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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.31 Rio de Janeiro Oct. 2015

 

ESPAÇO ESCOLA

 

A provocação do Mais-Um como possibilidade de um laço diferenciado

 

The provocation of the Plus-One as a possibility of a differentiated link

 

 

Elynes Barros Lima*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Fórum Fortaleza

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto trata sobre a função do Mais-Um no cartel. No decorrer do texto discute-se o laço transferencial que une os membros de um cartel e como a função do Mais-Um pode promover um laço diferenciado, capaz de provocar o trabalho dos membros.

Palavras-chave: Escola, Cartel, Grupo, Mais-um, Laço.


ABSTRACT

This text addresses the function of the Plus-One in the cartel. Throughout the text, we discuss the transference bond which unites the members of a cartel and also how the Plus-One can promote a differentiated bond which is able to provoke the work of the cartel members.

Keywords: School, Cartel, Group, Plus-one, Bond.


 

 

Deparei-me recentemente com o texto de Lacan (1980a/s.d.) chamado "D'Écolage". De pronto, o neologismo do título chamou-me a atenção. Corri os olhos na nota de rodapé do texto e descobri que ele faz alusão a alguns termos, como "descolarização", que remete à Escola; "descolagem", que remete à noção de cola; e "decolagem", que remete a "sair voando". Este texto corresponde à terceira aula do Seminário 27, que se chama Dissolução. Assim, todos esses termos que decorrem do neologismo D'Écolage estão, em suma, relacionados à Dissolução.

Nesse momento da escrita de seu texto, Lacan está dissolvendo sua escola, a EFP (Escola Freudiana de Paris), e fundando a Causa Freudiana, que ele chama de campo e não de escola, e não é sem propósito que todos esses termos estejam aí colocados. Retomarei essa discussão mais adiante; por ora, gostaria de enfatizar outra coisa que me chamou a atenção e tornou-se o motivo da escrita deste trabalho.

Fazendo parte de um cartel peculiarmente constituído, pois seus participantes estavam distantes geograficamente, encontrando-se quinzenalmente via Skype, ocorreu-me investigar se a função do Mais-Um e a condução do trabalho no cartel sofreriam algum efeito dessa distância ou pelo uso dessa ferramenta.

O tema proposto por este cartel, constituído em novembro de 2012 e dissolvido em janeiro de 2014, foi: "O Amor e suas fronteiras". Esse tema levou-nos a refletir sobre os laços transferenciais e pensar com Freud: o que liga?

Em seu texto "Psicologia das massas e análise do eu", Freud (1921, p. 117) vai dizer que as relações amorosas constituem a essência da mente grupal. Ele diz:

[...] um grupo é claramente mantido unido por um poder de alguma espécie; e a que poder poderia essa façanha ser mais bem atribuída do que a Eros, que mantém unido tudo o que existe no mundo?

Mas Freud (Ibid.) ainda se pergunta: de que natureza seriam os laços existentes entre os membros de um grupo? Parte, então, da análise do mecanismo de identificação, que é a forma mais primitiva e original de laço emocional, e enumera três tipos de identificação: identificação ao pai, identificação ao sintoma e identificação histérica, para concluir que (Ibid., p. 131):

[...] o laço mútuo existente entre os membros de um grupo é da natureza de uma identificação desse tipo (identificação histérica) baseada numa importante qualidade emocional comum, e podemos suspeitar que essa qualidade comum reside na natureza do laço com o líder.

Freud (Ibid.) conclui que a ligação existente entre os indivíduos de um grupo consiste no fato de eles colocarem, um só e mesmo objeto, no lugar de seu ideal do eu e se identificarem uns com os outros em seu eu.

Assim, entre os fenômenos que manteriam unidos os membros de um grupo e esses ao seu líder, Freud (Ibid.) aponta o "amor igual", que pode ser encontrado principalmente em dois grupos: no exército e na igreja, cuja perda do líder pode levar seus membros à situação de pânico. O medo, segundo Freud, irromperia pela quebra dos laços emocionais, e esse processo estaria na origem do medo neurótico e na ansiedade.

Para amenizar os efeitos dos fenômenos de grupo, próprios a todo ajuntamento humano, Lacan (1971) institui, na "Ata de fundação" de sua Escola, o cartel. Que tipo de ligação Lacan propõe ao instituir o cartel? Retomando o texto da "Ata de fundação", lemos: "Para execução do trabalho, adotaremos o princípio de uma elaboração apoiada num pequeno grupo" (LACAN, 1971/2003, p. 235). Depreende-se daí que a ligação entre os membros desse grupo pequeno está apoiada na execução de um trabalho; seus membros estarão ligados por uma transferência de trabalho. Aqui podemos salientar a contribuição de Lacan ao conceito de transferência, como amor que tem todas as características do amor comum, mas é amor que se dirige ao saber.

Lacan (Ibid.) institui o cartel como a base do funcionamento de sua Escola, sendo que a adesão a ele será feita mediante a participação nesse pequeno grupo de trabalho. Esse pequeno grupo, segundo ele, será formado por no mínimo três e no máximo cinco pessoas, sendo quatro a justa medida, e também MAIS-UMA, encarregada da seleção, da discussão e do destino a ser reservado ao trabalho de cada um.

Depois de alguns anos de trabalho nesses grupos, Lacan (1980a/s.d.) acrescenta algumas modificações na função do MAIS-UM, dizendo que, mesmo sendo uma função que pode ser exercida por qualquer um, deve ser alguém e que o mesmo "seria encarregado de velar pelos efeitos internos do empreendimento e PROVOCAR a elaboração" (Ibid.).

A partir desse segundo momento, a função do Mais-Um passa de um administrador, para um provocador. Que provocação seria essa?

