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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.32 Rio de Janeiro jun. 2016

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO

 

Desenlace da transferência

 

Outcome of the transference

 

 

Bernard Nominé*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Collège de Clinique Psychanalytique du Sud-Ouest (França)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata-se, neste texto, de considerar a forma como a transferência pode se denodar no fim de um discurso analítico. A experiência do cartel do passe tendo produzido a nomeação de AE nos leva a examinar as consequências do equívoco do sujeito suposto saber. Chegando a essa constatação do equívoco do sujeito suposto saber, o analisando não pode mais contar senão consigo mesmo para elaborar aquilo que não pode se apreender de um outro, mas que só pode se inventar. É assim que a psicanálise pode ser transmitida. Ademais, este texto revisa outra via do desenlace da transferência, a via da transferência de trabalho, o que implica certa concepção da Escola.

Palavras-chave: Transferência, Equívoco do sujeito suposto saber, Cartel do passe, Saber como invenção, Transferência de trabalho, Escola.


ABSTRACT

The goal of the text is to consider the outcome of the transference at the end of an analytical discourse. The cartel experience of the pass having produced the nomination of AE leads us into examining the consequences of the mistake of the subject's supposed knowledge. Arriving at this conclusion of the mistake of the subject's supposed knowledge, the patient cannot any longer count on him/herself to elaborate what cannot be learned from somebody else, but just to invent it. This is how psychoanalysis can be transmitted. Besides, this text reviews another way of the outcome of transference, the way of work transference, which implies a certain conception of the School.

Keywords: Transference, Mistaking of the subject supposed to know, Cartel of the pass, Knowledge as invention, Work transference, School.


 

 

É verdade que, quando respondemos com muita pressa ao que nos é pedido, a resposta não costuma ser boa. Quando me pediram um título para este Espaço Escola, pensei em como se soluciona a transferência ao final de uma análise e respondi com o seguinte título: fim da transferência. Porém, no momento de trabalhar o tema, deparei-me com um título que não era bom. Não tenho certeza de que haja um fim da transferência ao final da cura. Pode ser que haja, mas, com frequência, não há. Por isso, o melhor título, sob o qual lhes apresento minha conferência, é: Desenlace da transferência, no mesmo sentido que falamos do desenlace de um drama ou de uma comédia.

 

Em Freud

Em seu texto Análise terminável e interminável, Freud não coloca em primeiro plano o desenlace da transferência como critério absoluto de um final de análise. Fala da decisão própria do analisante, com a qual o analista pode concordar desde que lhe pareça que bastante material inconsciente tenha sido clareado e que as resistências interiores tenham sido vencidas.

Freud nos apresenta duas vinhetas clínicas, sabe-se que uma delas trata de Ferenczi. É interessante, porque Freud nos confessa que seu analisante o criticou por não ter percebido sua transferência negativa. Ele se justifica dizendo duas coisas:

– a primeira: nessa época, não havia percebido a possibilidade de uma transferência negativa;

– a segunda: por mais que a houvesse detectado, não teria podido agir para ativá-la sem recorrer a um ato real, pouco amistoso, contra o paciente.

E acrescenta que "nem toda boa relação entre um analista e seu paciente, durante e após a análise, devia ser encarada como transferência; havia também relações amistosas que se baseavam na realidade e que provavam ser viáveis". Parece-me que essa pequena advertência de Freud vai mais além da justificativa. Às vezes, consideramos a transferência como sendo forçosamente um tipo de laço amoroso ou amistoso, enquanto que, para Freud, é somente o efeito da cura, é a resposta da neurose e é preciso curá-la como neurose de transferência.

A queixa de Ferenczi é também interessante, porque destaca que quem mais sabe da transferência não é o analista, e sim o próprio paciente. Frequentemente, ocorre que o analisante queira atenuar nele o efeito e o afeto da transferência. Na maioria dos casos, a transferência aparece claramente nos sonhos, mas, precisamente, os sonhos de transferência são os mais difíceis de relatar. Não raro, o analisante guarda-os consigo e os relatará o mais tarde possível, ao final do trajeto, quando decidirá acabar com isso para poder se despedir.

