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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.32 Rio de Janeiro June 2016

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO

 

"A morte da amada": do luto romântico ou da morte como bom encontro1

 

The death of the beloved woman: of the romantic mourning or death as a good encounter

 

 

Miriam Ximenes Pinho

 

 


RESUMO

Na prática clínica, com frequência nos deparamos com sujeitos mergulhados em um luto romantizado impossível de finalizar. Esses lutos apaixonados e duradouros lembram sobremaneira o fascínio pela morte e os grandes lutos dramáticos que marcaram os tempos do Romantismo, no século XIX. Que se passa nesses lutos? Poderia a concepção romântica do amor lançar-lhes alguma luz? Em que medida essa figura do amor faz função no luto? Com o intuito de precisar essas inquietações recorro à ajuda preciosa da literatura no trilhamento de Freud e de Lacan (1958-59/2002, p. 262) para quem as "criações poéticas engendram mais do que refletem as criações psicológicas".

Palavras-chave: Luto, Romantismo, Luto romântico, Psicanálise.


ABSTRACT

Very frequently in clinical practice we meet subjects drowned by a type of romanticized mourning, impossible to finish. These situations of passionate and enduring grief greatly resemble the fascination with death and the great dramatic cases of mourning that marked the age of Romanticism in the nineteenth century. What happens in this type of mourning? Could the romantic conception of love shed some light on them? To what extent this figure of love operates in the mourning process? In order to carefully discuss such concerns, I turn to the precious help of literature, following the trail of Freud and also of Lacan (1958-59/2002, p. 262) for whom "poetic creations engender more than reflect the psychological creations".

Keywords: Mourning, Romanticism, Romantic mourning, Psychoanalysis.


 

 

A Morte da Amada

Da morte ele sabia quase nada:
que nos toma e nos cala de repente.
Como a amada não fora arrebatada,
antes se desprendera docemente
do seu olhar para a morada escura,
e como percebeu que à outra vida
como uma lua plena a formosura
da visitante fora concedida,
dos mortos se tornou tão familiar
que os viu como parentes através dela;
deixou os outros a falar,
sem neles crer; chamou esse lugar
bem-vindo, sempre doce, e pelos pés
da amada o começou a palmilhar.

(Rainer Maria Rilke, 1908)

 

Há tempos que na prática clínica, mas não só, tenho me deparado com sujeitos mergulhados em um luto melancolizado2 impossível de finalizar. No campo social, essa observação não é nova, pois já na década de 1950, o antropólogo Geoffrey Gorer (1967, p. 85) assinalou que a progressiva dessocialização do luto no século XX havia produzido o prolongamento e/ou agravamento de suas manifestações. O caso extremo é aquele em que o luto beira à "mumificação". Isto é, alguns enlutados se portam como os antigos egípcios que desenvolveram técnicas para proteger seus mortos da decrepitude natural; esses sujeitos cultuam não só as lembranças do falecido, mas também seus referentes. Da prática clínica, vem à lembrança uma mulher profundamente pesarosa que preservava intactos desde o lençol na cama até a escova de dentes do falecido, mais de um ano após sua morte.

Esses lutos apaixonados e duradouros lembram sobremaneira o fascínio pela morte e os grandes lutos dramáticos que marcaram a era do Romantismo, no século XIX. Os traços dessa relação enigmática com a morte aparecem belamente traduzidos na poesia de Rilke que abre e dá título a este estudo. Que se passa nesses lutos? Poderia a concepção romântica do amor lançar-lhes alguma luz? De que se trata esse traço romântico que enlaça intimamente o amor e a morte? E por fim, em que medida essa figura do amor faz função no luto, o (des)enlaça? Com o intuito de precisar essas inquietações interrogantes recorro à ajuda preciosa da literatura (romântica) no trilhamento de Freud e também de Lacan (1958-59/2002, p. 262) para quem as "criações poéticas engendram mais do que refletem as criações psicológicas".

