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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.32 Rio de Janeiro jun. 2016

 

ESTRUTURAS CLÍNICAS: LAÇOS E DESENLACES

 

Joyce: rupturas e laços1

 

Joyce: ruptures and bonds

 

 

Muriel Mosconi*

Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano
Collège de Clinique Psychanalitique du Sud-Est

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Como ler Joyce com Lacan nos permite apreender a clínica do defeito de estrutura, a falta do nó e sua reparação pelo Sinthoma?

Palavras-chave: Joyce, Ego, Sinthoma, Nó borromeano, Estranha relação sexual.


ABSTRACT

How reading Joyce with Lacan allows to understand the failure of the structure, the fault of the node, and his repair by the Sinthome.

Keywords: Joyce, Ego, Sinthome, Borromean knot, A strange sexual intercourse.


 

 

Com Joyce, Lacan aborda a clínica borromeana do sintoma. De que se trata?

O termo "sintoma" aparece tardiamente no ensino de Lacan, na ocasião de sua conferência "Joyce, o sintoma", proferida na Sorbonne em 16 de junho de 1975. Com "Joyce, o sintoma", ou o sinthoma, Lacan dá nome próprio a Joyce, a quem ele dedica seu seminário seguinte, O sinthoma, em 1975-76. "Sinthoma" é a primeira forma escrita em francês da palavra "sintoma", que resulta da introdução do grego no francês, e Lacan segue aí a vontade de Joyce de que se helenize a língua.

 

Qual é o desafio dessa mudança de escrita?

Trata-se, a partir da psicose, já que Joyce era psicótico, de dar ênfase àquilo que o sintoma tem de inanalisável e de terapêutico em si, à sua função de letra enigmática, fixão de gozo, mais do que sua função de formação significante a ser interpretada.

Na lógica borromeana, o sintoma é uma quarta volta que enoda o Real, o Simbólico e o Imaginário.

No caso do neurótico, Lacan oferece dois enodamentos borromeanos possíveis:

Em RSI, em 1974-75, o Nome-do-Pai é a quarta volta borromeana que responde da falha, do lapso do nó que cobre o falo.

A ideia de que o sintoma, que assume uma função paterna, faz suplência à carência estrutural do pai não castrador aparece desde o seminário A relação de objeto, em 1956-57, no que diz respeito à fobia do pequeno Hans, que Lacan qualifica como suplência.

Na ocasião das "Conferências americanas", em 1975, Lacan dá outra configuração borromeana do sintoma em sua relação com o R S I: "o elemento quarto", diz ele, "é aquilo que o sintoma realiza na medida em que faz círculo com o Inconsciente, S + Σ1" (LACAN, 1975a/1976, p. 40). O nó borromeano tem, então, três voltas, das quais uma é constituída pelo enodamento do Simbólico e do sintoma.

Lacan equivoca sobre o fato de que sin (o início da palavra "sinthoma") significa pecado, donde sua relação com a falta, a falha do inconsciente: a impossível inscrição da relação sexual na estrutura. Não há fórmula pronta para que os dois sexos se emparelhem. É com o sinthoma que temos que lidar na relação sexual. Lacan também aponta que, se uma mulher é um sinthoma para todo homem, isso não é recíproco. O homem é, por sua vez, mais uma aflição, até mesmo uma devastação, para uma mulher.

A função de letra do sintoma, que faz suplência a uma falha simbólica, aparece muito cedo em Freud, ao lado de seu valor metafórico. Desde a conceituação do proton pseudos (a primeira mentira) no Projeto, e do manuscrito K, o sintoma é o resultado do recalque da representação-limite e mentirosa, que tem valor fálico, de uma lacuna no psiquismo.

Vamos examinar como a letra participa do sinthoma em Joyce. Mas, inicialmente, vejamos algumas rupturas em sua estrutura.

