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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.32 Rio de Janeiro jun. 2016

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO

 

Amor: sinal que se muda de laço1

 

Love: a sign that changes the bond

 

 

Ricardo de Barros Cabral*

Instituto de Psicologia da Universidade do Brasil
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Fórum Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo articula o fim da psicanálise, a instauração de um novo laço social, com sua condição clínica, o amor, o amor de transferência tal como Freud o descobre e conceitua. A estratégia de trabalho deixa em segundo plano a referência a autores, tanto quanto a preocupação tipicamente universitária com a datação, considerada fundamental para alguns psicanalistas que lhe conferem um valor maior do que de fato possuem, o de índices para o leitor. O amor é o sinal de que se muda de laço: a expressão sintetiza o alfa e o ômega da psicanálise, tanto quanto o percurso de uma análise. Esclarecê-la é o que pretende este artigo.

Palavras-chave: Transferência, Amor, Laço social, Nós.


ABSTRACT

This article is a synthesis of the latest works I have presented in the Lacanian field. It articulates the end of psychoanalysis, the creation of a new social bond, with its clinical condition, love, the love of transfer as found and conceptualized by Freud. The method used in this paper leaves the reference to authors in the background, as much as the typically academic concern with dates, taken as fundamental by some psychoanalysts who give it a value greater than it actually has, that of indices for the reader. Love is the sign that a bond is changed: the expression synthesizes the alpha and the omega of psychoanalysis as much as the trajectory of an analysis. This article intends to clarify it.

Keywords: Transference, Love, Social bond, Knots.


 

 

1. A sucessão obstrui a direção do tratamento

Resolver ocupar um lugar de analista impõe a questão sobre os invariantes da psicanálise. Por que razão há impossibilidade de reduzi-la à técnica? Porque, em psicanálise, o pivô da clínica é o amor. Então, o que faria a diferença a outras maneiras de lidar com amor, terapêuticas de apelo vitalista, religião e, por que não, a própria filosofia? Deve-se cuidar dos vários aspectos sem perdermos a referência ao amor em psicanálise. Os recentes trabalhos que apresentei a respeito nas jornadas de formações clínicas e nos encontros nacionais e internacionais do campo lacaniano tratam desta preocupação. Todavia, as dimensões do amor na clínica psicanalítica não constituem um fio que se possa percorrer em contínuo. Este artigo trata destas dimensões: o fim da psicanálise, a instauração de um novo laço social, com sua condição clínica, o amor, o amor de transferência tal como Freud o descobre e conceitua.

A estratégia de trabalho deixa em segundo plano a referência a autores, tanto quanto a preocupação tipicamente universitária com a datação, considerada fundamental para alguns psicanalistas, inclusive Analistas Membros da Escola do campo lacaniano, que lhe conferem um valor maior do que de fato possuem, o de índices para o leitor. Afinal, pode-se extrair qualquer direção da cura psicanalítica desta suposição tipicamente positivista, ao simplesmente subordinar a psicanálise à sucessão: primeiro Freud, depois Lacan; primeira tópica, segunda tópica, um primeiro Lacan, um segundo Lacan, um último, e, por que não, um ultimíssimo Lacan.

Nossa estratégia deixa de lado a sucessão, enquanto ilusão de continuidade, em prol da transmissão. A transmissão da psicanálise passa por outra, por uma nova maneira de amar, orientada pelo real não escrito da clínica e o real da letra escrita de Freud. A descoberta freudiana do Inconsciente abala a concepção ascética de amor, idealizada, pilar da civilização. Ao contrário de reduzir a humanidade à energia sexual animal, a intransigência de Freud para preservar a sexualidade e o sexo como fundamento da psicanálise implica uma profunda modificação, ou melhor, uma transformação de nossa maneira de amar.

