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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.32 Rio de Janeiro jun. 2016

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO

 

Esperança e ato

 

Hope and act

 

 

Luciana Guarreschi*

Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Propõe-se questionar o lugar da esperança na direção dos tratamentos conduzidos por analistas lacanianos. A noção de esperança pressupõe em seu horizonte o Outro não barrado sendo, portanto, contrária ao ato analítico, crucial para os desenlaces do tratamento analítico.

Palavras-chave: Esperança, Ato, Desenlace.


ABSTRACT

The aim here is to question the place of hope in the conduct, although well oriented, of the Lacanian analysts. As a sign of absence and impotence, once you have the Other not impeded in his/her horizon, hope clearly positions itself against the psychoanalytical act.

Keywords: Hope, Act, Outcome.


 

 

Há esperança suficiente, esperança infinita – não para nós.

(KAFKA apud BENJAMIN, 1985, pp. 141-142)

 

Estas poucas páginas foram causadas por algumas inquietações em relação ao que costumamos chamar campo lacaniano, incluída aí a direção das curas de que nos ocupamos diariamente, acentuando seus desenlaces. Acresce-se a essas o fim de mais um ano de estudos, do qual o seminário trabalhado, O ato psicanalítico, vem bastante a calhar. Vou enumerar ditas inquietações no intuito de ser breve:

1. Em uma supervisão clínica, recolhi as consequências do (des)espero. A analista se vê decepcionada, ponto em que quase "deixa a paciente cair", já que, diante de mais uma volta da demanda, quando acreditava entrever a saída, a coisa não saiu como o esperado.

2. A lembrança de um extrato clínico: em um momento de virada, uma paciente de alguns anos de análise, depois de um mês afastada do tratamento imbuída a voltar ao "não quero saber nada disso!", chega visivelmente angustiada e anuncia, jogando-se no divã: "perdi a esperança!". Marco, a posteriori, o início do fim dessa análise nesse momento.

3. Um certo frenesi que se pode colher de trabalhos diversos de nossa comunidade, sobre os quais faço incidir uma pergunta: podem entusiasmo e esperança se confundir?

Inquietações que viraram questões, ainda bem condensadas, com meias respostas, quase anedóticas. Comecei por investigar a esperança. Como sabemos, a esperança já chega bem mal acompanhada, uma vez que fé e caridade são suas parceiras nas virtudes teologais da Igreja Católica. Do latim sperare, tem como significado primordial esperar pela felicidade, ter confiança em uma coisa boa no futuro. Nesse sentido, a esperança é indissociável de uma relação positiva com a noção de tempo: fazer dele nosso melhor aliado, poderia ser sua máxima.

Sigo me perguntando se esperança e temor são indissociáveis, pois que temor também envolve a dimensão tempo. Temer é o medo presente de um mal que poderá vir, no futuro. Quando não se teme nada, espera-se algo? E o que teme um analista? No seminário do Ato, Lacan é muito claro:

Eu o repito: se o ato analítico é precisamente isso a que o psicanalista parece opor o mais frenético desconhecimento isso está ligado […] à estimativa que o analista pode fazer daquilo que ele mesmo recolhe, nas consequências da análise, da ordem do saber (LACAN, 1967-68/inédito, aula de 29/11/1967, grifos meus).

O que acontece então com essa jovem analista? Ela esperava. Ela esperava sem saber ainda que "o jogo se constitui no inesperado", como diz a frase de Lacan (1965-66/inédito, aula de 19/05/1965), vocês a reconhecem, em Problemas cruciais para a psicanálise. Constitui-se no inesperado e disso é preciso saber. Freud (1937/1980) se preocupou, em "Análise terminável e interminável", com o que poderia atrapalhar o tratamento. Cito-o:

Em vez de nos indagar como se dá uma cura pela análise (assunto que acho ter sido suficientemente elucidado), deveríamos nos perguntar quais são os obstáculos que se colocam no caminho de tal cura (FREUD, 1937/1980, p. 252).

Penso que a esperança de um analista é um deles, provocando enlaces infinitizados.

Não se trata de apontar uma falha, um "errou"; a tarefa é árdua mesmo, e a esperança pode parecer um caminho doce. É árdua pelo que Freud já alertava a Ferenczi, a saber, que a frustração é um elemento inevitável, que pertence ao dispositivo analítico da cura e que, ademais, é necessária mesmo ao seu avanço. Só se esqueceu de avisar que a frustração (também) é do analista. As voltas infernais da demanda, repetições que elevam exponencialmente a decepção primeira, indelével, castração para chamá-la por seu nome, da qual o sujeito, por um lado, não vê a hora de se livrar e a qual, por outro lado, o analista e o final de análise não podem senão objetivar. É aqui que a fala recolhida em análise "perdi a esperança" pode ser indicativo de uma virada, já que esperança é signo de falta e impotência, uma vez que tem o Outro não barrado em seu horizonte. Boa coisa a se perder.

Se quisermos, em Lacan (1967-68/inédito, aula de 13/03/68), cito-o:

Na psicanálise, não é de um "conhece-te a ti mesmo" que se trata, mas precisamente da apreensão do limite desse conhece-te a ti mesmo, porque esse limite é, propriamente, de natureza lógica e está inscrito no efeito de linguagem que ele sempre deixa de fora […] (LACAN, 1967-68/inédito, aula de 13/03/68, grifos meus).