 

Quando a estrutura se rompe…

O "deixar cair" com relação ao corpo próprio

Joyce relata, em Retrato do artista quando jovem, que depois que Stephen Dedalus pecou com prostitutas, ele "se esvaíra como uma névoa ao sol. Tinha-se perdido, ou errava fora da existência, pois já não existia mais" (JOYCE, 1916/1987, p. 71). O enigma do gozo não encontra resposta mentirosa do lado do falo onde o sujeito se identifica com seu ser de vivente. A foraclusão do falo, Φ° se expressa ali diretamente.

Em outro momento, o padre Dolan lhe aplica um castigo corporal nas mãos, e Stephen "pensa[va] nelas machucadas e inchadas, ardendo, o [que o] fez de súbito se sentir tão amargurado, com tanta pena delas como se não fossem suas, e sim de uma outra pessoa de quem ele tivesse muito dó" (Ibid., p. 45). É uma forma peculiar de ter um corpo, ou melhor, de não ter.

Ainda no Retrato, Joyce narra uma memória de infância, a qual atribui a Stephen. Depois de ser surrado contra uma cerca de arame farpado por três companheiros – dentre os quais o líder, Heron, é seu rival no colégio, seu duplo –, "tinha sentido que certa força o houvera despojado dessa súbita onda de raiva tão facilmente como um fruto é despojado de sua mole casca madura" (Ibid., p. 65). Para Lacan, seu corpo é que parte como uma casca.

A cena da surra é seguida por um "um ato de submissão" de Stephen. Ele havia cedido à formulação de um ensaio literário em que afirmava que não existia possibilidade alguma de a alma nunca se aproximar de seu Criador. Para seu professor isso era uma heresia. Stephen, então, se retrai e sussurra: "Eu queria dizer 'sem uma possibilidade de jamais atingir'" (Ibid., p. 63). Ele admite, assim, uma possibilidade assintótica de que a alma se aproxima de seu Criador para além dos tempos. Ele, então, começa a perceber a seu redor "uma vaga e geral alegria algo maligna" (Ibid.).

Depois dessa palinódia, Stephen é intimado pelo trio de algozes a dizer quem é o maior poeta, ao que responde "Byron!".

A sequência se decompõe da seguinte forma: Stephen cede sobre a ruptura radical que ele defendia entre a criatura e o Criador, admitindo a possibilidade assintótica de um laço. Surge, então, a figura de Byron, herético e incestuoso, na genealogia de quem Joyce se inscreve, figura do pai que goza, evocação do "Um pai real", que Lacan coloca no fundamento do desencadeamento da psicose. Em seguida, seu corpo, essa página marcada por arranhões de arame farpado, traços de sangue, de uma protoescrita, sai como uma casca, abandonada por não incorporar a estrutura simbólica naquele momento preciso.

É incorporada que a estrutura faz o afeto. E o corpo do Simbólico faz o corpo do sujeito por se incorporar a ele. Lacan remete essa estrutura simbólica ao "menos-Um" do significante da falta do Outro, e a correlaciona à sepultura como traço cultural desse "menos-Um" que marca o Nome-do-Pai. Serge André propôs, aliás, que se inscrevesse o S () e o "existe x tal que não Φ (x)" no nível dos dois cruzamentos do Simbólico e do Real no nó borromeano de três (ANDRÉ, 1981).

No episódio da surra, a falha de S (), esse "menos-Um" correlacionado ao Nome-do-Pai, que sustenta a ruptura radical entre a criatura e o Criador, faz crescer em potência do "Ao-menos-Um" que escapa à castração, enodamento direto do simbólico e do Real, em que Lacan inscreve esses significantes no Real, que são as epifanias. Essa falha do nó deixa o Imaginário livre, a ideia de si como corpo, que demanda somente partir. Isso corresponde ao nó de Joyce, que Lacan dá, sem a junção pelo Ego.

 

 

Laços

Ego e escrita

Será, então, seu próprio texto que se tornará, para Joyce, a ideia de si como corpo. Ele pensou, assim, em escrever Ulisses com tantos capítulos quanto o número de órgãos de um corpo, cada um com um estilo característico do órgão de referência. O capítulo "As sereias", por exemplo, é dedicado ao ouvido.

Ele tenta reconstruir, com a escrita, a colocação em funcionamento dos órgãos que a falha de S (), outro nome aqui da foraclusão do falo (Φ°), não lhe permite.