Não seria por acaso que Lacan fala de um estranho amor ao concluir o Seminário 11 após sua excomunhão da IPA. Referindo-se ao fim da psicanálise, ele fala que "só aí pode surgir a significação de um amor sem limite, porque fora dos limites da lei" (LACAN, 1964/1973, p. 248). Um amor fora dos limites da Lei? Não há outra razão para os mal-entendidos que pairam sobre a psicanálise, desde as tentativas de reduzirem-na a uma técnica anódina, às leituras que a banalizam e condenam em nome de algo supostamente claro, conquanto ainda mais obscuro.2

A sucessão cronológica enrijece a leitura da psicanálise e confunde ainda mais a convivência da Escola. Essas indicações atravessam a obra de Lacan e não obedecem a uma sucessão. Mais recentemente encontrei eco no retorno de Antônio Quinet à noção de Hímeros (2014), o desejo positivado, um desfecho possível para uma análise e guia de convivência entre aquelas pessoas que desejam perseverar no desejo do analista para fazer da psicanálise uma nova modalidade de laço social, quer dizer, uma transformação da maneira de amar, de desfazer laços e reuni-los outra vez. Anelos? Desejo positivado que denomino amor. Por quê? Porque se trata em psicanálise necessariamente de nós.

 

2. Nós na clínica

Que o amor seja o sinal de que se muda de laço? A expressão sintetiza o alfa e o ômega da psicanálise, tanto quanto o percurso de uma análise. Como nos situarmos, nós analistas, na clínica? Há diferença entre laços e nós? Uma análise nunca acaba para quem vai além e se indaga pelo enigma renovado do desejo do analista. Seu fim, da análise que vai além, seria sustentar o desejo do analista? Se for, aquele que deseja precisa se haver ainda com outros analistas. No congresso de Bonneval, Jacques Lacan nos ensina que:

Os psicanalistas fazem parte do conceito de inconsciente, uma vez que constituem o seu endereço. Nós não podemos desde então não incluir nosso discurso sobre o inconsciente na tese mesma que ele enuncia, que a presença do inconsciente, por situar-se no lugar do Outro, deve ser buscada na enunciação de todo discurso. O sujeito que pretende sustentar esta presença, o analista, deve nesta hipótese, pelo mesmo movimento ser informado e posto em causa, seja experimentar-se sujeito a divisão do significante (LACAN, 1966, p. 834).

Este "faz parte" é o nosso problema, e quaisquer transformações advindas no ensino de Lacan reiteram essas linhas proferidas na época de sua excomunhão. Razão pela qual cabe pensar de que modo o recurso à topologia, ao nó borromeano e aos nós pretende escrever este novo laço, discurso do analista, que emerge a cada passagem de um ao outro discurso. Novo laço que só o amor de transferência viabiliza revirando pelo avesso o que há de mais real no amor. Em vez da rígida identificação, na primeira pessoa do plural de um nós (CABRAL, 2014), ideal impensável e não realizado no cotidiano das instituições, seria preciso pensar de outra maneira o desfecho de uma análise.

Prosseguir na Escola durante e depois de uma análise para edificar o campo lacaniano só será viável a partir do anelamento de um mais-um. Sim, esta qualificação quase trivial de um "anelo" faria a pequena diferença entre o discurso do analista, discurso entre outros discursos, para um discurso que almeja a hegemonia. O discurso do mestre, tal como Lacan o estrutura, pressupõe a universalidade antes do consentimento. Quando uma igreja se nomeia universal ou católica, ela ergue a pretensão de envolver todos. Se lhe respondêssemos: não, qual a consequência da negação desta vontade universal? O que seria de nós? Outrora, a fogueira.

Hoje, os divãs estão repletos de ex (…) onde se lhes dá a palavra e tempo para elaborar seu desejo, para o sim ou o não, ou como desejam fazer ou não parte de um grupo. A própria história da psicanálise não escapa à tentação de se organizar como igreja universal. Jacques Lacan denuncia em "Televisão" (1973/1974) na Sociedade Internacional de Psicanálise esta intenção e a renomeia como sociedade de assistência mútua contra o discurso analítico (SAMCDA). Ainda assim, o empuxo à totalização assemelha-se à Hidra. Por paradoxal que possa parecer a comparação, uma vez que a Hidra é a criatura que, quando se tenta eliminá-la surgem duas no lugar, ela me parece adequada na medida em que não há Todo sem exceção, ou seja, não há Todo cuja consistência não seja extraída de menos-um (QUINET, 2015, p. 50). Este menos-um pode ser o iluminado, o líder, o guru, aquele que sabe o que ninguém sabe, ou como o psicanalista Lacan excomungado da psicanálise, como o judeu-alemão na Alemanha nazista, ou um negro americano na América. Nunca a exceção confirma a Lei, porém a existência que a põe em questão. Reparem: o traço da exceção, a função dita fálica, não difere da característica que define o grupo. Qualquer leitura que reduza ao binário a releitura que Jacques Lacan faz da sexualidade e do amor negligencia o caráter paradoxal da descoberta freudiana.

