SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número31Fazer o amor é poesia: laço e contingênciaEfeitos da nomeação na Escola de Lacan índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.31 Rio de Janeiro out. 2015

 

TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS: LAÇO SOCIAL

 

"O amor feliz não tem história": notas sobre o amor cortês e a impossibilidade1

 

"Happy love bears no history": notes about courteous love and impossibility

 

 

Miriam Ximenes Pinho*

Fórum do Campo Lacaniano-São Paulo (FCL/SP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo tem por objetivo investigar a experiência amorosa pela via de um de seus avatares, o amor cortês, um amor delicado, cheio de cortesias e regras cavalheirescas em que o amante tudo suporta por sua Dama, mulher divinizada e inatingível. O romance cortês é um amor infeliz, marcado por entraves e sofrimento. Lacan de(se)cantou seus artifícios em diferentes momentos de sua obra. Do amor cortês interessa-me destacar o seu princípio de impossibilidade tantas vezes ressaltado. Qual o estatuto dessa impossibilidade? Trata-se da mesma impossibilidade que atinge todos os amores, mesmo os mais eternos? Para tanto, os Seminários 7, 20 e 21 foram examinados e ainda um romance de cavalaria, Tristão e Isolda que serviu para ilustrar algumas das considerações aqui apresentadas.

Palavras-chave: Amor, Amor cortês, Impossibilidade, Lacan.


ABSTRACT

This study aims to investigate the experience of love by way of one of his avatars, courtly love, a gentle love, full of amenities and gentlemanly rules in which the lover endures all things by his Lady, a divinized and unreachable woman. The courteous novel is an unhappy love marked by obstacles and suffering. Lacan decanted/disenchanted its devices at different times of his work. I'm particularly interested in courtly love's principle of impossibility, so often emphasized. What is the status of this impossibility? Is it the very impossibility that affects every type of love, even the eternal one? To achieve this goal, Seminars 7, 20 and 21 were examined as well as a romance of chivalry, Tristan and Isolde, that served to illustrate some of the considerations presented here.

Keywords: Love, Courtly love, Impossibility, Lacan.


 

 

"O amor, isso me incomoda. A vocês também, é claro. Mas não como a mim" (LACAN, 1973-74/inédito). Também eu, instigada por este incômodo, fui investigar o fenômeno amoroso pela via de um de seus avatares, o amor cortês, cujos artifícios Lacan de(se)cantou em diferentes momentos de sua obra. Do amor cortês, interessa-me o seu princípio de impossibilidade e, para tanto, os Seminários 7, 20 e 21 foram examinados. Qual o estatuto dessa impossibilidade? Seria da mesma ordem daquela que atinge todos os amores, mesmo os mais eternos?

Parto de um romance de cavalaria medieval que começa assim: "Quereis ouvir, senhores, um belo conto de amor e morte? É de Tristão e Isolda, a rainha. Ouvi como em alegria plena e em grande aflição eles se amaram, depois morreram no mesmo dia, ele por ela, ela por ele" (BÉDIER, 2012, p. 1). A lenda de Tristão versa sobre o amor ilícito entre um bravo cavaleiro e uma dama de alto valor destinada a desposar o rei Marcos, tio de Tristão. Rodeios e obstáculos perseguem os amantes até o desfecho trágico quando morrem um pelo outro.

O romance de Tristão e Isolda expressa um tipo de relação entre um homem e uma mulher, surgido em um determinado círculo social e histórico, a sociedade cortês e cavaleiresca dos séculos XII e XIII (ROUGEMONT, 1988). Um romance que encanta menos por celebrar os prazeres do sentido, a paz e a felicidade dos amantes do que os entraves, o sofrimento, o amor irrealizado. Em pleno feudalismo, trata-se de um embate em que o amor é contraposto ao casamento arranjado. Uma relação em que a fidelidade, ou melhor, a "feudalidade" (LACAN, 1973-74/inédito) é sustentada pelo amor e não pelo contrato.

Os trovadores medievais nomearam de fin'amour esse amor fino, delicado, contido, cheio de cortesias e regras cavalheirescas. O amante tudo suporta, tudo sofre por sua Dama, mulher divinizada, inatingível e, por isso mesmo, investida da mais elevada superestima. Gaston Paris foi quem, no século XIX, batizou esta relação singular de "amor cortês" e destacou os seus traços distintivos: 1) é ilegítimo e furtivo; 2) o amante pertence a uma classe inferior enquanto que a Dama é nobre e altiva; 3) o amor da amada é ganho por meio de demonstração de proeza, valor e devoção; 4) o amor é uma arte e uma ciência sujeita a regras e regulações (MOORE, 1979).

