SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número32Enlaces do grafo do desejo com os discursos, a partir do Seminário 16, de Jacques LacanA transmissão como sustentação do passe: para além da nomeação índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.32 Rio de Janeiro jun. 2016

 

ESPAÇO ESCOLA

 

A imensa precariedade do desejo

 

The desire's immense precariousness

 

 

Beatriz Elena Zuluaga Jaramillo*

Escuela de los Foros del Campo Lacaniano

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O final de análise, a satisfação que acarreta dito final e dedicar-se a satisfazer outros casos de urgência, parece-me que são três pontos que se juntam entre si por uma pergunta que considero a fundamental de Lacan: que razão nos leva a sermos analistas? Que razão nos leva a "atender às necessidades dos a-cargo? A Escola não produz o desejo de analista, é contingência de uma análise, mas à experiência original, esta que Lacan fundou, nos corresponde, um por um, devolver o vital, seu enlace com a vida, o enlace efeito de um novo trabalho com o real. Um caminho, talvez possível, é que nós, os analistas, passemos de quando em quando da cômoda poltrona, ao banquinho incômodo que nos recorde que não podemos afrouxar o rigor exigido para nossa ação. Se esquecermos isso, a experiência da psicanálise – e a Escola como seu refúgio – terá desperdiçado todo laço possível com a vida…

Palavras-chave: Desejo de analista, Satisfação, Enlace, Vital.


ABSTRACT

The end of the analysis, the satisfaction that turns into a final statement, and the dedication to satisfy other urgent cases, to me, are three points that meet together to provoke a question that I regard as crucial in Lacan: which reasons make us become analysts? Which reason takes us to "fulfill the needs of the a-cargo"? The School does not produce the analyst's desire, it is a contingence of an analysis, but to the original experience. Founded by Lacan, it brings us, one by one, to return the vital, its link with life, the effect connection of a new work with the real. A possible way, is that we, analysts, once in a while, move from the comfortable seat to the uncomfortable bench in order to have us remember that we shall abandon the rigor requited for our action. If we forget this, the psychoanalytical experience – and the Schools as its refuge – will have wasted all possible connection with life…

Keywords: Analyst's desire, Satisfaction, Bond, Vital.


 

 

Pessoalmente por ter habitado em três sociedades psicanalíticas durante
uns trinta anos, até hoje, em três períodos, de quinze, dez e cinco anos,
entendo um pouco o que é coabitar com o lixo doméstico.
(LACAN, 1968-1969/2008, pp. 11-12).

 

Sempre tive um questionamento desde que iniciei minha relação com a psicanálise, fundamentalmente no modo como se faz laço de Escola: qual é a relação da psicanálise com a vida? Minha pergunta não se detém no efeito terapêutico, mas concerne ao saldo de Eros no um a um, que teria de ter efeitos em toda a comunidade de analistas. Portanto, a travessia analítica permite aos analistas não apenas acompanhar outros para que façam sua própria travessia, mas também a um dizer em ato, que se ocupe de velar e sustentar um desejo que se oponha ao real das instituições? Que se oponha ao real que situa às vezes nossas Escolas a par dos fenômenos mais comuns dos grupos?

É um fato clínico que a demanda de análise nos conduz à angústia, ao menos a um sofrimento, "o que não anda". O mal-estar subjetivo ao não operar mais o enlace perfeito de nosso fantasma conduz alguns de nós às portas dessa experiência nada cômoda, mas inédita e singular, que é a análise, sobretudo por seu saldo final. Eu me pergunto de novo: dito saldo, entendido como satisfação no final, abraça e implica a comunidade analítica? É este o saldo vital da experiência? Se nos apoiarmos nos testemunhos que temos lido, nas experiências que temos escutado dos que fizeram parte dos cartéis do passe, poderíamos dizer que sim, que a experiência da psicanálise, inclusive tendo menos ilusões e ideais com relação a nossas Escolas, tem um voto pela vida, pois, escutando os AE e alguns outros, "dispersos disparatados" não nomeados, a psicanálise parece permitir uma maneira inédita de ver isso com a experiência de estarmos vivos e de nos ocuparmos em pensar e discutir a teoria e a clínica com outros.