É fato conhecido que a dor e o desespero diante dos infortúnios no amor impulsionam ou mesmo precipitam não só a criação literária, mas a grande maioria dos pedidos de análise. O drama do amor e as dificuldades de despedir-se encontram na morte o seu ponto de irredutibilidade. Entretanto, sabemos que não é nada fácil abandonar algo que amamos. A libido se apega a seus objetos e não os abandona de bom grado "mesmo quando dispõe de substitutos […]. Isso, portanto, é o luto" (FREUD, 1916/2010, p. 250).

No luto, trava-se uma longa e dolorosa batalha contra a renúncia do objeto perdido. Até que por fim, "tendo renunciado a tudo que perdeu, ele [o luto] terá consumido também a si mesmo, e nossa libido estará livre […]" (Ibid., p. 251). Em poucas palavras, na versão de Freud (1917/2010, p. 175), o luto realizaria o trabalho – "trabalho de luto" – de retirar toda a libido investida no objeto a mando dos decretos da realidade. Trata-se de um lento trabalho rememorativo ancorado no eu e que se dá entre o imaginário e o simbólico (BERTA, 2010). A finalização do luto implica a renúncia psíquica do amado perdido. Mais tarde Freud (1923/1987, p. 43) dirá que os laços libidinais que ligavam o objeto ao eu serão daí em diante substituídos por traços identificatórios. Esse destino dará ao objeto perdido alguma sobrevivência que não o deixará tão perdido assim.

A morte, assim como o sexo, é da ordem do irrepresentável; assim, por mais que nos esforcemos para tentar imaginar a nossa própria morte, só o conseguimos na condição de observadores, de vivos portanto (FREUD, 1915). Foi diante dessa impossibilidade que o homem incorreu em compromissos conciliatórios: por um lado admitiu a própria finitude, mas por outro recorreu às crenças e práticas rituais (mitos e ritos) concebidas para apaziguar a angústia ante a ameaça de aniquilação. Já a morte de outra pessoa, se amada, nos causa um total colapso, nos recusamos a substituí-la como se algo em nós tivesse morrido junto: "Enterramos com ela todas as nossas esperanças, ambições, alegrias, ficamos inconsoláveis e nos recusamos a substituir aquele que perdemos" (Ibid., p. 131).

É curioso que essa atitude cultural-convencional dramática diante da morte de alguém querido que nos parece tão óbvia e familiar, a se crer no historiador Phillipe Ariès (1981), é um modelo de luto historicamente datável e não remonta senão ao fim do século XVIII, momento do nascimento, na Europa, do Romantismo. Enquanto movimento artístico, político e filosófico, o Romantismo surgiu em plena ascensão da classe burguesa expressando uma nova onda de sensibilidade passional incontrolável e despida de razão em resposta à lógica racionalista e a objetividade do Iluminismo (DE NICOLA, 1985).

Herdeiro do amor cortês, uma versão medieval do amor romântico, o Romantismo celebra os amores abrasados repletos de obstáculos que, de modo geral, conduzem a um fim trágico. O sujeito romântico é essencialmente "tormenta e ímpeto", mote levado às últimas consequências na obra inaugural do romantismo alemão, Os sofrimentos do jovem Werther, publicada por Goethe em 1774. A trágica história de amor do protagonista desencadeou uma onda de suicídio entre os jovens europeus. O suicídio, assim como o álcool e o ópio – figurações da morte –, aparece entre as mais desejadas das fugas românticas.

De fato, os tempos românticos carregam um verdadeiro fascínio pela morte. Amor e morte se conjugam em íntima relação. Daí deriva a observação de Ariès (1981, p. 446) de que o Romantismo é o " tempo das belas mortes", tempo em que os estertores da agonia foram envelopados pelas imagens sublimes da "doçura narcótica" que se almeja alcançar. Tempo ainda das grandes dramatizações de luto, do culto exaltado dos mortos e das peregrinações ao cemitério.

