nos últimos tempos tudo lhe lembrava a mãe, como se o universo materno, do qual escapara há uns dez anos, estivesse voltando, cercando-a por todos os lados. Foi por isso que no café da manhã ela havia contado que a mãe lera, às gargalhadas, seu diário íntimo para a família. [...] Tereza usava essa expressão desde criança quando queria exprimir a ideia que fazia de sua vida familiar. O campo de concentração é um mundo onde as pessoas vivem umas sobre as outras, dia e noite. As crueldades e violências são apenas aspectos secundários e supérfluos. O campo de concentração é a liquidação total da vida privada [...] Tereza, quando morava com a mãe, vivera num campo de concentração. Depois disso sabia que um campo de concentração não é nada excepcional, nada que deva nos surpreender, mas alguma coisa de comum, de fundamental; nascemos nele e dele só podemos escapar com a tensão máxima de todas as nossas forças (pp. 117-118).

Com base no que foi desenvolvido, penso ser possível propor a devastação como campo de concentração, no sentido de um lugar de "corpos idênticos e almas invisíveis", de dificuldade de emancipação, de despudor, um lugar familiar e mortífero.

 

Referências

FREUD, S. (1925). Algunas consecuencias psiquicas de la diferencia anatomica entre los sexos. In: Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 2004. v.19.         [ Links ]

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GALLANO, C. A alteridade feminina. Campo Grande, 2011.         [ Links ]

KUNDERA, M. A Insustentável leveza do ser. São Paulo: Círculo do Livro S. A., 1984.         [ Links ]

SOLER, C. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.         [ Links ]

MIRANDA, E. R. O Gozo Feminino. Rio de Janeiro: 2001. 358 f. Tese. (Doutorado em Psicanálise) Instituto de Psicologia. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001.         [ Links ]

LACAN, J. (1972-73) O seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.         [ Links ]

__________. (1972) O Aturdito. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. pp. 449-497.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: pricila_pesqueira@yahoo.com.br

Recebido: 05/03/2015
Aprovado: 10/08/2015

 

 

* Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá. Membro do Fórum do Campo Lacaniano do Mato Grosso do Sul. Professora e supervisora clínica da Universidade da Grande Dourados.

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