Joyce descreve Shem, o herói do Finnegans Wake, da seguinte forma: um homem da escrita como uma aranha deve "dianoitemente produzir, por meio de seu corpo aceleste, uma não incerta quantidade de matéria obscena" (JOYCE, 1939/2000, p. 560-61)2 e escrever "em cada polegada quadrada do único papel de ofício acessível, seu próprio corpo" (Ibid., p. 561).3

Na mesma ordem de ideias, Lacan ressalta que é a arte de Joyce que supriu sua firmeza fálica um pouco frouxa (LACAN, 1975-76/2007, p. 16).

Mas qual é a estrutura desse texto peculiar?

O enigma da raposa, que Stephen Dedalus propõe a seus alunos em Ulisses, e que Lacan retoma, vai nos dar uma visão geral disso.

Eis o enigma em que ressoa o ato de submissão de Stephen sobre a alma e o Criador:

O galo cacarejou,
O céu azulou;
Sinos de bronze
Soaram onze.
A hora da pobre alma
Ir pro céu chegou.
O que é isso?
– O quê, senhor?
– De novo, senhor. Nós não ouvimos.
Os olhos deles cresciam enquanto os versos eram repetidos. Depois de
um silêncio

Cochrane disse:

– O que é, senhor? Nós desistimos.

Com a garganta comichando, Stephen respondeu:

– A raposa enterrando sua avó debaixo de um azevinho (JOYCE, 1922/2010, p. 36).

A cena continua: "[Stephen] se levantou e soltou uma risada estridente e nervosa à qual os gritos deles [das crianças] ecoaram consternação" (Ibid.).

Esse enigma não tem nada de chiste (que depende do S (), pois não comove nosso inconsciente. E Joyce se revela aí um affreud,4 um desabonado do inconsciente, como Lacan destaca (LACAN, 1975b/inédito, 16/06/1975). Por seu estilo irônico, sardônico e alusivo, contudo, faz piadas inconcebivelmente internas [inconceivably private jokes] (LACAN, 1975-76/2007, p. 73), e leva o leitor a seguir, de maneira metonímica, os fios associativos, as eftsooneries, associações adiadas para breve – after soon – que tecem seu texto.

Nesse enigma, os fios associativos correm em particular a partir das palavras "alma", "raposa", "enterrando", "avó" e "azevinho" (the bush: azevinho – Holly bush – e os pelos pubianos).

Stephen modificou a resposta desse enigma tradicional: The fox burying his mother under a holly tree ("A raposa enterrando sua mãe debaixo de uma árvore de azevinho), "a raposa enterrando sua mãe sob um azevinho", substituindo "avó" por "mãe", e bush, "arbusto", por tree, "árvore".

No episódio anterior, Buck Mulligan acaba de sugerir que Stephen matara sua mãe, recusando-se a se ajoelhar em seu leito de morte e rezar por ela (JOYCE, 1922/2010, p. 21). Essa culpa com relação à morte da mãe, ressaltada aqui pela referência ao adultério de Parnell, apelidado por isso de the Fox, voltará a assombrar Stephen em todo o decorrer de Ulisses. Pouco depois do episódio da charada, a pobre alma da mãe, que partira aos céus, é associada à raposa que "scrappe" [cava] e "scrappe" a terra (Ibid., p. 37). Uma superstição afirma que aqueles cujos corpos são desenterrados pelos lobos foram assassinados. E a resposta para a charada de Stephen é igualmente justificada pela expressão inglesa "unhas suficientemente longas para desenterrar a avó".5

A raposa-lobo é também o cão proteiforme que desenterra a pobre pele de cão de carniça em "Proteu" e que acompanha Bloom em "Circe". Esse cão já apareceu no capítulo XIV de Stephen Herói, no qual cheirara o cadáver de uma mulher afogada que escapara do asilo na véspera. O olhar de Stephen, durante essa cena, permanece suspenso nas letras de um pedaço de jornal que flutuava na água: "A Lâmpada, Jornal de…". A palavra que falta é "Literatura" (1944/1995-96, pp. 337-38).