À antiga crença cristã da morte como repouso dos justos3 à espera do julgamento no fim dos tempos, a lírica romântica agrega ideias novas de paz maravilhosa, felicidade e ainda... a recompensa de reunião, por toda eternidade, com os seres amados (ARIÈS, 1981). Em Werther já aparece a ideia da morte como reencontro imediato com Deus e com os queridos: "Vou ter com meu Pai, com teu Pai. Queixar-me-ei a ele, e ele haverá de me consolar até a tua chegada, quando voarei ao teu encontro, cingir-te-ei, ficando unido a ti em presença do Eterno, num abraço infinito" (GOETHE, 1774/2011, p. 165).

O Romantismo inaugurou um novo tipo de sentimentalidade, baseado na impossibilidade de se esquecer dos mortos. Se a morte é a promessa de paz e encerramento suave dos tormentos da vida, para os que ficam a dor da separação é mais deplorável do que a morte em si e a morte de si. O sentimento do outro assumiu uma primazia inédita: das preocupações com a própria morte passou-se para o cuidado e preservação da vida do outro, ser essencial cuja falta é intolerável (ARIÈS, 1981).

No fim do século XIX, Freud (1893-95/1987, p. 173) acolhia com desconfiança essa exagerada preocupação com o bem-estar do outro.

Qualquer pessoa cuja mente seja ocupada pelas mil e uma tarefas envolvidas na prestação de cuidados a pessoas enfermas, […], adotará, por um lado, o hábito de suprimir todos os sinais de sua própria emoção, e por outro, logo desviará a atenção de suas próprias impressões, visto não ter tempo nem forças para apreciá-las devidamente.

A doação sem limites se constitui em uma espécie de medida protetiva contra, não só a angústia da própria finitude, mas também contra as inquietações advindas da ambivalência afetiva (amor e desejo de morte) para com aquele de quem cuidamos. E se acontecer de o doente vir a falecer, o período de luto será agravado por autorrecriminações e culpa infundadas oriundas dos desejos de morte inconsciente (FREUD, 1915/2010). Nos "Estudos sobre a Histeria", Freud (1893-95, p. 174) registrou o curioso caso de uma conhecida sua que celebrava anualmente "festivais de recordações". Esta senhora – assim como Elizabeth von R. e Anna O. – havia cuidado obsequiosamente de alguns doentes até o fim e após cada perda, em estado de completo esgotamento,

[…] iniciava-se nela um trabalho de reprodução que mais uma vez lhe colocava diante dos olhos as cenas da doença e da morte. Todos os dias ela repassava cada uma daquelas impressões, chorava e se consolava. […] A situação inteira lhe passava pela mente em sequência cronológica. […] Além dessas explosões de choro com que ela compensava o atraso e que ocorriam logo após o término fatal da doença, essa senhora celebrava festivais anuais de lembranças no período de suas várias catástrofes, e nessas ocasiões sua nítida reprodução visual e suas expressões de sentimentos se atinham rigorosamente às datas exatas.

A observação desse e outros casos certamente contribuiu para a construção da teoria do luto que aparece em "Luto e melancolia". Neste, conforme já assinalado, o trabalho rememorativo realizado em detalhes é o cerne do trabalho de luto, sua via elaborativa. E Freud prossegue:

[…] uma vez encontrei-a chorando e perguntei-lhe amavelmente o que acontecera naquele dia. Ela repeliu minha pergunta, um pouco irritada: "Não foi nada", disse, "foi só que o especialista esteve aqui hoje novamente e nos deu a entender que não havia mais nenhuma esperança. Não tive tempo de chorar por causa disso na hora". Referia-se à última doença do marido, que falecera três anos antes.

O culto dos mortos andava realmente em alta e já se fazia sentir sua tendência – que se consolidou no século XX – ao cultivo privado e pessoal das lembranças em detrimento do culto público, os rituais sociais. Por essa época, um culto espontâneo e secularizado dos mortos se expandia, e a "segunda existência" do morto era assegurada agora, não mais no além-religioso, mas na memória daqueles que o conheceram e também nos objetos que ele deixou ou que a ele remetem, tais como fios de cabelo, joias, túmulos, fotografias4 (ARIÈS, 1981, p. 589). Mementos (do latim, "lembra-te") que funcionam como objetos fetiches, os substitutos dos ausentes. Eles se constituem em signos que reanimam os mortos dando-nos a ilusão de sua presença. A partir do século XIX, é como se todos, devotos e laicos, passassem a acreditar na continuação dos laços terrenos após a morte.