Para mostrar o quanto esta descoberta freudiana não é um saber sujeito à dominação, em sua organização institucional, mesmo depois das diversas contribuições, alertas e formulações de Jacques Lacan, apesar de toda a preocupação com a transmissão da psicanálise, o fantasma da totalidade, como uma Fênix, o Um do único cuja consistência fantasmática exclui o Outro ressurge. Entretanto, sabemos que "a história se repete, a primeira vez como tragédia; e a segunda, como farsa" (MARX, 1951-52/2011).

 

3. Nós no Campo Lacaniano

O Campo Lacaniano nasce dessa cisão (CARNEIRO-RIBEIRO, 1998). Nós somos o fruto dessa divisão. O voto de uma contraexperiência do Um. O Campo Lacaniano nasce dessa divisão, mas o que são nós no Campo Lacaniano?

Não contenta assumir que somos frutos da divisão e do quanto a sexualidade e o sexo é fundamental para a psicanálise. Necessário, mas não suficiente. O laço é tão fundamental quanto, ainda que alertados pela impossibilidade da relação. A relação é a categoria que ultrapassaria efetivamente a divisão. Só uma união supostamente divina teria esse poder de não deixar vestígios do que fora outrora separado. E a psicanálise é leiga. Por isso, o axioma lacaniano faz todo seu sentido: a relação sexual não existe. Ainda que achem graça nessa formulação, porque negaria um fato consumado da realidade concreta, se disséssemos "a união divisão não existe", qualquer um concordaria, e perceberia o disparate de afirmar existir o unido dividido e negá-lo uma platitude. Daí minha interrogação sobre o que são nós.

A transmissão da psicanálise passa e passará necessariamente pela tentativa de fazer laço de outra maneira, de amar. Não significa ceder à concepção ascética e idealizada de amor. Pelo contrário. A intransigência de Freud quanto ao sexo como fundamento da psicanálise implica esta transformação da maneira de amar. Na lógica do mais-um do desejo e não na lógica da exclusão da maestria, do menos um.

Admitir tratar um sintoma por meio da transferência, do amor, nos constrange a pensar de outra maneira que a Sociedade Psicanalítica que excomungou e excluiu o psicanalista Jacques Lacan. A tradição oriunda de certa compreensão dos evangelhos oporia o verdadeiro ao falso no que concerne às coisas ditas e sentidas do amor e decalcaria nos escritos de Freud os velhos impasses da vida amorosa. Se houver efetiva preocupação com a verdade no tratamento, o amor (de transferência), um amor presente no Real (LACAN, 1962-63/2004, p. 128), não deve ser interpretado na clínica como oposto ao verdadeiro amor. Tudo se passaria como se transferíssemos ao analista o que não suportamos na vida e, ao nos conformarmos a isso, estaríamos desenganados e sarados. Enfim, estaríamos mais preparados para enfrentar a dura realidade? Isso não acontece.

 

4. O que não engana não orienta

A decepção amorosa, o desencanto, não nos faz cair na realidade nem nos impõe o verdadeiro, o que implica a repetição do além do princípio do prazer. Razão pela qual abre-se uma janela donde advirá, como um fôlego que falta, a angústia. Uma pausa, um hiato é necessário na passagem do amor à angústia, um passe pelo fantasma. O fantasma

[…] é certa relação de oposição a "a" relação cuja polivalência está suficientemente definida pelo caráter composto do losango que é tanto a disjunção, ∨, quanto a conjunção, ∧, que é também o maior e o menor. é o termo desta operação sob a forma de divisão, uma vez que "a" é irredutível, um resto, e não há maneira de operar com ele (LACAN, 1962-63/2004, p. 203).

