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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.32 Rio de Janeiro jun. 2016

 

CONFERÊNCIA

 

Névoa…

 

Haze

 

 

Camila Vidal*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (2015-2018)
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (Foro Santiago-Vigo)
Formações Clínicas do Campo Lacaniano na Espanha

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O desejo do analista é o que resulta e que se pode colocar em funcionamento, uma vez que o percurso da cura desvencilhou o sujeito de sua crença no Outro, fazendo-o responsável por seu próprio gozo, tanto daquele que está como daquele que falta; fundamentalmente do que falta poderíamos dizer, já que é o que permitirá situar o "paciente" não como objeto na busca desse gozo que falta, mas deixar esse lugar vazio, permitindo, assim, que o analisante se encontre com esse desejo inédito, no qual, pela primeira vez, não será tomado como corpo. Neste caso, o desejo do analista finalmente aparece com a "névoa"; esse real mesmo que já não está mais no Outro, está ali perdido, garante o não todo, é o gozo que falta e que já se sabe que não está no Outro; ele não tem que ir buscá-lo no outro, porque está ali do lado do Um, mas não é nada além de "névoa". A questão é como mantê-lo ali, de forma que a "névoa" não se dissipe, se mantenha no limite do sentido. O passe é uma tentativa de que essa "névoa" não se dissipe, já que ele é o que permite sair da indefinição. Tentativa de preservar algo desse real que tende constantemente ao contrário da insistência do sentido que sempre volta, tentativa de um novo enlace de que algo disso que foi encontrado, tão valioso, não se perca.

Palavras-chave: Passar, Gozo feminino, Horror de saber, Desejo do analista.


ABSTRACT

The analyst's desire is what results and what can be put to functioning, once the trajectory of the cure has freed the subject from his/her faith in the Other. This makes the subject responsible for his/her own jouissance, both from the one who is present and the one that is missing. Fundamentally, we could say something about the missing one, once it is the one that will allow the localization of the "patient" not as an object in search of this jouissance, but leave this place empty, thus, allowing the analysand to meet with this new desire, in which, for the first time, will not be taken as body. In this case, the analyst's desire, finally, appears with the "haze", this blunt real which is no longer with the Other. It is lost there, it guarantees the "not all". It is the missing jouissance and as previously known, it is not within the Other. It does not have to look for it in the Other because it is there by the side of the One; however it is nothing but "haze". The question is how to maintain it there, in a way that the "haze" does not dissipate, is kept in the limit of the sense. The pass is an attempt to prevent this "haze" from dissipating once it is exactly this that also allows a move away from indefinition. An attempt of preserving something of this real that, contrary to the insistence of the sense, always turns back; an attempt of a new connection with something that was found, and that for being so valuable, shall not get lost.

Keywords: Pass, Feminine jouissance, Horror towards knowledge, Analyst's desire.


 

 

Calima… dá no mesmo, pois depende do acaso, de onde venha o vento, se do deserto ou de algo não menos árido, do mar.

Ante a aleatoriedade do vento, prepotência da presença.

"Névoa" foi o significante surgido ao final da análise para tentar nomear o real. Real enlaçado ao gozo feminino por meio da sobredeterminação do sintoma.

O passe é uma tentativa de que esta névoa não se dissipe, tal como este escrito e todos os outros que o sucederão, pois só o intento de escrever permite tornar patente o que não pode ser dito, o que não pode ser lido, evocando o lugar fundamental da ex-sistência em qualquer realização humana, apenas se a pessoa consentir.

 

Primeiro

Já fazia um tempo que eu sabia que a análise tinha sido concluída, mas eu não estava sendo capaz de encontrar um ponto de parada que me permitisse finalizá-la. Um dia disse à minha analista:

"[…] eu já sei que a análise está terminada, não há nada mais que esperar, mas a verdade é que eu sinto que há algo do real que não foi tocado."