O apego a esses objetos gera a necessidade de preservá-los, e a devoção pode se fixar em um luto melancolizado, "mumificado", impossível de elaborar. O caso célebre é o da Rainha Vitória, que adotou de modo permanente, aos 42 anos, os trajes de viúva em memória do falecido esposo, o Príncipe Albert. Inconsolável, nas quatro décadas seguintes, tornou-se reclusa dedicando-se ao cultivo das lembranças e pertences do Príncipe. Todas as manhãs, a seu pedido, repetia-se o ritual de preparar suas roupas e trazer sua água de barbear como se ele fosse retornar a qualquer instante (GORER, 1967). Seu luto romântico influenciou toda a moda e a etiqueta de luto da época.

Nesses exemplos clínicos, históricos e literários, a morte é saudada como bon-heur/bonheur,5 a boa hora, a boa chance, o bom encontro, a felicidade. A morte romântica é desprendimento suave da vida, como se lê na bela poesia de Rilke (1908/2013); "um lugar bem-vindo, sempre doce" que promete restituir, para toda a eternidade, o "abraço infinito" dos amantes sonhado por Werther. Em suma, no Romantismo a morte permite ao amor retornar ao Um.

Alain Badiou (2013, p. 20) distinguiu três figuras principais do amor: a concepção romântica, "focada no êxtase do encontro"; a concepção comercial ou jurídica, que faz do amor um contrato entre dois indivíduos livres que dizem que se amam, "mas atentos à igualdade da relação, ao sistema de benefícios recíprocos etc."; e a concepção cética, que considera o amor uma ilusão. Badiou anunciou uma quarta, que é a sua própria filosofia do amor e que não se reduz a nenhuma das anteriores.

Segundo sua visão, o amor é uma construção de verdade "sobre um aspecto bem específico, a saber: o que é o mundo experimentado a partir do dois, e não do um? O que é um mundo, examinado, praticado e vivenciado a partir da diferença, e não da identidade?" (Ibid., p. 20). O amor proposto é disjunção, separação, "simples diferença entre duas pessoas" (Ibid., p. 23).

Na mitologia romântica, está-se diante da "cena do Um" e não da "cena do Dois", pois "o amor é consumado e consumido no momento do encontro, momento de uma exterioridade mágica ao mundo tal como ele é" (BADIOU, 2013, p. 24). Em outras palavras, trata-se de uma visão fusional do amor que "não raro leva à morte […] porque o amor foi consumado no inefável e excepcional momento do encontro e, depois disso, já não há como retornar ao mundo, que se mantém externo à relação" (Ibid., p. 25).

Igualmente crítico dos ideais fusivos do amor, Lacan (1972-3/2008, p. 52, grifo do editor), no Seminário 20, ironiza: "Nós dois somos um só. Todo mundo sabe, com certeza, que jamais aconteceu, entre dois, que eles sejam só um", posto que é impossível sair-se de si mesmo, argumenta. Esse Um participa da miragem narcísica – "miragem do Um" – que nos faz crer não só que somos uma unidade, mas que, por meio do amor (narcísico) é possível fazer Um com o objeto identificando-se a ele. Entretanto, esse amor que se orienta pelo desejo de fazer Um só está condenado, cedo ou mais tarde, a esbarrar na própria impossibilidade de sua missão: "O amor é impotente, ainda que seja recíproco, porque ele ignora que é apenas o desejo de ser Um, o que nos conduz ao impossível de estabelecer a relação dos... A relação dos quem? – dois sexos" (Ibid., p. 13, grifo do editor).