A colocação em cena dessa falta de palavra na ocasião da morte de uma mulher se lê e se liga com diversas passagens de Ulisses, em que o olhar de um afogado lembra, para Stephen, o de sua mãe morrendo, e com o final de "Circe", no qual Stephen um "Kinch corpodecão", (JOYCE, 1922/2010, p. 657) como Mulligan diz, alucina sua mãe morta, o "corpodecadela da mãe" (Ibid.) ainda de acordo com Mulligan. Stephen pede à sua mãe que diga "a palavra conhecida de todos os homens" (Ibid., p. 659). Sua evasiva ao responder leva-o à loucura. A palavra que falta é "amor".

O cão-raposa ainda está lá em Finnegans Wake para designar Shem, o herege, em seu julgamento. Esse escavador de túmulos é acusado de buscar "o ninho do mal no cerne de uma palavra chistosa" (JOYCE, 1944/1995-96, p. 570).6

Em "Circe" ainda, um cão vem representar Dignam, morto e enterrado no início de Ulisses, e falar em seu lugar. Esse cão (dog) que cava (dig) a terra, as carniças e os nomes remete ao próprio nome de Dignam, dig name. Ele é a colocação em cena da questão de Stephen e de Bloom: "O que há em um nome?".

E, ainda em "Circe" é o grito de Adonai, "Doooooooooog!", o anagrama inverso de "God" (Deus).

To fox também significa "trapacear" ou "fazer corpo mole". Desde o Retrato, o verbo e o adjetivo foxy são associados por Stephen a um jesuíta com toque viscoso que reaparece em "Proteus". Em seguida, a raposa retorna no capítulo 6 de Finnegans Wake, em uma paródia de "A raposa e as uvas".

A palavra "bush" anuncia o advogado Seymour Bushe e sua retórica, que é tratada em "Éolo" e "Circe" quando J. J. O'Molloy Fox retorna com bigodes de raposa e a eloquência desse advogado.

Bush também remete à sarça ardente, mas, além disso, aos pelos pubianos, com uma série de mulheres que inspiram mais ou menos repugnância: Eva, que "nos vendeu a todos, estirpe, raça e geração, por uma semente de um vintém" (JOYCE, 1922/2010, p. 381); Helena, "a égua de madeira de Troia em cujos flancos uma dúzia de guerreiros dormiu" (Ibid., p. 220); a mãe de Stephen, uma "devoradora de cadáveres" (Ibid., p. 22); as prostitutas de "Circe", na frente das quais a raposa canta, os galos fogem e é hora de deixar os céus; Molly Bloom, que comete adultério, e que durante seu monólogo final, "Penélope", teve suas regras, ou ainda Anna Lívia Plurabelle, a mulher de Finnegans Wake, cujas iniciais, ALP, significam "pesadelo" em alemão. Notemos, aliás, que o monólogo de Molly, sem pontuação, substituiu um grande ponto-final preto que Joyce tinha o projeto de fazer, e no qual Lacan reconhece um clitóris.

O azevinho remete ao Retrato, no qual Stephen, doente, aspira voltar para casa para um Natal tradicional decorado com azevinho vermelho-sangue, símbolo da coroa de espinhos, e a flor branca virginal, e decorada com hera, a planta da fidelidade, emblema de Parnell. Essa coroa evoca o próprio nome de Stephen pela etimologia grega.7

Os fios associativos se cruzam e recruzam também em torno da figura do pai impostor, o pai de Stephen que, ridiculamente em "Circe", o exorta a defender o brasão que ele atribui a si mesmo, e que é o dos Joyce do condado de Galway, simples homônimos da família de James Joyce, o pai de Hamlet, "morto na flor de seus pecados", em torno da lei de talião, a lei da dita "evidência", ao contrário da função do Nome-do-Pai, de uma mudança de patronímico e de uma indeterminação sobre o sexo do pai.