Caso releiam Análise terminável e interminável, verão que Freud não fala de liquidação da transferência, senão insiste sobre a liquidação dos conflitos pulsionais. Tal liquidação não corresponde forçosamente a uma liquidação da transferência.

 

Em Lacan

Precisamente no Seminário 10, Lacan zomba da estranha noção de liquidação da transferência. Cabe dizer que, no âmbito analítico, é uma crítica frequente que uns fazem a outros quando parecem muito submetidos àquele que foi seu analista ou, ao contrário, quando brigam com ele: "não liquidou sua transferência". Vale mencionar que os efeitos de transferência voltam à realidade cotidiana enfadonha das instituições analíticas. Lembro que, antes de sairmos da AMP, eu sonhava com uma escola livre desses fenômenos. Pensava que talvez tivéssemos que esperar terminar a análise para poder entrar na Escola. Isto foi, de certo modo, o mal-entendido com o qual se nos propôs o passe à entrada. Agora, deixei de sonhar com esse tipo de coisas. É óbvio que, na maioria dos casos, a transferência não se liquida completamente e nós, os analistas, temos que nos virar com esse fenômeno para poder continuar trabalhando em nossas comunidades.

Se liquidação da transferência equivale a liquidar o inconsciente, tratar-se-ia então de esvaziar o lugar do inconsciente. Coisa estranha! Não podemos dizer que, ao final do processo, já não há mais lugar para o inconsciente no sujeito analisado. Em um seminário de 1973-74, Lacan, falando daquilo que seria a ética do analista, diz que é uma ética que "se funda na maneira de ser, cada vez mais, fortemente tolo desse saber, desse inconsciente que, no fim das contas, é nosso único patrimônio de saber" (LACAN, 1973-74/inédito, Aula de 13/11/1973).

Então, é preciso distinguir o engano do amor de transferência e o ser tolo do inconsciente. No seminário ao qual me refiro, Lacan associa ser tolo do inconsciente com ser tolo do Pai e ser tolo do real.

Se a liquidação da transferência equivalesse a liquidar o analista, enquanto sujeito suposto saber, seria um paradoxo. Ao final do percurso, o analista adquiriu realmente um saber sobre seu analisante. Mas liquidá-lo poderia matá-lo, tal qual o aluno que mata seu professor e pega seu lugar. Certas análises acabam assim, mas esse tipo de saída demonstra o máximo da identificação ao analista. Se o analisante não consegue ir mais além da identificação, o amor de transferência transforma-se em ódio. O analisante logo se despede com seu ódio sem ter encontrado a verdade coberta atrás do amor. Porque o ódio, mesmo que seja a outra cara do amor, não é forçosamente a verdade coberta mais além da transferência. O ódio, parece-me, é a consequência de o analisante não admitir o fracasso de suas identificações ideais. Em vez de atravessar o plano da identificação, em vez de liquidar sua identificação ideal, prefere liquidar o analista.

No fim das contas, Lacan nos sugere que, se há liquidação, não é senão liquidação do engano com o qual a transferência leva ao fechamento do inconsciente. Ao final de uma análise, o analisante enfrenta a hiância que o sujeito suposto saber tampava. Que haja um saber que não procede de nenhum sujeito que o saiba, mas que é puro produto da estrutura. Que haja um dizer que se diga sem que se saiba quem o diz, diante desse encontro o pensamento se esquiva.

Mas a questão permanece aberta: o que acontece quando tropeçamos com o equívoco do sujeito suposto saber? Se Lacan colocou o equívoco do sujeito suposto saber como ponto essencial a ser alcançado ao final de uma análise, se funda nisso o desejo do analista e seu ato; isso implica que o descobrimento do equívoco do sujeito suposto saber não leva o analisante – que está a ponto de fazer-se analista para outro – a deixar de ser tolo do inconsciente.