A psicanálise, como a própria vida, não deixa de nos surpreender. Com Freud e Lacan, foram semeados, no mundo do pensamento, dizeres inesperados. Freud descobre o inconsciente, suas formações e o saber daí extraído. Ele nos ensina, além disso, que a pulsão é parcial, e Lacan o reformula: não há relação entre os sexos… E sabemos que o modo como cada ser falante se organiza com isso é seu verdadeiro "enlace", o mais singular, pois sustenta suas fidelidades com o objeto e determina, por sua vez, seu modo de fazer laço com os outros: do amor, do trabalho e do sexo.

No dispositivo analítico, alguns enlaces se tecem e, sem recorrer a eles, a aventura de uma análise não seria mais que uma psicoterapia. Ditos enlaces estruturados pelo dispositivo terão como efeito outro saldo importante: o saldo que rompe o chamado pertinaz ao significante, assim como a demanda de buscar sentido, e a garantia de um Outro para insistir em construir "O par", a relação sexual impossível. Então, os enlaces lapso-sentido, equívoco-interpretação, associação-corte, sob o artifício do Sujeito-Suposto-Saber, darão passagem ao ciframento de poucos, muito poucos S1, prelúdios de um limite onde "já não se tem nenhum impacto de sentido" (LACAN, 1976/2003, p. 567).

Se nos detivermos nesse ponto da frase de Lacan no prefácio, vemos que aí ele nos dá uma pista para tentar apreender o fora de todo enlace, sentido ou associação do inconsciente real. Quando há um não mais! "somente então se está seguro de estar no inconsciente". Por isso, Lacan nos diz várias vezes que, só em prestar atenção, isto é, estender de novo um laço de significante, de pensamento ou de atenção …, "aí não estamos mais no inconsciente" (Ibid.). Ao menos, não no inconsciente que abriga a verdade, que, sabemos, somente poderá ser meio-dita, pois jamais se saberá tudo dela. O que aqui se nos revela é que, como sujeitos, isso que nos constitui de mais fundamental, opõe-se a qualquer laço, enquanto no consciente, nem com o significante, nem com o dispositivo analítico, o inconsciente que aqui interessa a Lacan, e em consequência à nossa clínica, nos diz, nesse texto, não há amizade alguma que o suporte?

A verdade, se é oferecida ao significante, mente, o real do inconsciente não "diz nada" e, com o objeto, resto, êxtimo do significante, somente gozamos dele. Que laço, então, é-nos prometido, a nós, os exilados, daquilo que nos causa no mundo? Esta não é uma pergunta nova, já Freud e Lacan se fizeram essa pergunta a seu modo. Lacan se ocupou em nos mostrar, com seus quatro discursos, que, por sorte, há maneiras de criar laços para lidar com o gozo. Freud, apesar da barreira da castração, para eles; e a inveja do pênis, para elas, foi otimista, pois acreditava que a análise oferecia ferramentas ao analisado para se posicionar diferente diante de sua doença, e em seu horizonte estava recuperar a capacidade de amar e de trabalhar. Lacan concluiu que a análise podia permitir a um sujeito se haver com o intratável. Temos todo o desenvolvimento de Lacan para pensar o final de uma cura, para pensar como se arranja o sujeito com o rebelde ao significante, e como, finalmente, se inventa um dispositivo para dar a palavra àqueles sujeitos que se atrevem "a se submeter à prova da hystorização da análise" (LACAN, 1976/2003, p. 569), e esperar deles uma palavra, mas não uma qualquer, porém o pequeno, o precário dizer que se logrou extrair, contudo imenso, inédito, singular, pois tem uma grande tarefa: renovar, devolvendo algo vital ao corpus teórico-clínico da psicanálise.

A novidade é como esse sujeito efeito da travessia analítica logrou reconciliar-se com o pior de si, inventando outro modo de fazer laço, porém não mais para insistir no impossível, nem fazer um uso clínico disso, mas para lhe dar um tratamento diferente, pois a análise deve-lhe haver revelado algo de seu gozo mais rebelde, de seu núcleo mais obsceno, para, sem juízo, preconceito, esperança ou qualquer ideal, deixar passar, permitir, como semblante do objeto, que outros se submetam à travessia analítica. Operação efeito do que Lacan chama satisfação do final.