"[…] Talvez para você seja assim", respondeu a minha analista, para minha surpresa, dando por terminada a sessão.

Então, de repente, me dou conta de algo que não havia sido possível pensar em todos esses anos de análise, apesar de ser algo que estava totalmente à vista. Tão à vista como "… a calima" com que, aos oito anos, me nomeia – por acaso – em um lapso, o segundo irmão do meu filho ao conhecer-me.

Eu sou a terceira de quatro irmãos. O primeiro é um menino que, ao nascer, o pai registra com nome de um irmão seu, nome este que minha mãe disse que jamais escolheria. O segundo, nascido dez meses depois, outro menino, registrado com o nome do pai, porque, já que não o tinha colocado no primeiro filho, era lógico, de acordo com a lógica daquele tempo, que o fizesse com o segundo.

Quando eu cheguei, era a vez da mãe escolher o nome, uma vez que os outros tinham nomes da família paterna. Então minha mãe quis colocar Camila, como o nome dela; a madrinha também queria que a menina levasse o seu nome, então disseram: "pois bem, não importa, Camila Juana". Porém, eis que eu nasci no dia de San Ramón (São Raimundo) que, além de ser padroeiro dos natimortos, era o nome de um tio materno, homem de reconhecido prestígio por seus estudos científicos, e assim a coisa ficou um pouco bizarra: Camila Juana Ramona. Entretanto, finalmente ela me chama "Cucaracha"1, nome que meus irmãos simplificam para Cuca.

Pude entender, de repente, do que se tratava, ou seja, da dificuldade da minha mãe para colocar-me um nome.

Quando chega a sua vez de escolher, ela simplesmente não consegue.

Este "colocar-me um nome" cai, um pouco depois, quando posso escutar o seu desejo de ser cremada no momento de sua morte e quando diz que não será preciso colocar nenhum nome sobre a lápide, porque afinal

"já está o do papai".

Sua dificuldade não era colocar um nome na sua filha, era uma dificuldade com o nome mesmo.

A queda do sujeito suposto saber, com este "… há algo de real que não havia sido tocado", produz, de forma quase simultânea, o atravessamento do fantasma e a queda do Outro, ao mesmo tempo que transforma o significante "Cucaracha" em Sinthoma.

Surge então um axioma:

"fazer-se um nome com as insígnias do Outro" e toda a história pode ser reinterpretada.

Cucaracha marcou com um "fazer-se esmagar" a existência. A descoberta de que por trás deste "Cucaracha", se encontra a dificuldade materna com o nome, deixa vislumbrar a opacidade do desejo materno e produz a queda do Outro:

"[…] não era uma dificuldade com ela, era uma dificuldade dela mesma".

Chegando neste ponto, "cucaracha" é o mesmo que qualquer outro significante dotado de qualquer outra significação possível. Pouco importa, ainda que não seja indiferente, claro, e que tal significação tenha tido grande importância ao longo da história.

Pouco importa o sentido, porque a significação cai, já não é necessário fazer-se esmagar para sustentar o sintoma, para sustentar o Outro.

Do que se trata não é de "Cucaracha" e desta dificuldade materna em nomear-me, que deriva de nomear-se a si mesma, que é o que está na base deste significante; o que importa é que a dificuldade de nomear-se da minha mãe nos remete a um oximoro, por um lado nomear-se com o nome do outro, seu marido, e, por outro lado não, ser necessário ser sustentada por nenhum significante.

Capturar o oximoro implica a queda deste irremediável e inútil "tratar de constituir-se um nome com as insígnias do Outro", que foi o "hic et nunc" da minha vida.

Entretanto, vamos por partes: este "fazer-se um nome com as insígnias do Outro" permite também reler uma queixa antiga:

"[…] o sentimento de que somente o meu desejo não seria suficiente para a vida, desejo desfalecente, afirmava eu, que me tinha feito apelar sempre a um outro para apoiá-lo, para sustentá-lo e cuja consequência era inevitavelmente o sentimento de sentir-me esmagada pelo peso deste outro, debaixo de um significante, um '[…] coitadinha da Cuca', que fechava o círculo infernal".