Então, digamos que, ao final da análise, o que observamos, especialmente nos testemunhos que recebemos no dispositivo do passe, é que o analisante, nesse momento de fim de análise, já não precisa da presença de seu analista para ocultar o equívoco do sujeito suposto saber. Ou, mais precisamente, já não precisa da presença de seu analista para pôr em ato a realidade do inconsciente, já não precisa da presença de seu analista para continuar apostando no inconsciente, escutando-o e levando-o em conta.

Se pensarmos no próprio dispositivo do passe, o passante deve transferir ao cartel, e também à escola, a suposição que concernia a seu analista. Não é a mesma suposição, mas é ainda uma suposição, isto é, uma transferência. Do mesmo modo, podemos pensar que o testemunho não pode chegar até o cartel sem a passagem pelos passadores. Cada vez que conseguimos destacar as condições de uma nomeação possível, comprovamos que algo tinha acontecido no encontro do passante com os passadores. Não era um encontro formal com os encarregados do passe, mas um verdadeiro encontro que surtiu efeitos em ambas as partes. Por isso, penso que também há aí uma espécie de transferência do passante em relação aos passadores aos quais se supõe que estejam no mesmo tempo e no mesmo lugar no que se refere ao equívoco do sujeito suposto saber.

O que destaco aqui é que há encontros no dispositivo do passe. Encontros com quem? Com figuras do Outro a quem supomos que lembre a carne que todos fomos na origem, antes de que entrássemos no discurso como ser falante? Não creio. A presença desse Outro costuma manter-nos calados. No dispositivo do passe, foi possível, para mim, experimentar outro tipo de alteridade. Senti que o trabalho era possível entre nós, porque cada um de nós havia deixado de supor a existência dessa figura do Outro que nos faz calar.

Escrevi umas linhas sobre essa experiência na Wunsch nº 14. Retomo-as aqui.

Se me detenho a pensar naquilo que me chamou a atenção no testemunho do passante nomeado posteriormente AE, diria, em um primeiro momento, que foi a simplicidade e a humildade. Era o testemunho de uma trajetória de vida um pouco complicada, mas relatada sem patologia e, além disso, com um toque de humor que mostrava a distância tomada em relação à história.

A forma do relato soava-me um pouco como a escrita de García Márquez, isto é, um relato que trata de coisas da vida, mas livres de seu peso e articuladas entre si de modo divertido. Isso nos colocava em um lugar que não era o do Outro a quem se dirige uma queixa ou de quem se quer conseguir a comiseração. Era, assim penso eu hoje, o lugar do Outro a quem se dirige o chiste, ou seja, o Outro esvaziado da voz e, logo, onde o dizer encontra ressonâncias.

As escansões precisas do testemunho permitiam medir o impacto da psicanálise sobre os modos de gozo que foram modificados. As formulações originais e convincentes indicavam-nos, precisamente, como esse sujeito soube extrair-se de certos impasses. Esse testemunho não buscava nos convencer de que o passante tinha chegado ao fim de sua trajetória, satisfazendo os critérios epistêmicos que circulam na Escola. É por isso que formulei, depois de terminado o trabalho do Cartel do passe, que a humildade do testemunho tinha chamado minha atenção. O último ponto que nos convenceu foi quando soubemos que, ao final de um longo percurso de análise, o passante chegou à idade de aposentar-se de uma profissão que nada tem a ver com a psicanálise, mas decidiu atuar como psicanalista. O que mais esperamos para nos convencer? Era suficiente. A própria tonalidade do testemunho que impressionara os passadores dava certa ideia do que pode ser aquela satisfação do final de análise, sobre a qual discutimos em nossa comunidade. Então, disse-me: por que não? Certamente, nesse momento, cada membro do Cartel se compromete com um sim ou com um não. O sim compromete muito mais, evidentemente. Nesse momento, cada um se compromete levando em conta a posição dos outros quatro membros. Há ali um cálculo coletivo do qual se pode destacar o movimento retrospectivamente. Nesse momento, estamos sós, e a sombra de um Outro que poderia objetar nossa decisão deve, necessariamente, se apagar, da mesma maneira que se apagou esse Outro ao final da cura daquele que se oferece a essa experiência e que se apresenta ao procedimento do passe. Se ele o faz com a esperança do reconhecimento do Outro, os dados estão viciados. No que se refere aos passadores, se eles foram designados por seu analista, é porque eles também estão nesse ponto de desconstrução do Outro. Experiência pouco comum desse pequeno grupo efêmero, constituído de algumas pessoas em um tempo de suspensão no que se refere à sua alienação ao Outro, unicamente interessadas em tentar apreender um pedaço de real. A experiência desse pequeno grupo é a experiência da Escola.