Não há outra razão para a topologia interessar tanto a Lacan. Sem corte, torção e junção seria inconcebível a faixa de Mœbius obtida ao efetuar meia volta numa das extremidades de um plano que se reúnem fora do campo da percepção. O plano de Mœbius estampa a capa do seminário da Angústia. Se, portanto, passa-se de Um a Outro, isso se faz em um ponto de torção como a raiz quadrada de menos-um: . Que se escreve, porém invisível, indizível, impossível de indicar. Ponto de passagem onde a orientação do sujeito vacila devido à crise do sentido escrita na álgebra lacaniana. "Quando a falta vem a faltar" não é justo o avesso de "dar o que não se tem"? ( LACAN, 1962-63/2004, p. 128). No limite, onde toda Norma vacila, quando se impõe a questão do que quer o Outro, recordemos Il diavolo Innamorato, Che vuoi?, eis a angústia.

Mas se, de repente, faltar toda e qualquer norma, isto é, tanto o que constitui a anomalia quanto o que constitui a falta, se esta de repente não faltar, é nesse momento que começará a angústia (Ibid., p. 53).

Poderíamos encontrar na angústia o guia, a orientação que se perde quando nos falta o sentido? Se não há amor verdadeiro, a angústia, como afeto que não engana, seria, então, a bússola do sujeito moderno na era da ciência, o afeto verdadeiro? O afeto que não engana, na verdade, não é um porto seguro. Afeto que não engana, a angústia nos cala e nada nos diz da verdade. Ponto de passe, silencia o desespero de um sujeito. Tratar esta pausa e tentar de escrevê-la, eis o desejo do analista.

 

5. A necessidade de quem fala

Todas as traduções dos Écrits (1966) de Lacan para o português vertem o "besoin" francês, por necessidade, o que engendra uma incompreensão de tal ordem que parece impossível articular o que está escrito com o que lidamos na clínica, ao reduzir Demanda à fala que pode calar-se e emudecer. Para que se entenda a Demanda segundo Lacan, com o D maiúsculo, devemos fazer outra distinção, como ele mesmo já deixava claro desde "Função e campo da palavra e da linguagem" que "need e demand têm para o sujeito um sentido diametralmente oposto" (LACAN, 1953/1998, p. 297). Ou seja, trata-se de uma necessidade de outra ordem e por isso mesmo o silêncio na clínica é retumbante.

Eis uma das razões que dificultam o uso do matema (1960/1998, p. 831) como matema da pulsão: reduzir a demanda ao falado. O S-barrado denota a operação, a priori, de anulação pelo significante das orientações vitais, anterior ao nascimento de cada um que padecerá em seu próprio percurso da sua repetição.

A própria demanda incide sobre outra coisa do que sobre as satisfações que ela exige. Ela é demanda de uma presença ou de uma ausência. O que a relação primordial com a mãe manifesta, por estar prenhe deste Outro que se deve situar aquém do que se pode preencher quanto ao que é (besoin) preciso (LACAN, 1958/1998, p. 697).

: matema da pulsão alinhavado, no grafo do desejo, à exigência que não encontra correspondência no campo do Outro, onde o sujeito deve advir e se escreve no grafo do desejo "s" de A-barrado s() no vetor do Gozo a castração (LACAN, 1958/1998, p. 511).