Um sintoma precoce e "indecifrável" aparece então sobredeterminado e permite circunscrever algo do gozo feminino.

Desde sempre tive dificuldades para recordar os nomes próprios, não só das pessoas, mas também das ruas, dos locais, dos títulos de livros etc. Este sintoma me colocava (me coloca) em situações muito embaraçosas, nas quais eu me sentia muito mal por não conseguir recordar o nome de um autor muito conhecido por mim, o título de algum romance ou o nome de pessoas próximas o bastante para que o esquecimento fosse interpretado como descuido e desinteresse.

Porém, isso também dificultava muito a minha vida no nível do cotidiano: longas explicações sobre a localização de um lugar onde eu combinava de encontrar-me com um amigo ou conhecido, explicações que, por serem muito imprecisas, acabavam confundindo-me e dando lugar a memoráveis desencontros.

O resultado de tudo isso era a sensação de não me inteirar de nada, de não poder concretizar, de estar sempre na corda bamba.

Muito rapidamente renunciei a encontrar um sentido para estes "esquecimentos" massivos, pois este sintoma descartava qualquer interpretação ao estilo do "Signorelli" freudiano, e então passei anos não fazendo outra coisa a não ser constatá-los, atribuindo-os a esse "desejo desfalecente" que eu me designava.

"É como não querer se submeter a algo do simbólico", eu disse um dia à minha analista, como que trazendo, sem importância alguma, um dos reversos do oximoro materno, em uma sessão depois de relatar um desagradável incidente com alguém próximo:

"[…] com o fácil que é dizer que nos encontramos em tal cafeteria de tal rua, no lugar destes grandes circunlóquios… que me permitem ficar na indeterminação, no desencontro. Isso de simplicidade é para os outros, eu estou em outra parte".

Este "permanecer na indeterminação", por fora do gozo fálico, essa falta de limite que os nomes próprios circunscrevem, não deixa muito lugar para o "desejo decidido", já que todo desejo forte e circunscrito é limitado, concreto.

É assim que consigo entender a ideia freudiana de que as mulheres não propiciam a cultura; este gozo feminino, ilimitado e deslocalizado, não serve para nada, não permite as realizações culturais, haja vista que estas precisam do contorno fálico, uma coisa depois da outra, em determinada ordem. Porém, o que não é útil à produção da cultura, talvez seja eficaz para penetrar no inconsciente. Era o que eu tinha a descobrir.

Descobrir a abertura do indeterminado na debilidade mental.

Sempre quis ser psicanalista. Nunca, desde que posso me lembrar, pude ao menos conceber a ideia de dedicar-me a qualquer outra coisa. Psicóloga infantil, dizia eu, até o encontro prematuro com os textos de Freud.

Minha mãe dizia que eu era "mórbida". Efetivamente tive, desde muito pequena, um gosto particular pela visão do sofrimento, das catástrofes e das malformações corporais – hoje abundantes na minha família –, ou seja, um gosto decidido pelo horror.

Durante a minha análise pude descobrir que meu desejo de analista tinha a ver com a necessidade de perguntar-se sobre este horror:

"[…] Algo disto é o desejo de analista, porém sem a morbidez", disse deitada no divã.

 

Segundo

Desde "sempre" também tive o sentimento de que algo não "funcionava" para mim.

Isso que "não funcionava" tinha a ver com uma hipersexualização do mundo absolutamente desconhecida até muitos anos depois de minha entrada em análise. Uma hipersexualização que fragmentava tudo e desordenava profundamente a realidade.

Tudo se reduzia a sexo.