Para os fins que me interessam, grifo apenas "apreensão do limite". Como disse, a tarefa é árdua. Mas sem essa apreensão, nada de desenlace.

Trata-se de ver como podemos, ainda que bem orientados, estar sob o que Lacan (1967-68/inédito) chamou de a fantasia do chalé da montanha (para quem não sabe ou não lembra, é a maneira como Lacan expressa, em vários momentos do Seminário 15, o chamado "instinto clínico" do analista acerca da naturalização do encontro sexual entre um homem e uma mulher). Estamos nós, lacanianos, já longe disso? Ou o entusiasmo tomou seu lugar? Ah, o entusiasmo… Essa veemência manifestada na realização de algo… Pois bem, ela também tem suas raízes, por assim dizer, religiosas. Na Antiguidade, era dita como um estado de exaltação do espírito, de comoção profunda da sensibilidade de quem recebeu, por inspiração divina, o dom da profecia ou da adivinhação (HOUAISS). Não, nem o entusiasmo pode ser esperado, quem dirá, garantido.

Vejam bem, não se trata de pessimismo ou fatalismo, mas é que cultivar a esperança lá onde há impossibilidade, não há de ser permitido entre nós. Em "Televisão" (LACAN, 1973/2003), J.-A. Miller pede a Lacan que responda ou reitere as três perguntas kantianas que resumem o "interesse de nossa razão", quais sejam: Que posso saber? Que devo fazer? Que me é lícito esperar? Atenho-me à resposta de Lacan à última pergunta:

Quanto a "o que é lícito esperar", devolvo-lhe a pergunta, isto é, entendo-a, desta vez, como vinda de você. […] Como ela me diria respeito sem que me dissesse o que esperar? O senhor pensa a esperança como não tendo objeto? […] Espere o que lhe apetecer. Saiba apenas que, por várias vezes, vi a esperança – aquilo a que se chama os róseos amanhãs1 – levar ao suicídio, pura e simplesmente, pessoas a quem eu prezava tanto quanto a você (LACAN, 1973/2003, p. 540).

Não satisfeito, ele prossegue:

Para que a pergunta de Kant tenha sentido, eu a transformarei em: de onde se espera? […] A psicanálise certamente lhe permite esperar elucidar o inconsciente de que você é sujeito. Mas todos sabem que não incentivo ninguém a isso, ninguém cujo desejo não esteja decidido […]. A única chance que ex-siste decorre apenas do feliz acaso [bon heur], com o que pretendo dizer que a esperança não adiantará nada, o que basta para torná-la inútil, isto é, para não permiti-la" (Ibid., p. 541, grifos meus).

Não há esperança: há acaso e há ato, neste "não permiti-la". Se quisermos ser modernos: #esperançososnãopassarão.

Termino com um pequeno recorte de um filme, com todas as limitações que uma exemplificação como essa possa conter. Vejo uma reprise de Batman, de 2012, O cavaleiro das trevas ressurge. Machucado e recuperando-se aos poucos, ele está em uma prisão, que é uma espécie de poço, o Poço dos Lázaros, cuja única saída se dá por meio de uma escalada. Nessa escalada há um salto a ser dado, o qual não é grande, o que encoraja muitos presos a, todas as manhãs, recolherem alguns pertences, amarrarem na cintura uma corda que está presa a uma altura média no paredão a ser escalado e tentarem a sorte. Dia após dia, eles não saem, caem, mas não sofrem muitos danos, já que a corda os impede de se esfacelarem no chão. Bruce Wayne também faz suas tentativas, em vão. Certa manhã, em um ímpeto, se arrisca novamente, seminu, sem pertences, sem corda na cintura. Desperta e vai. E sai! O salto é perfeito, desses que a fantasia do entusiasmo pode fazer crer existir, juntamente com os livros de autoajuda e alguns textos apoiados em Lacan. Mas é Hollywood, a coisa passa despercebida. O que não passa é que a corda em que o sujeito acredita se equilibrar, a esperança, é sempre curta, puxando aquele que almeja sair de suas prisões, para dentro delas.

 

Referências

BENJAMIN, W. "Franz Kafka – A propósito do décimo aniversário de sua morte" In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.

FREUD, S. (1937). "Análise terminável e interminável" In: FREUD, Sigmund. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980.         [ Links ]

LACAN, J. (1967-68). O seminário, livro 15: O ato psicanalítico, inédito.         [ Links ]

__________. (1973). "Televisão" In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: guareschi.lu@gmail.com

Recebido: 10/02/2015
Aprovado: 25/04/2016

 

 

* Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo.
1 Gabriel Péri – Les lendemains qui chantent. Sua autobiografia, publicada em 1947, contém sua carta de adeus, escrita na véspera de sua execução. Esta carta contém a seguinte frase: "Eu ainda acredito, esta noite, que meu querido Paul Vaillant-Couturier tinha razão de dizer que o comunismo é a juventude do mundo e que ele prepara os róseos amanhãs", de onde provém o título da obra.

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