Assim, nessa passagem de "Os ciclopes", acerca do pai de Leopold Bloom, ele diz: "Seu nome era Virag, nome do pai que se suicidou tomando veneno" (JOYCE, 1922/2010, p. 338). E, mais adiante, quando da vinda do Messias: "E todo judeu fica num completo estado de excitação, creio, até que saiba se é um pai ou uma mãe" (Ibid.). Lacan observa aí a suspensão entre os sexos que Joyce testemunha (LACAN, 1975-76/2007, p. 71).

Virag e Bloom também são nomes femininos, pois significam "flor" em húngaro e em alemão. E Rudolph Virag retorna em "Circe", como machona, uma mulher masculina, ou até mesmo a mulher do ponto de vista de Adão (que, em si mesmo, é uma senhora [Madame], de acordo com a joke de Joyce).

Os fios também correm do lado do objeto voz, como nessa epifania que se segue ao enigma da raposa:

"Isso é Deus.
– Hurra! Ai! Rrhiiii!
– O quê? – o Sr. Deasy perguntou.
– Um grito na rua – respondeu Stephen, sacudindo os ombros" (Ibid.,
pp. 42-43).

Em "Éolo", o Moisés de Michelangelo é uma estranha "música congelada" (Ibid., p. 133).

O objeto voz constitui uma identificação entre o pai e o filho, identificação por incorporação, identificação ao Real do Outro real. O texto passa e repassa pela questão da consubstancialidade do pai e do filho, e essa mesma substância é a voz.

Como ocorre nesta passagem: "uma voz ouvida apenas no coração daquele que é a substância de sua sombra, o filho consubstancial com o pai" (Ibid., p. 216).

Pouco depois da morte de seu pai, Joyce escreve: "Parece-me que a voz dele penetrou não sei como em meu corpo ou minha garganta" (TARDITS, 1987). Joyce tinha o mesmo timbre de voz (tenor) que seu pai, e também queria ter se tornado tenor antes de se dedicar à escrita.

Para Lacan, a missão de Joyce em Finnegans Wake consiste em fazer a linguagem sofrer uma decomposição tamanha, de forma a não haver mais identidade fonatória. É no nível da escrita que "a palavra se decompõe impondo-se", como nas epifanias ou em certas passagens que devem ser lidas em voz alta para captar os efeitos translinguísticos.

Em Finnegans Wake, encontramos esta passagem: "Who ails tongue coddeau, a space of dumbillsyli", que daria "Onde está teu presente, espécie de imbecil?" (JOYCE, 1939/2010, p. 135).

Sigamos ainda alguns fios das cartas: a que Stephen carrega antes da surra, as que Leopold Bloom acumula sobre si mesmo durante o dia 16 de junho de 1904, o qual Ulisses reconstitui, ou com relação a Shaun the Post, irmão gêmeo de Finnegans Wake santificado em seu nome de carteiro ou de correio por uma voz alucinatória quando seu irmão, Shem, foi nomeado the Penman, o homem da pluma.

Um enigma truncado introduz o quebra-cabeça da raposa:

Adivinhe, adivinhe, adivinho!
Ganhei grãos pra semear do paizinho (Ibid., p. 36).

A continuação é dada em Finnegans Wake:

A semente era preta e o campo era branco.
Adivinhe isso e lhe dou uma cerveja.

A solução: "Escrever uma carta" (JOYCE, 1939/2010, p. 1.096).8

Todos esses cruzamentos na trama do texto conjugam, pela carta, prazer, Real e Simbólico, em uma cifração que impele o leitor a uma decifração incessante, propagando-se ao redor e encerrando-se de volta pontos enigmáticos. Trata-se, escreve Joyce, "de uma sentença enigmática a ser tecida e retecida [na verdade] sobre as profissões" da leitura. Trata-se de tecer seu Ego com gozo, j'ouïs sens,9 e até mesmo Joyce sens, em torno desse ponto vazio de sentido: o enigma da enunciação, Ee, que é um substituto do S ().

Assim, passando de uma protoescrita de S1 sangrento na pele, durante a surra, à escrita de uma obra que atrai o leitor de um possível todo-sentido, e que encerra lugares de não sentido radical, levando o sentido à própria pulverescência, Joyce recupera seu corpo perdido. Seu texto, tecido pelo engano, pela deficiência e pela voz do pai, torna-se "ideia de si como corpo". Mas seu corpo não é, contudo, um deserto de gozo, e a falha do nó permanece sensível nas epifanias e na "estranha relação sexual" entre Joyce e Nora.