Antes de avançarmos nessa e em outras questões, recorramos ao dicionário (HOUAISS, 2001). Nele, encontramos algumas concepções para a palavra provocar:

1. forçar (alguém) a responder a um desafio; desafiar;
2. dizer desaforos a; insultar;
3. impelir, incitar, instigar;
4. ser a causa de; causar, ocasionar;
5. fazer perder a calma; irritar, perturbar;
6. estimular o desejo sexual de;
7. pro-vocar = voz – vocalizar = fazer falar, instigar à fala.

Provocar, como vemos, pode ter várias conotações, desde irritar, brigar até estimular o desejo sexual, passando por causar, instigar. Uma dessas concepções pareceu-me precisa para o debate sobre a função do Mais-Um: "forçar (alguém) a responder um desafio". Observamos que essa provocação parece responsável por ligar os membros de um cartel, na medida em que mantém o trabalho em andamento, só que essa ligação não é da ordem da identificação, mas de um enodamento.

Lacan vai dizer que todos desejam a identificação com o grupo e que isso é compreensível, porém devem estar advertidos de saída de que o nó só se constitui na não relação sexual como buraco. Retoma a fórmula do cartel e faz uma analogia ao nó borromeano (LACAN, 1974-75/inédito, aula de 15/04/1975):

Não dois, pelo menos três, e o que quero dizer é que se vocês só forem três, isso já faz quatro. A mais-uma estará aí mesmo que sejam só três, [...] Mesmo que sejam só três, isso faz quatro, donde minha expressão mais-uma. E será retirando uma, real, que o grupo se desata. É preciso para isso, que se possa retirar uma real para a prova de que o nó é borromeano e que estão ali as três consistências mínimas que o constituem.

A identificação possível para Lacan se dará ao coração do nó, ao seu centro, onde se situa também o desejo, o objeto a, causa de desejo. Essa identificação é semelhante àquela proposta por Freud como o desejo da histérica, diz Lacan (LACAN, 1980a/s.d.).

É semelhante sim, mas Lacan vai mais adiante e parece-nos que marca uma diferença em relação a Freud; e essa diferença tem relação com a forma como se enlaça, o jeito que se faz para que o laço dê uma estrutura de nó. Não se trata de um laço como identificação, como uma ligação, mas de um laço-nó, que pressupõe, de saída, um furo. No lugar da identificação ao líder, às suas ideias fascinantes, no cartel há uma subversão: cada um é provocado a dar algo de si: "... terá liberdade para demonstrar o que faz com o saber que a experiência decanta" (LACAN, 1980a/s.d.).

É por isso que mesmo na "Carta de dissolução" de sua Escola, Lacan (1980b/2003, p. 320) persevera (père séverè – pai severo) dizendo que "não necessito de um mundo de gente", e assim mesmo dissolvendo sua Escola, mantém o cartel convocando o Mais-Um a uma provocação.

Em que medida, então, essa provocação do Mais-Um poderia instituir um laço possível de trabalho, sempre inédito e descolado, que faria avançar a transmissão da psicanálise e daria um tratamento ao real sempre em jogo na formação do analista? Talvez uma das respostas possíveis a essa pergunta esteja na própria definição de "provocar", como sendo aquilo que causa; aquilo que causa está no coração do nó e remete também a esse furo que poderia afastar a possibilidade de uma identificação imaginária sempre fadada ao fracasso. A resposta de Lacan aponta para experiência dos cartéis. Sua experiência com os cartéis denunciou o que ia mal em sua Es-cola, e o fez apostar nesse pequeno grupo, aprimorando sua formalização, não sem indicar-nos um caminho: a exposição periódica dos resultados e das crises de trabalho.

Retomo aqui a questão levantada no início deste texto sobre a peculiaridade no uso da internet como ferramenta para execução de um cartel: seria essa forma de trabalho um impedimento para o funcionamento do cartel, como proposto por Lacan? Acreditamos que não. Os membros de um cartel podem estar on-line, "ligados" e ainda assim sustentar essa estrutura de nó, provocada pelo Mais-Um. O que impede o progresso da psicanálise são os desvios e as concessões, dizia Lacan (Ibid.), desvios e concessões que fizeram os laços, as ligações, a cola grupal, falarem mais alto, e quando o discurso do grupo psicanalítico prevalece, torna-se igreja, cujo único sentido é o religioso, diz Lacan, e acrescenta que fala isso não por zombaria, mas é que a estabilidade da religião provém do fato de o sentido ser sempre o mesmo, o religioso (LACAN, 1980b/2003).

Por isso ele propôs uma des-colarização; quem sabe, descolando do sentido o inédito, o novo poderia advir? Lacan apostava que descolarizando, os que ele abandonava poderiam, então, mostrar o que sabiam fazer – uma provocação? Ele responde em "Meu Ensino" (LACAN, 1967/2006, p. 86): "uma chance de voltar a partir", decolando.

 

Referências

FREUD, J. (1921). Psicologia de grupo e a análise do ego. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume XVII, Rio de Janeiro: Imago, 1976.         [ Links ]

HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2001.         [ Links ]

LACAN, J. (1967). Meu Ensino. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.         [ Links ]

__________. (1971). Ato de Fundação In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.         [ Links ]

__________. (1974-75). O seminário, livro 22: RSI. Aula de 15 de abril de 1975. Inédito.         [ Links ]

LACAN, J. (1980a). D'Écolage. Revista da Letra Freudiana: Escola, Psicanálise e Transmissão, Documentos para uma Escola, ano I, n. 0, Rio de Janeiro, s/d.         [ Links ]

__________. (1980b). Carta de dissolução In: Outros Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2003.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: elynesbl@gmail.com

Recebido: 14/06/2015
Aprovado: 10/08/2015

 

 

* Psicóloga, psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e do Fórum Fortaleza.

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