Há um quinto traço a acrescentar: a conjugação amor e morte, que no Ocidente se tornou fórmula de sucesso de inúmeros romances. No amor cortês morre-se de amor, morre-se por amor. O amor é mortal. Um outro modo de se falar da não garantia do amor, de seus limites: "Amor e morte, amor mortal: se isso não é toda a poesia, é, ao menos, tudo o que há de popular, tudo o que há de universalmente emotivo em nossas literaturas; em nossas mais antigas lendas e em nossas mais belas canções. O amor feliz não tem história. Só existem romances do amor mortal, ou seja, do amor ameaçado e condenado pela própria vida" (ROUGEMONT, 1988, p. 15).

O amor cortês está entre a satisfação erótica e a realização espiritual. É "ao mesmo tempo ilícito e moralmente elevado, passional e disciplinado, humilhante e exaltante, humano e transcendente" (NEWMAN, 1968, p. 7). É essencialmente um ideal... de lealdade, conduta e comportamentos que partem de uma erótica (LACAN, 1959-60/2008). O amor é o pivô que lança o cavaleiro, a serviço de sua Dama, a buscar não mais as armas, mas as virtudes (NEVES, 2004). A paixão amorosa é elevada ao estatuto de uma moral. O amante é transfigurado na medida em que submete sua paixão a um ideário sublime compensatório.

É nesse sentido que Lacan (1959-60/2008, p. 156), no Seminário 7, tomou o canto dedicado ao amor cortês como "uma obra de sublimação em seu mais puro alcance". O objeto do amor cortês, um objeto feminino, é idealizado, exaltado, elevado "à dignidade da Coisa" (Ibid., p. 137). De outro modo, se uma mulher é qualificada como a Dama, um objeto digno do mais alto louvor, isso se deve menos às suas virtudes reais e concretas do que àquilo que os trovadores criaram: um objeto "enlouquecedor, um parceiro desumano", cujo alto valor está em se prestar a ser um objeto transcendente a si mesmo, uma representação da Coisa (Ibid., p. 182).

Se a mulher é cortejada como um significante a serviço da Coisa, é compreensível a produção do caráter desumano da belle dame sans merci [bela dama sem misericórdia]2 que exige de seu cavaleiro-amante toda espécie de homenagens e serviços por mais absurdos ou arbitrários que sejam. Uma relação de vassalagem à qual o cavaleiro se submete com o intuito de provar-se, enobrecer-se para, por fim, se fazer merecedor de sua inalcançável amada. Malgrado seus esforços, o objeto cobiçado sempre falta ao encontro, permanece inacessível. Na obra poética, "não há possibilidade de cantar a Dama [...] sem o pressuposto de uma barreira que a cerque e a isole" (LACAN, 1959-60/2008, p. 181).

A Dama, no lugar da Coisa, é um objeto produzido para ser cingido, mas jamais atingido. O cortejo do amor não implica gozo do corpo. "Fazer amor é poesia, mas há um mundo entre a poesia e o ato" (LACAN, 1972-73/2008, p. 78). A erótica cortês prima pelo amor em suspensão, interruptus, irrealizável, impossível.

No Seminário 20, Lacan (1972-73/2008) evoca novamente o amor cortês, desta vez para associá-lo com o fato de que "entre os sexos, no ser falante, a relação não se dá" (Ibid., p. 72). É o tempo da não relação sexual. E o amor cortês, o que é? "Uma maneira inteiramente refinada de suprir a ausência de relação sexual, fingindo que somos nós que lhe pomos obstáculos" (Ibid., p. 75). O romance de Tristão e Isolda segue à risca a fórmula do amor inflamado, mas impossibilitado por inúmeros entraves: a diferença de status entre o humilde cavaleiro e a nobre Dama; o marido ciumento; as intrigas dos invejosos e dos maledicentes de plantão e ainda aqueles inventados pelos próprios amantes, tal como o casamento precipitado de Tristão com outra Isolda por concluir que a rainha não mais o amava. Rodeios e obstáculos forjados para se fazer crer que são eles que impedem a plena fruição amorosa ou modos formidáveis de se "sair com elegância da ausência da relação sexual" (LACAN, 1972-73/2008, p. 75).