Assim, espero tê-los convencido de que a Escola a quem se dirige o passante não há de ser o Outro de sua história, nem o Outro de sua neurose infantil, nem tampouco o Outro de sua transferência. É uma pequena comunidade composta de alguns outros, como dizia Lacan quando falava do analista que só se autoriza de si mesmo e de alguns outros… esses alguns outros devem ter se separado do Outro. Isto foi, no fim das contas, o mais importante que experimentei nesse cartel do passe que culminou em uma nomeação de AE: a experiência dessa pequena comunidade composta de alguns outros que, em um primeiro momento, considerei como órfãos do Outro. A figura do órfão pode nos remeter a uma perda imensa, à figura de uma criança abandonada. Mas não uso essa palavra nesse sentido. Somos todos órfãos em certa época da vida e, quando esse momento chega muito cedo, isso nos leva a certo comedimento.

Seja o que for, quero voltar a esse tema da separação do Outro e de suas consequências. Durante a cura, uma das funções do analista, enquanto sujeito suposto saber, é que o analisante conta com seu analista para continuar desejando saber, saber cada vez mais, enquanto todos preferimos ignorar. Então, ao analista compete-lhe querer saber. É um sujeito a quem se supõe que queira saber. O desejo de saber não é a norma, nos diz Lacan. A norma é a paixão da ignorância.

Entretanto, há aqueles que querem saber. Pensem, por exemplo, no âmbito universitário. Mas, geralmente, querem saber para obter reconhecimento e, mais além, poder. Lacan nos adverte de que eles são animados somente pelo desejo do Outro. Cito um trecho da aula de 9 de abril de 1974, do Seminário 21: "não é o desejo que preside o saber, mas o horror. Vocês me dirão que há pessoas que trabalham para conquistar uma cátedra. Mas, vocês compreendem, isso não tem nada a ver com o desejo de saber, trata-se de um desejo que, como sempre, é o desejo do Outro; o desejo do homem é o desejo do Outro".

Porém, em seguida, Lacan nota que, no âmbito da invenção matemática, houve alguns que quiseram saber, houve apaixonados. "Quero dizer que não era uma maneira de fazer-se valer na Sorbonne resolver os problemas da cicloide" (Lacan, aqui, refere-se a intercâmbios entre Pascal e outros matemáticos que se uniram para resolver um problema puramente matemático que não servia para nada na realidade dessa época) "houve tempos milagrosos, tempos que gostaria de ver reproduzir-se sob a forma dos psicanalistas, gostaria de ver reproduzir-se neles essa espécie de república que fazia com que Pascal se correspondesse com Fermat, com Roberval, com Carcavi, pessoas vinculadas entre si por algo que não se sabe o que é e que fazia com que houvesse gente que deseja saber mais e mais a respeito dessas coisas inverossímeis que se designam como cicloide. […] Essas pessoas estavam loucas por isso; e isso, nesse momento, não reportava nada ante nenhum Senhor; dava-lhes uma reputação estritamente entre eles, não saíam dali. Eles contribuíram com o objeto a, por certo, mas justamente sem saber disso. Apesar disso, realizaram melhor quanto o objeto era o objeto a; o realizaram tão melhor que, sem saber para onde iam, passaram pela estrutura que lhes disse, a saber: essa borda do Real" (LACAN, 1973-74/inédito, Aula de 09/04/1974).