Não é que eu fosse uma menina particularmente sexual, pelo contrário. Neguei-me obstinadamente – para o desgosto da minha mãe para quem a beleza era algo fundamental na vida –, durante boa parte da minha, a encarnar qualquer coisa que tivesse a ver com o desejo do outro masculino:

Ficar bonita, arrumar-me, produzia em mim um rechaço radical.

Minha primeira interpretação, ou talvez devesse dizer "a interpretação", foi a de que essa aversão a este interesse desmedido que tinha a minha mãe pelo belo, era um rechaço a "ela". Um repúdio também da feminilidade no sentido mais freudiano do termo, como um não aceitar ter nascido menina, porém o longo percurso analítico me permitiu circunscrever em um algo mais além.

Esse rechaço está relacionado com o que chamo hipersexualização do mundo, que incluía um repúdio do fálico.

Uma recordação. Minha mãe me manda comprar um pijama, vou com uma amiga e trago dois para casa para mostrar: um bonito e outro claramente feio. Tanto minha mãe como minha amiga me incentivam a ficar com o bonito, mas eu teimo em querer o outro. Não entro no jogo de ter, isso para elas.

Não se trata de gozar da falta, do gozo de estar privada, de que falava Freud, mas de gozar de outra coisa, que não tem relação com a privação, nem leva junto queixa ou lamento algum. E aí, neste ponto, o belo sobra.

Algo do gozo feminino aparece neste sem limites do sexual, diante do qual o gozo fálico empalidece; é essa erotização geral que dava a toda minha existência um peso singular, muito distanciado do sentimento trágico da vida que, em sua vertente mais histérica, encarnava a família da minha mãe. Essa erotização dotava a minha existência e todos os meus atos de um peso que se traduzia em uma falta de ligeireza, de centelha de vida que se acumulava sobre meus ombros a cada manhã quando eu tentava me levantar.

Não era ausência de satisfação, que eu obtinha inclusive do estudo, ponto especial de condensação e que, à diferença da erotização fálica – que impede muitas vezes, sobretudo aos homens, o poder estudar – não me impedia em absoluto, ao contrário, permitia uma entrega decidida aos estudos, bons resultados acadêmicos e o sentimento, absolutamente verdadeiro, de não poder aprender nada mais do que fragmentos desconexos sem conseguir uma visão de conjunto que me permitisse pensar um pouco mais além daquilo que estudava.

Eu funcionava à maneira de Antígona, que podia sacrificar tudo na proteção deste "sem limites". Tudo era prescindível, nada valia mais do que qualquer outra coisa, exceto este saber encontrado nos livros, tanto mais valorizado quanto maior fosse o desprezo da minha mãe por ele; primeiro, por ela não o ter; e, segundo, por tê-lo atribuído sempre aos homens que, apesar disso, ou melhor, por isso mesmo, "não serviam para nada na vida", numa clara alusão aos homens da sua família, mesmo muitos deles sendo famosos homens de ciência e de leis.

Este "não servir para nada na vida" faz alusão à doença mental de alguns deles, ficando assim a loucura unida, indefectivelmente, ao saber dos livros, ao estudo, e, como interrogação sobre o desejo materno, preparando desta maneira o terreno para o encontro precoce com os textos de Freud.

Uma recordação desfaz de um só golpe essa hipersexualização.

Com nove ou dez anos, uma amiga de infância me dizia que entre ser cega e paralítica, ela preferia mil vezes ser paralítica. Eu me calo por um momento, como que não sabendo bem qual desgraça "escolher", mas o meu pensamento é claro.

"[…] qualquer coisa é melhor do que ser paralítica", já que isso supõe "[…] sem sexo", pois, tal ideia se apresentava como a pior do mundo para mim. Como viver sem sexo?! Logo, melhor cega.

Aí apareceu de repente o valor do "sexual", que permitiu uma deserotização geral e ao mesmo tempo a erotização do corpo (algo se limita); uma vez circunscrito este gozo ilimitado e irrefreável, algo do fálico pôde começar a circular e teve efeitos na possibilidade de concretização do desejo em certas realizações.