Não há relação sexual. O que vem suprir a ausência da relação sexual é o amor. Suplência, insisto. Pois Lacan não diz que o amor nos cura da inexistência da relação sexual, como que a suturar essa falta, mas sim que ele surge em suplência à constatação dessa impossibilidade. É desse modo que Lacan (Ibid., p. 75) interpretará o amor cortês: "O que é isso [o amor cortês]? É uma maneira inteiramente refinada de suprir a ausência de relação sexual, fingindo que somos nós que lhe pomos obstáculos. É verdadeiramente a coisa mais formidável que jamais se tentou. Mas como denunciar seu fingimento?".

No Seminário 22, Lacan (1974-75/inédito) denuncia a propagada relação romantizada do Príncipe Albert com a Rainha Vitória6 para ilustrar "essa verdade da não relação sexual". A se acreditar na biografia escrita por Lytton Strachey, o príncipe não tinha nenhuma inclinação pelas mulheres, e por uma fatalidade caiu nas mãos de uma mulher da "envergadura excepcional da Rainha Vitória". Sua morte precoce possivelmente o salvou do constrangimento de ver-se tragado pelas consequências dessa (não) relação sofrendo a mesma sina do Conde Essex: "Defuntou-se bem cedo com uma morte que se chama natural, mas espero que vocês olhem isso bem de perto. Parece-me, afinal, a mais maravilhosa coisa que se possa ter como anúncio dessa verdade que encontrei sem isso, enfim, essa verdade da não relação sexual".

O Romantismo fez da morte um modo elegante de se disfarçar os desapontamentos a que todo amor está condenado, uma saída para a ausência de relação sexual. De que outra maneira seria possível garantir-lhe a (boa) duração, sua pretensão à imortalidade? Conforme observou Badiou (2013), no amor romântico o encontro rouba quase toda a cena, sobrando muito pouco para tratar de sua duração. De modo geral, a história termina no casamento ressoando o "felizes para sempre" dos contos de fada (vide os romances de Jane Austen) ou termina com a morte precoce de um dos protagonistas (A dama das camélias, Werther…). Na literatura romântica o amor, mais forte que a morte, atravessa o túmulo (como pode ser visto no aclamado romance do além "O morro dos ventos uivantes") e continua por toda a eternidade.

No céu dos românticos, a morte é menos obstáculo, disjunção, do que restituição da comunhão perdida: "... Chamou esse lugar bem-vindo, sempre doce, e pelos pés da amada o começou a palmilhar" (RILKE, 1908/2013, p. 213). A morte se mostra como o garante do bom (des)enlaçamento, ainda que falte a substância do corpo para que se possa gozar e fazer gozar, privilégio dos vivos. Se o amor é aquilo que supre a ausência da relação sexual, a morte parece estar a serviço dessa mesma função, ali onde o amor ameaça mostrar seus limites.

O amor, diz Lacan (1972-73/2008, p. 100), é um acontecimento contingente – aquilo que "para de não se escrever" – logo, por princípio não programável e não mercantilizável. O encontro amoroso surpreende na medida em que, por um momento, dá a ilusão de que a relação sexual cessou de não se escrever, "ilusão de que algo não somente se articula, mas se inscreve, no destino de cada um, pelo que, durante um tempo, um tempo de suspensão, o que seria a relação sexual encontra no ser que fala, seu traço e sua via de miragem" (LACAN, 1972-73/2008, p. 156). Se por um instante fortuito o amor escreve suas letras – oh, bonheur – suspendendo temporariamente o exílio da relação sexual, não é de se estranhar que os amantes tentem esticar esse momento na esperança de fazê-lo passar à ordem do necessário, ainda que seja no para além da morte.

"Será que o amor é isso: ter feito um pedaço de caminho juntos?", se interroga Lacan (1973-74/inédito) sobre os mistérios da duração do amor. Pode ser que "no horizonte do amor o avô e a avó" ainda estejam juntos como parceiros de caminhada. Pode ser que aconteça, não é impossível, mas não há garantias. O para sempre "é sempre por um triz", depois que o encontro acontece ninguém sabe o seu desfecho, o triz está sempre lá no horizonte e "faz parte do amor", diz Prates Pacheco (2015, p. 39).