Vocês notaram o interesse de Lacan por esse pequeno grupo, essa República do cicloide em torno de Pascal e de alguns outros. Poderíamos pensar que no umbral de tal República, digamos, dessa escola, haveria um pequeno cartaz no qual estaria escrito: "somente podem entrar aqui aqueles que se atreveram a seguir a estrutura até sua borda com o real". Entenderão que esse percurso supõe que tenha havido separação do Outro.

Se Lacan insiste nessa função da invenção – nesse mesmo seminário, Lacan diz que o saber se inventa –, essa invenção implica uma separação com o Outro. É o preço a ser pago para poder inventar. Por isso, existiu certo número de psicóticos entre os grandes inventores. São os que podem prescindir do Outro mais naturalmente. Para o neurótico é muito mais difícil inventar, pois supõe uma separação do Outro. Estruturalmente, a suposição que fazemos de que o Outro é quem sabe, é que nos permite continuar com a ignorância. Não nos predispõe à invenção.

Mas, justamente, se a psicanálise começa com a suposição de um saber no Outro, ao final do percurso, o analisante pode deixar seu analista, porque já não o considera como um sujeito suposto saber, o vê como objeto a, sem nenhum valor agalmático. Deixar de supor-lhe um saber, leva o analisante à invenção, ao menos a invenção do modo de sair da experiência. Quando o saber deixa de ser localizado no Outro, não há outro remédio a não ser tomar por conta própria o saber. Isso é o saber como invenção.

Por isso, no dispositivo do passe, ficamos atentos a esse saber inventado. O que impede o neurótico inventar o saber é o Outro. Ao Outro que nos ensinou tudo não lhe é agradável a invenção, ele a teme e a proíbe. Nenhum saber que não passe por suas vias! Então, para quem não chegou ao ponto de separação é impossível inventar o saber. Não lhe resta outro remédio a não ser repetir o saber do Outro. Logo, arrulha e nos adormece com a cançãozinha. O saber inventado acorda, é muito distinto do saber plagiado, copiado do Outro, adequado às normas do Outro.

O que Lacan inventou é o objeto a. Cabe dizer que aquele objeto só pode ser inventado. O Outro não tem nenhum saber sobre esse objeto. O analista também não. É o analisante que lhe entrega, pouco a pouco, ao analista, por meio da transferência, os dados desse objeto. A questão é que o próprio analisante não se dá conta disso, o faz apesar de si.

Então, se Lacan inventou o objeto a, teríamos que reinventá-lo cada um de nós? Creio que sim, de certo modo. É, mais ou menos, o que Lacan disse no encerramento de uma jornada de sua Escola sobre o tema da transmissão, em 1978. Disse que chegava a pensar que a psicanálise é intransmissível, o que é um problema, porque implica que cada analista seja forçado a reinveintar a psicanálise. "Isso implica que cada psicanalista reinvente o modo com o qual a psicanálise pode durar a partir do que conseguiu tirar (de sua experiência) por ter sido, por um tempo, psicanalisante."

O dispositivo do passe põe em evidência que o testemunho do passante é mais do que um testemunho. Deve ser a prova de que o passante toma seu próprio caso, seu percurso na análise, como lugar que abriga um saber. Isso é o que o anima a trabalhar sobre sua própria experiência. A suposição se deslocou. Mas, notem que isso não leva o passante a dar uma de quem sabe. Se o cartel nomeia o AE, não é para que seja tomado como mestre supremo. Seu passe se revelaria um impasse, até mesmo, uma fraude.