 

Os rastros da falha do nó

As epifanias

Joyce identifica nesses fenômenos, datados de 1900-1904, os momentos fecundos de sua vocação como artista. São fragmentos de discursos, de diálogos realmente ouvidos em situações banais, retirados de seu contexto, registrados como o mais precioso de sua obra e reinseridos incógnitos em textos posteriores. Estes excertos tornam-se estranhamente insensatos, fora do discurso, reais, e seriam apenas rebotalhos sem a experiência epifânica que os acompanha. O vazio da significação é aí convertido na certeza de uma revelação inefável e extática. Na falta de sentido desses fragmentos, como o grito na rua, que é o próprio Deus, Joyce reconhece "uma súbita manifestação espiritual" (JOYCE, 1944/1995-96, p. 512), na qual se revela, referindo-se a Tomás de Aquino, a quididade da coisa em si, a sua Claritas.

As epifanias inscrevem-se no nível do laço direto entre o Simbólico e o Real, como elementos simbólicos que passam diretamente no Real. Elas evocam aquilo que de Clérambault chamou de "pequeno automatismo mental", quando o discurso interior adquire um caráter estranho e automático, e elas também evocam as variações de Lacan em "a paz do anoitecer" (LACAN, 1955-56/1988, p. 160), em que aparece o estranhamento do significante, durante o seminário sobre as psicoses.

A primeira epifania que Joyce cita o faz conceber um poema: "The Villanelle of the Temptress" [A tentadora do Vilancete]. Esta epifania se resume a alguns trechos de diálogo entre um rapaz e uma moça:

A moça: Ah sim… estava na capela …
O rapaz (inaudível): … Eu (ainda baixinho) … Eu …
A menina (gentilmente): … Ah… mas… Você é muito malvado (LACAN,
1944/1995-96, p. 512).

Esse incidente trivial vai ao encontro de seus pensamentos sobre as mulheres e a religião, ao passo que sua mãe acabara de lhe anunciar que havia procurado aconselhar-se com um padre sobre ele. Uma intrusão real que provoca a sua vocação como escritor da epifania.

No Retrato, Joyce nos conta ter concebido "The Villanelle of the Temptress" em um momento "de êxtase da vida seráfica" (JOYCE, 1922/2010, p. 151), êxtase paradoxal, pois os serafins são mais ardentes (o que seu nome em hebraico significa) do que passivos. Ele continua: "No seio virginal da imaginação o Verbo fora feito carne. Gabriel, o serafim, tinha entrado na câmara da Virgem". Uma luz rosa e ardente surge dali, que é "o coração estranho e singelo dela" (Ibid.). E, "fascinados por esse fulgor de rosa assim tão ardente, os coros do serafim estavam caindo dos céus" (Ibid.). Esse êxtase seráfico ambíguo com relação à sexuação nos leva à "estranha relação sexual" de Joyce com Nora.

Um sexo estranho que faz laço

Françoise Gorog desenvolveu particularmente este ponto, sobretudo no artigo "Joyce le prudent" (ver bibliografia geral), no qual, em parte, me apoio aqui.

Joyce, que não conheceu "nem saúde masculina rude; nem mesmo amor filial", nos termos do Retrato, encontra uma impossibilidade de se inscrever do lado masculino da sexuação e, ao mesmo tempo, inscrever ali seus semelhantes.

Ele não cessa de se proclamar "homem feminino", e reconhece a si mesmo um nome hermafrodita na variante irlandesa do seu patronímico: "Sheehy". De Bloom que é um Senhor "Flor" e ao qual ele dá um segundo prenome feminino, "Paula", quando já o chamou de Leopold, em referência a Leopold Sacher Masoch, ele diz: "sou eu". Aliás, Joyce havia sido chamado de James Augusta quando nascera, em virtude de um erro de um funcionário do cartório.