Segundo oximoro. O fálico começa a limitar algo por um lado, e, por outro, a continuar neste plus de fragmentação cega pela "névoa".

Vários sonhos, nos quais apareço cega, propiciaram uma queda do desejo preso do olhar. São sonhos que anunciam o final da análise; porém, me pergunto como finalizar neste ponto de queda do desejo e me coloco ainda à espera de uma recuperação impossível. Finalmente o que aparece é algo mais desencarnado.

A inibição, que havia aparecido como o mais insuportável do sintoma, aparece nesta conjuntura como condição de gozo que protege em face do horror (gozo e defesa contra o mesmo). Como dizer as preferências, como formular um quero isso ou aquilo, é que se digo, já não me serve, já não é estimulante, já não serve ao gozo.

Protege diante do horror em três pontos precisos:

Primeiro: horror do desencarnado da sexualidade.

Segundo: horror diante do gozo materno – que o desejo dela seja dela mesma, que não tenha nada a ver comigo.

E, por último, como terceiro ponto, como analista: horror do ato, pois não se trata de cura.

Há uma dificuldade para desalojar esse gozo da situação analítica. Fazê-lo aparecer como saber supõe o desalojamento da inibição; perder a inocência, apresentar-se como podendo suportar isso, esse gozo ilimitado, que não ordena nada, definitivamente não se trata da cura.

Produziu-se então uma série de sonhos de angústia que evidenciaram a dificuldade de separação e finalmente dois deles preludiaram o final:

Primeiro sonho:

Estou sentada em uma cama, rodeada de cucarachas; quero descer, mas não posso, pois se eu descesse, pisaria nelas e se piso elas, fazem "CRAC".
"[…] E o que é crac?", pergunta a analista.
"[…] Um ruído".
Fim da sessão.

Segundo sonho:

Estou na estação do metrô em Paris para voltar para casa logo depois das sessões de análise. Tenho que olhar os mapas para ver por onde tenho que ir, mas apesar de tudo estar igual, de eu reconhecer o francês dos mapas e as indicações, tudo é diferente. Posso ler, mas não consigo entender os cartazes, nem interpretar os mapas. Tudo é igual, mas nada é o mesmo: […] impossível voltar!!!

Um umbral foi ultrapassado, não há como retroceder, é um ponto sem volta que inclui, como no sonho anterior, o sem-sentido.

A intervenção do analista, esse: "… talvez para você seja assim" se apresenta como crucial para a possibilidade de finalização da cura em dois sentidos diferentes:

Em primeiro lugar, "devolve a bola" ao campo do analisante. É algo assim como: "se você quiser", ou seja, há um passo a dar apenas quando se quer. Por outro lado, introduz algo do "não todo", porém sem a defesa, um "não todo" diferente, que permite consentir ao simbólico sem submeter-se à lógica do todo, resguardando o "não todo", mas sem a defesa com a que eu havia tratado de sustentá-lo durante toda a vida, desde a posição de objeção, de não submissão, de "não querer submeter-me a algo do não simbólico" e […] faz aparecer a névoa.

Toda a questão da sexualização do mundo, do esquecimento dos nomes com a carga de indefinição, de não me inteirar, por fora do fálico, sem limites, sem pontos de corte, remete ao gozo feminino e permite outra leitura muito diferente da problemática com a mãe, entendida até este momento como rechaço da feminilidade (ódio por tê-la traído menina).

Efetivamente o que eu chamava "desejo desfalecente", esse desejo que não se atinge, não é falta de desejo. O que dificultava o desejo, a sua realização, é toda a questão do ilimitado, a falta de concisão, a indefinição permanente, deslocalizado, sem pontos de corte. Isto é o que não dá lugar ao desejo decidido, pois este é limitado, precisa do corte.