Por isso, creio que o termo satisfação abarca o ponto ético fundamental da clínica analítica, porque, na sua própria formulação, se consigna o que nos foi dito, desde os albores da psicanálise, pela boca de Freud. E como concordou Lacan (1968-69/2008, p. 206): "[…] a pulsão é, sem dúvida, mitológica […] mas o que não é mitológico é a suposição de que o sujeito esteja satisfeito com ela". Freud disse categoricamente: para a pulsão, sua meta é a satisfação, pois, uma vez conhecido um prazer, será muito difícil renunciar a ele. E Lacan foi mais contundente e nos diz: gozamos dos sintomas, gozamos do inconsciente, gozamos ao falar, isto é, insistimos em gozar. E o gozo é necessário para que a máquina funcione, "[…] nela só se indicando o gozo para que se tenha por essa maneira de apagamento [effaçon], como furo a preencher", nos diz Lacan (1970/2003, p. 434). Mas, satisfazer-se, ao contrário de gozar, guarda, em sua conotação, o limite, a pacificação, pois, nesse contexto, efeito desse novo laço com o real, haverá de se abrir uma dimensão distinta, que se esperaria permitir ao analista "[…] se dedicar a satisfazer esses casos de urgência" (LACAN, 1976/2003, p. 569). O gozo, então, não faz laço com o outro, mas a satisfação inclui outros, faz laço analista-paciente e se espera que faça laço com os pares da Comunidade.

Pois bem, ao final da análise, a satisfação que acarreta dito final a se consagrar a satisfazer outros casos de urgência, parece-me que são três pontos que se atam entre eles por uma pergunta que considero a fundamental de Lacan, e que penso que cada analista deve fazer-se todo dia, ainda que algo dela já se haja revelado em sua análise: que razão nos leva a sermos analistas? Que razão nos leva a "atender às necessidades dos a-cargo"? É o efeito, se seguirmos no contexto do prefácio, da satisfação do final? Esta questão me interessa, porque abre uma via para responder uma pergunta que escutamos muitas vezes: que ocorre com a pulsão no final? Que fazer com essa boca feroz que nunca se fecha? A respeito, Lacan, no final de seu ensino, nos indica que pode haver um pacto novo, um gozo moderado por uma nova satisfação.

O modo como até hoje entendo essa satisfação é que ela é um afeto provocado por uma posição distinta em relação ao real. Uma resposta ética, que impele a criar novos laços, por via do desejo do analista. Portanto, a satisfação do final não está separada de uma função, a do desejo do analista.

Um desejo que opera não apenas como ato solitário, no laço analista-analisante, mas também como transferência a uns pares e a uma Escola. Não há aqui um saldo vital? Trabalhar para um impossível desperdiça uma vida, mas o paradoxo de uma análise é que nos ensina que se reconciliar com o pior, mas naturalmente advertido disso, pode ser o melhor pacto "passo-passe" na vida. Se o analista "se criva do rebotalho de que falei, é por ter um vislumbre de que a humanidade se situa pelo feliz-acaso [bon heur] […] e é nisso que ele deve ter circunscrito a causa de seu horror, o dele próprio, destacado do de todos, horror de saber" (LACAN, 1974/2003, p. 313).

A análise, essa travessia pela qual alguns de nós decidimos quando a opacidade do gozo nos cerrava a porta para a vida, para mantermos aberta a janela do fantasma, pode, sim, nos permitir fazer uma tessitura, um laço com os outros que estão em vias de fazer a sua própria, a "própria", quer dizer, analisar-se para, em sua trama significante, resgatar um desejo, talvez para alguns, o do analista, para outros, simplesmente "ir cuidar de sua vida" (PACHECO, 2015). Não é isso já o bastante? Não é imensa a precariedade de um desejo? Precariedade pelo simples que pode ser; mas imenso, pois nos permite nos suportar e nos impulsionar a cuidar dos laços nos amores, no trabalho, nos amigos, isto é, da própria vida, e, para nós que nos denominamos analistas, além de tudo antes expresso, cuidar das transferências, dos laços com os pares e, naturalmente, cuidar da Escola. Não foi para a aposta e o desafio que nos convocou Lacan? Seus textos institucionais foram sua intenção de preservar o refúgio para a psicanálise: seu "Ato de Fundação", sua "Proposição de 1967", sua "Exortação à Escola", a "Nota Italiana" etc.

Sustentamos tal aposta? Mantemo-nos analistas à altura dela? Não estou muito segura, pois, apesar de isso ser afirmado nos encontros, em nível teórico também, constatamos, muitas vezes, que o desejo do analista não passa na prova da Escola. Tal desejo falta na Escola. Constatamos que nem sempre ele anima nossas Escolas.