Seus amigos de infância são frequentemente incluídos em sua obra por meio de uma feminização, como Bertie Tallon, que surpreende ao aparecer maquiado como menina no espetáculo de Pentecostes.

Se por um lado Joyce defende que Adão é uma mulher, ele se pergunta: "Talvez [não seja por que] ele [Hamlet] fosse uma mulher […] que Ofélia cometeu suicídio"? (Ibid., p. 74).

"Joyce não se toma por mulher, vez por outra, senão por se consumar como sintoma", diz Lacan (1975c/2003, p. 566). E, ao nos dar a referência do nome que responde aos desejos de Joyce (na página 162 da edição da Oxford de Finnegans Wake), Lacan nos permite supor que este nome que Joyce escolhe para si é "Ostiak Vogul della Marina", em que, a partir de duas línguas úgricas (o ostíaco e o vogul) e do italiano (óstio della vergine Maria), podemos ler em translinguística "o furo da Virgem Maria"!10

A partir dessa dificuldade na identificação sexuada, a escolha de objeto de Joyce também é original. Sobre Nora Barnacle, sua esposa, ele diria para Ettore Schmitz: "O que é certo é que sou o mais virtuoso de todos, eu, que sou realmente monogâmico e que só amei uma única vez na minha vida". 11 E Lacan ressalta: "Para Joyce, só há uma mulher. Ela é sempre do mesmo modelo, e ele só a enluva com a maior das repugnâncias. É visível que apenas com a maior das depreciações é que ele faz de Nora uma mulher eleita" (LACAN, 1975-76/2007, p. 81).

Ela é aquela que ele idolatra e, ao mesmo tempo, a parceira de um tempo de vida sexual em que se desdobra toda a loja de acessórios do voyeurismo, fetichismo, masoquismo, coprofilia e ondinismo. Ele lhe escreve e pede que ela lhe escreva cartas mais que eróticas, nas quais ele evoca "sua firmeza fálica um pouco frouxa" (Lacan), e na qual lhe diz que "nenhuma menina da Europa, exceto você, perderia seu tempo tentando isso" (JOYCE, 1982, p. 1284), isto é, tentando dar mais "firmeza".

A repugnância de Joyce com relação a Nora aparece na personagem de Molly Bloom, que representa a vulgaridade da mulher que nunca diz não, e nas diversas personagens femininas, já evocadas, de sua obra.

Mas na vertente "mulher eleita", ela também é uma santa, e até mesmo a Virgem Maria ou o Menino Jesus. Quando Joyce vai visitar o antigo quarto de Nora no hotel Finn (de onde deriva Finnegans Wake), ele lhe escreve: "Quase me ajoelhei para rezar ali como os três reis do Oriente o fizeram diante da manjedoura onde repousava Jesus" (Ibid., p. 1282).

Trata-se de uma epifania no sentido do cristianismo, mas também no sentido joyceano: "uma fase memorável do espírito, extático" (JOYCE, 1922/2010, p. 324).

Notemos também que Ulisses se desenrola ao longo de 16 de junho de 1904, que é o dia em que os dois se conheceram.

Para Joyce, o sobrenome de Nora, Barnacle, a masculiniza. Trata-se do oie bernacle [ganso-do-canadá], oriundo, segundo a lenda, dos mariscos homônimos e classificados como peixe na Irlanda para ser consumidos durante a Quaresma. E, em Ulisses, ele fala de "Um camarada que não é nem carne nem peixe (…), nem um bom arenque vermelho" (Ibid., p. 151) .

Barnacle também significa um aparelho que aperta as narinas dos cavalos para dominá-los, e Kinch, o apelido que Buck Mulligan dá a Stephen, significa um nó corrediço, feito sobretudo para segurar os cavalos pela língua.

O barnacle (craca em português), uma concha dotada de um pé-ventosa, permanece a vida toda pendurada no mesmo suporte, rocha ou destroço, por exemplo. "Com um nome assim, ela não te deixará nunca!", havia brincado o pai de Joyce.