Lembro uma fórmula do passante a quem nomeamos. A meu ver, é um lapso muito importante. Relatava a seus passadores que, a partir de certo momento, ao final de sua análise, a suposição de saber havia se deslocado e disse: agora, eu sou o que sei. A sutileza do lapso demonstra a diferença entre dar uma de que sabe – eu sou o que sabe – e saber quem sou – eu sou o que sei – ou seja, sei quem sou.

Ao final dessa conferência, percebo que não falei da transferência de trabalho. Em certa época, costumávamos falar da transferência de trabalho como desenlace habitual da transferência e como laço entre colegas em nossa comunidade. Fui buscar em meus arquivos referências de Lacan sobre essa questão. Lacan pouco falou de transferência de trabalho. Encontrei somente uma referência. Está no "Ato de fundação", de 1964.

"O ensino da psicanálise somente pode transmitir-se de um sujeito ao outro pela via de uma transferência de trabalho." E acrescenta que os seminários, inclusive o seu, "não fundarão nada se não remeterem a essa transferência".

A transferência de trabalho, de que tanto falavam no âmbito lacaniano, não pode remeter a fenômenos de massa, como identificação ou submissão a ordens superegoicas. Quando vemos que todos trabalham na mesma linha, com a mesma perspectiva, usando as mesmas palavras, não acho que tenha a ver com a transferência de trabalho.

O termo transferência de trabalho mereceria esclarecimentos. A transferência de saber, agora sabemos o que é, situa no Outro o saber que não sabemos que, na realidade, é nosso. A transferência do objeto, também vemos o que é: situar no Outro esse objeto que nos estorva. Assim, transferência de saber e transferência do objeto agem no mesmo sentido, ou seja, do analisante ao analista.

Mas, falar de transferência de trabalho indica, a meu ver, que o que se transmite ao final da cura é o trabalho e se transmite do analista para o analisante que, ao final da cura, já não necessita da presença do analista para continuar seu trabalho analisante. Então, a transferência de trabalho não teria que fazer com que todos trabalhem no mesmo sentido, imitando um trabalhador ideal, figura do Outro da transferência.

A transferência de trabalho é outra coisa que a transferência à obra de Freud ou ao ensino de Lacan. Não basta supor o saber a Freud ou a Lacan e apoiar-se em seus trabalhos para testemunhar uma transferência de trabalho. Trata-se, antes, de se apoiar em seu próprio trabalho fundado na transferência estabelecida em seu próprio percurso na análise.

Para resumir, direi que, ao final da cura, o que observamos a partir do cartel do passe não é o fim da transferência, e sim seu desenlace. A transferência muda se desloca. O passante, ao trabalhar seu testemunho, supõe que possa encerrar um saber inédito; os passadores e o cartel do passe, ao escutá-lo, também supõem que possam ensinar-lhes algo novo. Tudo isso pode surtir efeitos na Escola. Os analistas podem apoiar-se no passe para sustentar seu interesse, cada um, por seu próprio trabalho e continuar supondo que alguns outros possam ensinar-lhes algo. Há uma espécie de reação em cadeia. No fim das contas, o dispositivo do passe parece-me ser o coração da Escola, tal qual o coração de um reator nuclear. Nesse núcleo fechado, que deve ser muito protegido, acontecem coisas importantes que surtem efeitos para todos.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: ber.nomine@free.fr

Recebido: 05/02/2016
Aprovado: 10/04/2016

 

 

Tradução: Maria Claudia Formigoni: Psicóloga. Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano – SP. Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. Especialista em psicologia hospitalar pelo HCFMUSP. Endereço: Rua Urussuí, 92 – cj. 46 – Itaim Bibi – São Paulo – SP – CEP: 04542-050 E-mail: mclaudiaformigoni@gmail.com
Revisão da tradução: Ida Freitas
* Psiquiatra, ex-residente dos Hôpitaux Psychiatriques. Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, da qual é um dos membros fundadores. Ensinante no Collège de Clinique Psychanalytique du Sud-Ouest (França) e ensinante convidado em diversas formações clínicas do Campo Lacaniano na Europa, América do Sul e Austrália.

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