O romantismo se fia na vida além para garantir a eternidade do amor. Vem de Freud (1915/2010) a observação sobre a mudança de atitude que assumimos perante o morto: nos abstermos de toda crítica e relevamos os seus erros a ponto de a consideração pelo morto estar acima da verdade e até mesmo da consideração pelos vivos. Com efeito, só a morte pode cristalizar a experiência amorosa, poupando-a do "triz", dos desgastes e limites que lhe são próprios. Um luto que se afigura romântico parece contar com a promessa de que, no depois da morte, o amor não para, não para, não parará nunca mais de se escrever. Passa necessariamente a ser imortal.

Ao considerarmos que o luto romântico busca suprir o real do sexo, poderíamos também considerar que a mesma sorte se dá em relação ao real da morte?

Lacan (1958-59/2002, p. 356), no Seminário 6, acentuou que não é qualquer perda que nos deixa de luto, mas somente a "morte de um outro, que é para nós um ser essencial". Essa perda abriria um "furo no real",7 e o sujeito mergulharia na vertigem da dor a ponto do desfalecimento. A desordem provocada por um luto-furo-no-real faz o sujeito convocar todo tipo de coisas a que se possa agarrar – imagens e significantes – para fazer frente a esse furo aberto na existência.

Ao furo no real, o sujeito responde lançando um apelo a todo o sistema significante. Acontece que, conforme acentuou Allouch (2004), ainda que imagens e todo o jogo simbólico possam ser lançados nesse furo, este é um lugar impossível – impossível, um dos nomes do real – de preencher. O trabalho de luto está precisamente às voltas com essa impossibilidade em que nada ou ninguém pode vir plenamente satisfazer esse lugar deixado vazio. O candidato à substituição carregará sempre a marca de ser uma outra coisa.

O romantismo é uma resposta, dentre outras, que os homens se inventaram em face do impossível da morte, ao impossível do sexo. Com efeito, a retórica romântica apazigua as dores da separação com a promessa de restituição, por toda eternidade, dos amores terrenos perdidos. O encontro bem-aventurado com o objeto existe e está disponível no para além da morte. Trata-se de uma ideia bastante sedutora na medida em que produz uma certa complacência com a morte, mas, deixemos claro, com a morte-felicidade, a morte-comunhão.

Porém, por mais encantadora que seja, fiar-se totalmente nessa promessa romântica tem por contrapartida fixar o enlutado em uma espera sem fim, uma espera pelo (não) reencontro. O luto fica em suspensão porque a morte não implica separação. No luto romantizado, o culto ao morto e aos seus referentes dá consistência à relação com alguém que, conforme a sabedoria popular, "está morto, mas não enterrado". É como se, com esse luto, se visasse dar provas de sua (não) existência.

Na obra Erótica do luto, Allouch (2004, p. 387), a partir de Lacan, apresenta uma versão de luto cujo desfecho implica um ato em que o enlutado efetuaria sua perda suplementando-a com um "pequeno", mas precioso "pedaço de si": "Luto não é somente perder alguém […], é perder alguém perdendo um pedaço de si". O autor coloca de outro modo a problemática do objeto no luto. Tratar-se-ia de um objeto (de)composto em (1 + a). Efetuar um luto a partir de um ato é uma operação radical na medida em que implica ceder em suplemento à perda sofrida um pequeno pedaço, sem qualquer possibilidade de recuperação futura. Esse ato joga contra as pretensões restitutivas do luto romântico, pois a oferenda de luto "graciosamente sacrificada" ao morto (à morte) é sem compensação, é uma perda que se dá às secas, uma "perda seca" (Ibid., p. 11).

Sem a perda desse suplemento, a escrita subjetiva do luto não se encerraria e estaria aberta a repercussões, sejam os fenômenos de luto, o suicídio do enlutado, os lutos mumificados...: "só estando ele mesmo perdido é que esse suplemento satisfaz a função de possibilitar a perda desse alguém que foi perdido. Assim, ele cessa de possivelmente aparecer, tal como um fantasma ou uma alucinação" (ALLOUCH, 2004, p. 389).