Ainda no Seminário 20, Lacan articula as relações entre o amor e as categorias modais (o possível, o necessário, o impossível, o contingente) que o romance de Tristão nos ajuda a ilustrar. Diz a lenda que Tristão e Isolda não amariam um ao outro se não fosse por causa de um certo "filtro de amor", um vinho ervado mágico preparado para ser servido na noite de núpcias por ocasião de seu casamento com o rei. Tristão e Isolda tomam o vinho por engano e ei-los, a partir daí, arremessados involuntariamente no fogo do amor, sem que a ele possam resistir. O filtro é um artifício engenhoso fabricado para justificar e garantir o sem-garantia de um encontro amoroso: "Os que beberem juntos amar-se-ão com todos os sentidos e com todo o seu pensamento, para sempre, na vida e na morte" (BÉRDIER, 2012, p. 29).

E de que se trata um encontro de amor senão de uma contingência? Um acontecimento fortuito que surpreende por dar a ilusão temporária de que o impossível passou ao possível, isto é, que a relação sexual parou "de não se escrever" (LACAN, 1972-73/2008, p. 156). Na lenda, o caráter contingencial do encontro aparece na ideia de que a poção mágica foi ingerida por engano pelos amantes. Porém, é curioso como um acontecimento fortuito é imediatamente convertido em necessário pelos amantes que passam a depositar na conta do filtro toda e qualquer responsabilidade pelo encontro. O amor é cristalizado, torna-se um destino a ser cumprido, uma fatalidade à qual os amantes não podem se furtar. Assim se justifica Tristão: "Se ela me ama, é pelo veneno. Não posso dela separar-me. Nem ela de mim..." e assim confirma Isolda: "... Ele não me ama, nem eu a ele. Foi um filtro que bebi e ele também: esse foi o pecado" (ROUGEMONT, 1988, p. 25).

Por causa do filtro, a relação sexual não apenas é possível, mas está garantida como necessária – "para sempre, na vida e na morte" – abolindo o caráter contingencial do encontro. É nisso que os amantes se fiam ao depositar na conta do filtro não somente a garantia de que o encontro acontecerá, mas ainda toda e qualquer responsabilidade pelo que lhes acontecer. O amor, diz Lacan (1972-73/2008), é o que vem em suplência à não relação sexual; é a função que enoda e fornece um tempo de tréguas do exílio da relação sexual, ou seja, aquilo que permite ilusoriamente que a relação sexual se escreva (Ibid., p. 156). O drama do amor consiste justamente nessa tentativa de passar uma inscrição que se deu de modo contingencial à ordem do necessário, imaginá-lo como aquilo que "não para de se escrever, não para, não parará" (Ibid., p. 156). Como costuma dizer Ana Laura Prates-Pacheco em seus seminários: "É tentar fazer do tempo de suspensão, uma eternidade".

Em uma versão antiga da lenda de Tristão, conta-se que o efeito do filtro, embora maravilhoso, não era eterno, estava limitado a três anos: "Por quanto tempo foi determinado o vinho do amor? A mãe de Isolda, que o preparou, a três anos de afeição o limitou" (ROUGEMONT, 1988, p. 25). Decorrido o prazo, a poção perderia o efeito. E foi assim que, de rsepente, Tristão passou a ter saudades de sua vida de cavaleiro; e Isolda, dos confortos da vida na corte. Eles decidem então se separar.

Porém, em meio a inúmeras atribulações, eis que os amantes se deixam novamente arrebatar pela paixão, desta vez sem a garantia do filtro. Mas como o amor cortês é aquele que "visa garantir o impossível" (PRATES-PACHECO, 2014), o fim que os aguarda não é o clássico "... e foram felizes para sempre", mas a morte que os arrebata "no mesmo dia, ele por ela, ela por ele" (ROUGEMONT, 1988, p. 25). Desta vez é com o "filtro da morte" que se conta para garantir a eternidade, porém sem um corpo do qual se possa gozar.