 

 

No dizer freudiano, o objeto da pulsão é um objeto qualquer, ou seja, não há objeto específico de saciedade da pulsão (FREUD, 1915). Articulada à estrutura significante, à repetição não faz sentido indagar pela fonte somática ou qualquer outra para ela. Nada há o que contente ou corresponda a esta exigência: . Por outro lado, se não há como responder adequadamente a esta exigência, não há como se abster dela. Eis o paradoxo desta necessidade. O que não há remédio, não está remediado. Aliás, nada mais freudiano do que esta característica da pulsão, e por causa dela concebe o dispositivo clínico da psicanálise. Como não há como se abster, entram em jogo as imagens, anuladas pela função simbólica, ou seja, fantasmas, a dimensão de imagens com a imprecisão que lhes é peculiar, tal como escritas no grafo do desejo e entrelaçam os "anelos" que não se contam a partir dos quais Lacan nos ensinou a ler e a reler Freud, porque não são três (real, simbólico e imaginário). Este ponto será fundamental. A leitura da função do nome-do-pai em Jacques Lacan do Seminário 3 ao 23 acompanha essa mesma lógica. A álgebra lacaniana já não é cardinal ou ordinal. S1 e S2 são diferenciais. Passar a pensar as distinções nomeadas Real, Simbólico e Imaginário para reler Freud a partir do anelamento borromeano interdita de vez enganar-se com o número ordinal ou contabilidade. O anelamento poderia ser infinito. Não há um elo privilegiado. Qualquer anel pode desfazer o anelamento.

O sexual de Freud a Lacan, o sexual na psicanálise é esta fenda no coração de qualquer nó (não trivial) de amor. Não há vínculo natural para o qual se incline a necessidade de amar. A expressão sintética da perda e da busca do amor perdido é a pedra angular da psicanálise como clínica, como ética e também como política. Não por acaso, Lacan entendeu que o desejo (anelo) era e é o cogito freudiano (LACAN, 1964/1973).

Quem se autoriza estar no lugar de acatar a Demanda como analista, não pode, nem deve abrir mão da categoria do necessário, sob pena de se tornar impotente para sustentar a direção do tratamento, uma vez que serão tomados como objeto de amor. E o amor transferencial toca no que há de mais real nos laços de amor na medida em que não é orgânica a necessidade de quem fala,

[…] pois need e demand têm para o sujeito um sentido diametralmente oposto, e afirmar que seu emprego possa ser confundido por um instante sequer equivale a desconhecer radicalmente a intimação da fala (LACAN, 1953/1998, p. 297).

Se à categoria de necessidade concerne o imprescindível, ela não se reduz para quem fala ao que se precisa: need em inglês, besoin em francês, ou até mesmo bedürfnis em alemão (LACAN, 1954/1998, p. 387). Quanto mais para a psicanálise, porque trata pela fala da necessidade de cada um (talking cure). O necessário em questão implica as categorias da lógica modal: possível, existência, necessário, que não desenvolverei aqui neste trabalho, não obstante, Jacques Lacan reformule a tríade de categorias modais kantianas sem jamais abrir mão do necessário, em suas palavras, a referência ao "que não cessa" (LACAN, 1972-73/1975).

Este é o erro crasso da maioria dos tratamentos dados aos sintomas contemporâneos: pretender a eliminação ou remissão do sintoma porque se acredita na possibilidade de cessá-lo quando, na verdade, apenas se deslocam. Erro crasso referendado até as últimas edições dos DSM e dos CID que reduzem o sintoma a um sinal qualquer, em vez de considerar a que necessidade o sujeito responde com seu sintoma. Por isso mesmo, desqualificam a pulsão como mera conjetura freudiana verbal e vazia. Porém, outro erro, não tão grave, todavia bastante comum entre psicanalistas, sobretudo lacanianos, como a tradução dos Écrits revela, se expressa na oposição entre desejo e necessidade: quando se equivale o necessário ao que se precisa e se opõe demanda a desejo. Escuta-se a demanda apenas como falada e se negligencia seu caráter de intimação, ou seja, de pulsão: .

Isto porque "Tudo o que o falante precisa está contaminado por estar implicado numa outra satisfação para a qual pode fazer falta" (Ibid., p. 49). O que pode fazer falta? Justo o que se precisa. O ar para os pulmões, o alimento para a fome, o sono para a fadiga não atende ao necessário para quem fala, esta Outra Necessidade. Quando se trata de amar, o que se deve realmente buscar? Não há! Nada mais estranho às elaborações clássicas do pensamento: uma necessidade cujo objeto não há. Contudo, porque envolve o necessário, permanecer indiferente é impossível. Razão pela qual a ética da psicanálise não é uma ética estoica, não visa à ataraxia, nem o fim da análise poderá ser o resignar-se ao sintoma. Por isso mesmo Lacan afirma na "Nota Italiana" que sem entusiasmo, pode haver análise, "mas nenhuma chance de analista" (1974/2001, p. 309).