Um ato separador e simultaneamente instaurador das mudanças na relação com o objeto perdido abre para o sujeito a possibilidade de recuperar as vias de seu próprio desejo. No Seminário 10, Lacan (1962-63/2005) reconsidera a função do luto a partir do objeto a, causa do desejo. Se em Freud o trabalho de luto lida com a tarefa de consumir pela segunda vez a perda do objeto perdido, Lacan (Ibid., p. 363) propõe uma versão idêntica e ao mesmo tempo contrária a essa ideia.

Quanto a nós, o trabalho de luto nos parece, por um prisma simultaneamente idêntico e contrário, um trabalho feito para manter e sustentar todos esses vínculos de detalhes, na verdade, a fim de restabelecer a ligação com o verdadeiro objeto da relação, o objeto mascarado, objeto a.

Em suma, efetuar um luto implica essencialmente uma separação que muda a relação que se tem com o morto e com seus referentes. Nesse sentido, não se trata de esquecê-lo ou de não conviver de jeito nenhum com seus signos – muitos enlutados temem que "seguir a vida", outro modo de falar de fim de luto, implica esquecimento ou traição –, mas encontrar para o morto um outro lugar que não este, ilusório, de ser tomado como o objeto causa de desejo a ponto de fazer de sua morte a causa que (des)enlaça o sujeito em um luto sem fim.

Para finalizar essas breves anotações sobre o luto romântico, recorro novamente a Rilke (2001, p. 21) cuja voz poética agora se eleva não mais para cantar as virtudes dos mortos e da morte, mas para exortar as "amorosas abandonadas" a frutificarem seus sofrimentos:

[…] Frutificarão afinal esses longínquos
sofrimentos? Não é tempo daqueles que amam libertar-se
do objeto amado e superá-lo, frementes?
Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no voo
Mais do que ela mesma. Pois em parte alguma se detém.

 

Referências

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BADIOU, A; TRUONG, N. Elogio ao amor. São Paulo: Martins Fontes, 2013.         [ Links ]

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Recebido: 10/02/2016
Aprovado: 22/03/2016

 

 

1 Este estudo é em uma versão modificada de parte do material desenvolvido durante pesquisa de doutorado realizada no Programa de Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Projeto financiado no Brasil pelo CNPq (Processo nº 143405/2011-0). O estágio doutoral foi financiado pela CAPES e realizado na Université Paris 13-Nord, França (Processo nº 6142-13-3/2013).
2 Trata-se aqui de traços melancólicos e não da melancolia como estrutura.
3 Uma imagem popular do além perpetuada na prece do ofício dos mortos e nas inscrições tumulares "repouse em paz", do latim resquiece in pace, R.I.P. (ARIÈS, 1981).
4 Atualmente, as novas gerações têm cada vez mais adotado signos fúnebres não convencionais, tais como as tatuagens in memoriam e as páginas criadas em redes sociais, como é o caso da comunidade criada no Facebook "Profiles de gente morta", entre outros. Aos interessados nos desdobramentos desse tema, remetemos à tese de doutorado: PINHO, MX. O rito (fúnebre) individual do neurótico em tempos de dessocialização da morte e do luto: Uma leitura psicanalítica das tatuagens in memoriam. 2015. Orientadora: Miriam Debieux Rosa. Tese (Doutorado – Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
5 Em francês bon-heur: boa hora, bom encontro; bonheur, felicidade.
6 Lacan havia acabado de ler uma biografia sobre a Rainha Vitória, escrita por Lytton Strachey, Queen Victoria, publicada em 1921.
7 Recolho de Allouch (2004, p. 365) a "prudência doutrinal" de ler com cautela esse "furo no real": "Lacan formulava assim as coisas em abril de 1959. […] Sobretudo desde o estudo da cadeia borromeana, tornou-se menos fácil, em Lacan, falar de um furo […], se houve 'progresso', entre 1959 e 1979, foi no sentido de não mais saber demais o que se acreditava saber, quanto ao furo. Disso decorre que a mais elementar prudência doutrinal reclama que acolhamos hoje esse 'furo no real', tal como Lacan o usava em 1959, como uma metáfora".

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