E, com efeito, ela nunca o deixou. Eles raramente se separavam enquanto estavam vivos, e Nora se recusou a deixar a cidade onde Joyce foi enterrado. Ela incorpora, assim, o "jamais" herético Stephen em sua composição literária, mas mais na vertente "jamais ruptura" do que "jamais laço".

Assim como na escrita, Nora participa do sinthoma para Joyce, a quem ela evita o empuxo-à-mulher schreberiano e seu lado "poedeira universal", como Anna Livia Plurabelle, "a bela galinha" de Finnegans Wake. Assim, ela o ajuda a ser a poedeira particular de suas obras, das quais ele se faz filho, numa espécie de autoengendramento.

 

Referências

ANDRÉ, Serge. (1981). "Clinique et noeud borroméen" In: Actes des Journées de l'ECF – La clinique analytique des psychoses. Paris, 1981, pp. 86-94.

GOROG, F. (1993). "Joyce le prudent" In: La Cause freudienne 23. Paris, 1993, pp. 65-74.         [ Links ]

__________. (2005). "Joyce en savait plus que cette vérité que l'homme n'est pas la femme" In: Joyce-Lacan Symposium, 17 juin 2005, Dublin.         [ Links ]

JOYCE, J. Œuvres I et II. Paris: Gallimard (La Pléiade), 1995-96. Publiées sous la direction de J. Aubert qui a dirigé la rédaction de l'appareil critique.

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Endereço para correspondência
E-mail: mmosconi@wanadoo.fr

Recebido: 01/02/2016
Aprovado: 29/02/2016

 

 

Tradução: Cícero Oliveira: Graduado em Letras (Português/Francês) pela FFLCH-USP. Professor de francês e tradutor, mestre em Língua e Literatura Francesa pela mesma instituição. E-mail: ciceralb@gmail.com
Revisão da tradução: Dominique Fingermann: Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Autora do livro Por causa do pior (Iluminuras, 2005), em coautoria com Mauro Mendes Dias, e organizadora do livro Os paradoxos da repetição (Annablume, 2014). E-mail: dfingermann@gmail.com
* Psiquiatra, psiquiatra infantil. Ex-residente dos Hôpitaux Psychiatriques e ex-especialista hospitalar agregada à Assistance Publique de Marseille. Psicanalista, AME da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano. Delegada da IF e ensinante no Collège de Clinique Psychanalitique du Sud-Est. Presidente e diretora de estudos do CCPSE durante dois mandatos. Responsável pelas Revues Nationales des Collèges de Clinique Psychanalytiques nº 5 e nº 10.
1 Texto apresentado em 24/03/2012 durante a Journée Nationale des Collèges de Clinique Psychanalytique, Vichy (França).
2 No original: "(…) he shall produce nichthemerically from his unheavenly body a no uncertain quantity of obscene matter".
3 No original: "(…) over every square inch of the only foolscap available, his own body (…)".
4 (N.T.) Trocadilho com a palavra affreux (atroz, terrível, assustador, apavorante) e o nome de Freud, algo como um "atroz a-freudiano".
5 (N.T.) Referência a um trecho de Polite Conversation (ver o "Dialogue III") de Jonathan Swift: "Oh, the hideous creature! Did you observe her nails? They were long enough to scratch her granum out of the grave".
6 No original: "(…) Sniffer of carrion, premature gravedigger, seeker of the nest of evil in the bosom of a good word".
7 (N.T.) Do grego Stéfanos, "Stephen", em inglês ("Estevão", em português) tem o significado de coroado.
8 No original: "(…) All the world's in want and is writing a letter".
9 (N.T.) Trocadilho de Lacan entre a palavra jouissance (gozo) e a expressão j'ouis sens (eu ouço sentido) que reverbera também em Joyce sens (Joyce sentido).
10 Cf. A Lexicon of "Small" Languages in Finnegans Wake, editado por C. George Sandulescu, http://editura.mttlc.ro/carti/sandulescu-small-languages-fw.pdf, p. 101.
11 JOYCE, J. "Lettre à Ettore Schmitz", citado por BRENDA WADDOX, Nora. Paris: Albin Michel, 1990. GOROG, F. "Joyce le prudent".

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