 

6. A resposta psicanalítica à necessidade

Donde a impossibilidade daquele que ocupa este lugar de objeto de amor como analista SER o amor de quem o procura. Mas quem o procura não sabe disso, ou ainda, inconsciente sabe. Todavia quem recebe essa intimação como analista terá obrigação de saber, caso contrário correrá o risco de recair na impotência de tentar responder a esse chamado, receio que tenta, que ronda qualquer iniciante na clínica e comparece no lugar de semblante.

O analista não é uma Pessoa, nem sujeito, mas causa de desejo. Não sou EU, nem pode ser um. Tampouco um mestre que ao acatar a demanda orienta em que sentido o sujeito precisa buscar resolver o seu problema. Mas a psicanálise se passa em outra dimensão, onde DAR nada contenta, e dar Sentido significa menos ainda pois, ao contrário, oblitera toda possibilidade de cura. Por isso se deve transformar a maneira de amar para que advenha um outro laço, um novo laço que se chama o discurso do analista, a cada análise que se inicia, como nova modalidade de laço social, de um amor sem limite (LACAN, 1964/1973) que só o desejo do analista consente sustentar.

 

7. O fim da psicanálise

Não há laços eternos. Só os amores o são. Não há matriz do laço, porque os laços não são prévios, mas hiato devido à palavra. Mesmo o vínculo materno. Parece banal dizer que os laços de amor são feitos. Quando o são, em nome do quê? A sabedoria popular, entretanto, não se engana de todo quando diz que o amor está escrito. Para nós, amar implica a letra. Mas não quer saber que escrever não erradica o hiato aberto pela palavra. Amar é desejar. Amar seria gozar nas entrelinhas do Outro. Não se encontra na certeza soberba de quem ama ou é amado. E a resposta inútil: não sei, não sei, não sei… que evita refazer laços, reiteração do sintoma e do pavor de amar, será justo o que o psicanalista ousa tratar, quando a ênfase recairá sob o engajar-se em decifrar sinais con-siderados de amor.

Lacan nos ensina, sobretudo, a reler Freud. O que será concedido almejar, ao concebermos, paradoxalmente, cada laço de amor a partir do seu feitio? A psicanálise nos permite reler a história de cada um, o que está escrito em nós. Freud escreve que a anatomia é o destino. A anatomia é letra morta. Reler consiste em dar voz à letra e animá-la por meio da fala. Viver entre letras é a sina do sujeito, pois que todo ânimo não apagará o destino de se tornar-se letra outra vez, nas lápides que se empilham nas bibliotecas.

Antes disso, ainda precisamos viver o desenlace da transferência. Este é um capítulo da "histœria" da psicanálise que está em curso, que se faz ainda e desejo escrever. Como não há desejo sem Outro, me dirijo àquele que não sabe o que fazer com Isso, para que possa cessar de não escrever sobre nós, sobre o que nos intima no mais íntimo, o enigma do nós e dos nós, a fazermos sós, o que constitui o drama, a trama e o urdume do campo lacaniano, que o próprio Lacan desejara, torne-se campo de Gozo! (LACAN, 1969-70/1991, p. 93). Sem esquecermos do amor, pois, parafraseando o que diz Lacan no seminário sobre a Angústia, só um amor permitirá ao gozo consentir com o desejo.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: ricardobc@me.com

Recebido: 28/01/2016
Aprovado: 25/03/2016

 

 

* Professor do Instituto de Psicologia da Universidade do Brasil. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Membro Fórum Rio de Janeiro.
1 Je ne dis pas autre chose en disant que l'amour, c'est le signe qu'on change de discours. (LACAN, 1975)
2 Refiro-me à pretensão dos neurocientistas ao se pronunciarem sobre algo além dos nervos que consta no livro negro da psicanálise.

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