No Seminário 21, o amor cortês é retomado em articulação ao nó borromeano. Lacan (1973-74/inédito) propõe que o amor cortês tenta escrever a relação sexual como um "nó olímpico", composto de três argolas: a argola do meio tem prevalência sobre as demais, se tirarmos a argola do meio as outras se soltam desfazendo o nó. No amor cortês, o Imaginário é a argola do meio a sustentar a relação do Real ao Simbólico, do gozo ao saber. Lacan, neste seminário, apresenta o princípio segundo o qual "o amor é o amor cortês" na medida em que o amor é chamado a obturar a hiância entre o Real e o Simbólico. Nascido dessa "raiz do impossível", por mais que se force a barra o amor está fadado ao fracasso na medida em que esbarra no impossível de se escrever da relação com o objeto. Pois é justamente o objeto a aquilo que limita o amor: todo amor só é "trazido à existência pelo impossível da ligação sexual com o objeto, o objeto, qualquer que seja sua origem, o objeto desta impossibilidade".

Esta afirmação de Lacan me ajuda a extrair dois modos de ler a impossibilidade a partir do amor cortês: há a impossibilidade que é própria desse tipo de "amor olímpico" que tenta de todo modo garantir não o amor, mas o impossível e que, para tanto, sustenta em um horizonte a relação sexual como ex-sistência, isto é, garante que a relação sexual existe, porém são os obstáculos que atrapalham e não a deixam acontecer. Fabrica-se assim um encontro amoroso complicado para sustentar a impossibilidade.

Mas há ainda outro tipo de impossibilidade, exaltado pela criação poética cortesã, cujo traço atinge todo e qualquer encontro amoroso: os limites impostos no amor pelo objeto a que não se atinge. Tal como uma barreira a separar os amantes, o objeto a é o (a)mur, o (a)muro que faz Eros fracassar em sua tentativa de encontrar para o S1 o seu "par perfeito". Um traço que limita qualquer amor, por mais oceânico ou eterno que seja, conforme observou Allouch (2009, p. 11), "a experiência amorosa é aquela de seu próprio limite. Não tanto que o amor tenha um fim, uma vez que a ligação se rompe ou que a morte lhe dá um fim. Acontece, e vamos lançar na conta da contingência. É num outro sentido [...] que vamos entender esse traço da experiência amorosa: por mais atual, por mais intensa, por mais talvez apaixonada que seja, ela permanece autolimitada".

Em suma, se o amor só se dá por bon-heur, a boa chance, a felicidade de um encontro contingencial, não há como assegurar no "horizonte do amor o avô e a avó" (LACAN, 1973-74/inédito). Não há "filtro de amor" ao qual se agarrar para lhe garantir a duração. Por outro lado, a fragilidade a que o amor se expõe tornaria o encontro menos precioso?

 

Referências

ALLOUCH, J. Amor Lacan. Tradução de Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2010.         [ Links ]

BÉDIER, J. O romance de Tristão e Isolda. Tradução de Luis Carlos de Castro e Costa. São Paulo: WMF Martins, 2012.         [ Links ]

LACAN, J. (1959-60). O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Versão de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.         [ Links ]

__________. (1972-73). O seminário, livro 20: Mais, ainda. Versão de M. D. Magno. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.         [ Links ]

__________. (1973-74). O seminário, livro 21: Le non-dupes errant, inédito.         [ Links ]

MOORE, J. C. Courtly Love: a problem of terminology. Journal of the History of Ideas, vol. 40, n. 4, oct.-dec., 1979.         [ Links ]

NEVES, M. A. S. Quid sit amor: o conceito do amor na literatura cortês, a poesia lírica médio-alto-alemã e galego-portuguesa – Walther von der Vogelweide e D. Dinis. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Portugal, 2004.

NEWTON, F. X. (Ed). The meaning of courtly love. Albany, NY: Sunypress, 1968.         [ Links ]

PRATES-PACHECO, A. L. Para sempre é sempre por um triz. Prelúdio – XV Encontro EPFCL, Campo Grande-MS, 2014.

ROUGEMONT, D. O amor e o Ocidente. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: miriampinho@yahoo.com.br

Recebido: 12/08/2015
Aprovado: 10/08/2015

 

 

* Psicanalista. Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2015). Mestrado em Ciências (UNIFESP, 2009). Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (1994). Analista membro do Fórum do Campo Lacaniano-São Paulo (FCL/SP).
1 Trabalho apresentado no XV Encontro Nacional da EPFCL-Brasil, 2014, Campo Grande-MS.
2 Referência ao célebre poema de John Keats, "La belle dame sans merci", escrito em 1819.

Creative Commons License