Poderíamos dizer melhor que o que há, como verdadeiro problema, é uma falta de firmeza diante do real; é o passo a ser dado.

Fazer-se um nome com as insígnias do outro é outra forma de defender-se diante disso, diante do real do sem nome, do Outro que não existe, fazendo existir a "Cucaracha".

Isso é o que cai, não é necessário fazer existir a "Cucaracha", pois isso está aí, inclui o real do outro materno e esta queda permite posicionar-se de outra maneira diante desse real, sem defender-se tanto.

Também a análise tinha participado desta espécie de indefinição, sem grandes cortes, também como um contínuo, presidido por este gozo que só cede ao final.

O significante névoa surge aí para nomear o real. O real é essa névoa mesma que, longe de desaparecer, se mostra.

O passe é uma tentativa para que essa névoa não se dissipe, já que é o que permite sair da indefinição. Tentativa de preservar algo desse real que tende constantemente ao contrário – uma insistência do sentido que sempre volta –, uma tentativa de uma nova ligação para que algo disso, que se encontrou e que é tão valioso, não se perca.

O difícil é fazer permanecer a névoa, manter afastado o sentido.

A névoa garante o não todo, é o gozo que falta e que já se sabe que não está no Outro, já sabe que não tem que ir buscá-lo no Outro, porque está aí do lado do Um, porém, não é mais do que névoa.

Sonho pós-analítico:

Tenho um bonito trabalho preparado para apresentar, estou contente porque acredito que ficou muito bom. Há um suporte com microfone atrás de uma cortina. Começo a ler, mas saem sons descoordenados, como balbucios, procuro recomeçar, mas é inútil, os sons são desconexos. Eu leio, porém, sai algo irreconhecível. Desperto-me sem angústia, mas um tanto quanto perplexa.

Também para falar é necessário um recorte; articular fonemas supõe também recortar, delimitar, parar. Escreva-se o que escrever, por melhor que o faça, esse sem-sentido do lá, lá, lá não desaparece.

Minha analista disse:

Escreva!

Porém, por mais que se escreva, algo deste lá, lá, lá não só permanece, senão que cada vez que se escreve, se faz patente, toma consistência como dificuldade, esse algo que fica sempre por fora sem poder articular-se.

 

Terceiro

Desejo do analista:

Como sujeitos, poderíamos dizer: não somos mortais. Apenas ao descobrir-se como o objeto que um foi para o Outro, que a morte toma sua consistência, permitindo uma temporalidade diferente, que propicia a realização do desejo.

O final de análise permite pôr em evidência – na contingência do meu nascimento e no fato de que coubesse à minha mãe colocar-me o meu nome – a impossibilidade, a dificuldade materna para nomear-me, como um real próprio dela, e, ao mesmo tempo, como comentava anteriormente, o paradoxo de que não há significante que possa nomear o real do sujeito.

Isto permite, longe dos lamentos e das reclamações, sustentados nas significações diversas que o apelido "Cucaracha" manteve durante toda a análise, poder vislumbrar o objeto que havia sido para o Outro materno. A significação de "cucaracha" cai e o gozo cai do lado do sujeito.

O sujeito inventa para si mesmo um Outro, e, correlativamente, um desejo para esse Outro para escapar do horror que supõe saber-se objeto de gozo. É o atravessamento deste horror, essa posição de dejeto, que serve para que o analista possa se situar aí, como objeto para o paciente, porque sabe qual objeto foi para o Outro.

O desejo do analista preso a esta "morbidez", finalmente aparece com a névoa, esse real mesmo que já não está no Outro, que está aí, porém perdido e que permite ao analista não ir buscá-lo no analisante, mas sim deixar este lugar vazio. A questão é como mantê-lo aí, que a névoa não se dissipe.