O desejo de análise é a contingência de uma análise, não é o efeito de Escola, mas nossa Escola deve garantir que o desejo do analista seja o que sustenta o ato dos analistas que ali se inscrevem. A experiência original, esta que Lacan fundou e viu expirar muitas vezes, corresponde a nós, um por um, devolver-lhe o vital, seu enlace com a vida, o enlace efeito de um novo trabalho com o real. Do contrário, nossa comunidade, como os pares do amor, estará condenada muitas vezes, como diz Colette Soler na apresentação de nosso IX Encontro em Medellín, ao desencanto. Não é esse o afeto de todo desejo gasto ou ausente? Realmente, hoje, impelimos, sustentamos, alentamos o desejo de psicanálise? Estamos assegurando o lugar da psicanálise no mundo?

Nossa Escola soube aproveitar o ensinamento do que se depurou do dispositivo? E aqui evoco um dos ecos que chegaram da última Jornada de Toulouse (setembro de 2015). Como sustentar o desejo no um a um? Como revitalizar a função dos AE e lhes devolver seu papel crítico e seu dizer, em seu testemunho sobre os efeitos da psicanálise sobre o real? Como evitar que as Escolas acabem corroendo seus próprios princípios? Há caminhos, naturalmente, e um destes são Jornadas, Encontros, que renovam nossa causa, quando vemos trabalho, entusiasmo, laços. Laços que nos recordam que não é nem o real ressaltado, nem os sintomas, nem a resistência ao discurso capitalista que assegurarão o lugar do psicanalista no mundo. A psicanálise, seu futuro, não dependerá somente do real, dependerá fundamentalmente do compromisso de cada analista na conquista de seu desejo e deste com a Escola. Dependerá de um trabalho de comunidade, que ponha o foco no ensino precioso que escutamos dia a dia nos divãs, no dispositivo do passe e nas palavras de nossos colegas. Estes últimos nos enfrentam com seu lado mais escuro, mas também nos mostram o pior do nosso. Contudo, como nos ensina o grande artista Vik Muniz, "façamos vida com nossos afazeres", façamos do desperdício, um uso diferente, o uso de uma nova satisfação para si e para outros. Um uso que transmita a outros que a economia do gozo pode transformar-se e que se pode fazer um trabalho com aqueles que também recolheram e trabalharam com seu refugo. Um uso que transmita e, sobretudo, "que se enlace no tempo por vir" (BERTA, 2015).

Poderíamos pensar, então, que a travessia analítica atada à Escola talvez nos permita fazer condescender ao gozo, ao mais intratável de cada um, a um laço que sustente, que faça um nó sustentável por meio do desejo do analista e do desejo da psicanálise. Um caminho talvez viável é que nós, os analistas, passemos, de vez em quando, do cômodo sofá ao banquinho incômodo que nos lembre que não podemos afrouxar o rigor exigido para nossa ação. Se esquecermos isso, a experiência da psicanálise – e a escola como seu refúgio – des-fará todo laço possível com a vida…

 

Referências

BERTA, S. Efectos de un decir en la clínica y la escuela. Trabalho apresentado na Jornada La Escuela a Viva Voz, Buenos Aires, 2015.         [ Links ]

LACAN, J. (1968-69). O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.         [ Links ]

LACAN, J. (1974). "Nota italiana" In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.         [ Links ]

LACAN, J. (1970). "Radiofonia" In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.         [ Links ]

LACAN, J. (1976). "Prefácio à edição inglesa do Seminário 11" In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.         [ Links ]

PACHECO, A. L. El Pase: el artificio inmundo que recoge el desecho de la Humanidad. Trabalho apresentado em Tucumán, 2012.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Calle 36 nº 79 – 17 – Medellín
Tel.: +412 80 30
E-mail: beatrizelenazuluagaj@gmail.com
E-mail: bzulu@une.net.co

Recebido: 10/02/2016
Aprovado: 22/03/2016

 

 

Tradução: Solange Mendes da Fonsêca: Licenciada em Letras Neolatinas pela Universidade Federal da Bahia. Professora aposentada da Universidade Federal da Bahia (espanhol) e da Secretaria de Educação do Estado da Bahia (português, espanhol e francês). Revisora e tradutora de textos acadêmicos, artigos, ensaios, coletâneas, livros técnicos e literários. E-mail: solange_sossoh@yahoo.com.br
Revisão da tradução: Ida Freitas
* Analista Miembro de la Escuela de los Foros del Campo Lacaniano

Creative Commons License