O desejo de ser psicanalista se apresenta, geralmente, como um desejo de curar, de reparar, de arrumar aquilo que a mãe não conseguiu – furor sanandis, dizia Freud. Uma pessoa quer ser psicanalista para fazer pelo outro algo melhor do que fizeram para ela mesma. É assim que Lacan nomeia os desejos de famosos psicanalistas de sua época: um desejo maternal – foi dito por Lacan referindo-se a Winnicott, Klein etc.

Porém, o desejo de ser psicanalista, não só não é a mesma coisa que o desejo do analista, senão que é apenas desprendendo-se do primeiro – o que unicamente ocorre quando foi possível constatar a inexistência do Outro – que a pessoa pode aceder ao segundo.

O desejo de analista, como o avesso da posição de saber do psicanalista, é algo inédito no mundo.

O que quer dizer inédito?

Inédito quer dizer que não é algo que se possa encontrar na própria história, diferentemente do desejo de ser psicanalista.

Se dizemos que o analista apresenta um desejo inédito no mundo é porque ele não existe fora do dispositivo, e, diferentemente do desejo inconsciente, ele não é particular, mas faz a sua aparição com a análise mesma. O desejo de analista é o que resulta e o que se pode pôr em funcionamento uma vez que o percurso da cura desembaraçou o sujeito de sua crença no Outro, tornando-o responsável pelo seu próprio gozo, tanto daquele que tem quanto daquele que falta. Dizendo melhor, fundamentalmente do que falta, já que é o que permitirá não situar o "paciente" como objeto na busca deste gozo que falta, mas deixar este lugar vazio, permitindo ao analisante encontrar-se com esse desejo inédito, o qual, pela primeira vez, não será tomado como corpo.

Este desejo, ao não estar inscrito no inconsciente do sujeito, nem na sua história, não carrega nenhuma marca pessoal.

Coloca-se então um paradoxo ou um terceiro oximoro.

Dizíamos que é unicamente desprendendo-se do desejo de ser psicanalista que uma pessoa pode aceder ao desejo de analista, quer dizer, só se pode sustentar o desejo de analista uma vez que a pessoa se "curou" do seu desejo de ser psicanalista.

O desejo de analista não se sustenta em nenhum "querer", mas em uma posição ética que implica um "não retroceder", não retroceder diante do caminho percorrido, aceitar que apesar de já "não mais querer" ser psicanalista não há possibilidade de voltar atrás; o tempo inexoravelmente passou e se constitui como uma imposição que o sujeito se autoimpõe, a pessoa tem que ganhar o pão de cada dia, já não sabe fazê-lo de outra maneira a não ser atuando como psicanalista e, por momentos, conseguindo não dissipar a névoa, sendo analista.

Como eu já disse, desde sempre eu quis ser psicanalista; porém, hoje posso dizer que agora sim, posso imaginar-me fazendo outras coisas e que, se eu tivesse "outra vida" – é claro que não tenho –, eu poderia satisfazer-me de muitas maneiras diferentes. Hoje minha escolha, sem dúvida forçada, como todas as escolhas, é mais livre, apesar de eu continuar escolhendo o mesmo.

Dívida impagável com a psicanálise.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: camilavidal@hotmail.com

 

 

Tradução: Silvana Pessoa: Psicanalista. Mestre em Educação pela USP. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Membro do Fórum SP e Membro Honorário do Campo Psicanalítico – Salvador. Ensinante e coordenadora de atividades de transmissão nas FCCL-SP. Autora de diversos artigos em revistas nacionais e internacionais sobre a práxis e a teoria psicanalítica em intensão e extensão. E-mail: silvanapessoa@uol.com.br
Revisão da tradução: Luís Guilherme Coelho Mola
* AE da EPFCL (2015-2018). Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (Foro Santiago-Vigo). Docente das Formações Clínicas do Campo Lacaniano na Espanha.
1 Preferimos manter a palavra cucarachabarata em português –, pois este significante, sua homofonia, suas consequências e desdobramentos foram importantes neste testemunho. (N.T.)

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