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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.32 Rio de Janeiro jun. 2016

 

ESPAÇO ESCOLA

 

O que enlaça o psicanalista na Escola de Lacan?

 

The tie and the grape tree: what ties the psychoanalyst to Lacan's School

 

 

Katarina Aragão Ponciano*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Fórum Aracaju

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente texto trata de uma reflexão sobre o enlaçamento do analista e a Escola. Esse refletir iniciou-se na construção de um trabalho de Cartel. No decorrer do texto discute-se, por meio de textos fundadores, o modo de ser e de estar do analista em consonância com sua práxis. A discussão trouxe ainda um novo significante – empar – para pensar a possibilidade de enlaçamento.

Palavras-chave: Passe, Cartel, Analista, Escola, Lacan.


ABSTRACT

This text is a reflection about the connection between the analyst and the School, which has started in the construction of a Cartel work. Throughout the text, based on the founding texts, it is discussed the analyst's way of being in accordance with his/her praxes. It also brings a new signifier in order to think about this possibility of bonding.

Keywords: Pass, Cartel, Analyst, School, Lacan.


 

 

Este questionamento surgiu do tema do encontro internacional e levou a outra questão dentro de um contexto – o de um trabalho em Cartel: um Cartel que não enlaçou os seus componentes e pertinho do fim, desenlaçou-se… Um desenlace que fez surgir uma fita. Fita na mão, rumo à produção!

Por que não articular os laços à palavra empasse, uma palavra pouco conhecida na língua portuguesa, e os desenlaces aos impasses? Não há uma fórmula, mas podemos aproximar, seria algo da equivalência.

A proposta é refletir sobre empasse, essa palavra pouco usada da língua portuguesa, para escrever alguns apontamentos sobre a formação do analista e o que nos enlaça. Mas para falar do empasse (do verbo empar) ficará mais fácil se retomarmos o vocábulo impasse. As duas palavras existem na língua portuguesa, mas é preciso muita atenção quanto ao seu emprego. O impasse significa beco sem saída, uma situação embaraçosa. O empasse significa a operação que consiste em amarrar as varas/estacas dos frutos de uma videira sobre dois paus, um enterrado junto à origem da vara – pau de espera – e outro junto à ponta – pau do fim (FERREIRA, 1999).

Para tratar o empasse, recorremos ao texto de Freud (1919) sobre o ensino da psicanálise na universidade no qual afirma que a formação do analista deve ser sustentada a partir de um tripé constituído por ensino teórico, supervisão e análise pessoal. Esse tripé teve sua importância reafirmada por Lacan que lhe forneceu maior consistência. Então, associei ao tripé, as estacas da operação do empar que sustenta a formação do analista.

 

Laço e empasse ou desenlace e impasse?

No prefácio do livro a Estranheza da Psicanálise, Quinet (2009) aponta que a psicanálise é Extranha em relação a outras disciplinas e à própria civilização. Ele diz: "é essa estranheza que Lacan situa no âmago da sua Escola como lugar de formação do psicanalista. A escola de Lacan é a estranha na civilização".

Lacan introduz, na "Proposição de 9 de outubro de 1967", a dessemelhança, a desigualdade dos membros em relação à psicanálise: se todas são iguais perante o trabalho, nem todos são iguais perante a formação analítica e o reconhecimento como analista pela Escola.

Como pensar, então, na articulação dos chamados "Colégios Clínicos" com a Escola? No mesmo texto ele introduz um grau, um gradus para o analista – gradus totalmente independente da hierarquia de mando da instituição – ao mesmo tempo em que afirma que o analista só se autoriza de si mesmo, porém na sua Escola não se autoriza e nem se desautoriza ninguém a praticar psicanálise, mas é seu dever reconhecer e garantir aquele que aí tenha feito sua formação e dado provas de sua prática de analista. A Escola confere o título de AME – analista membro da Escola. AE, analista da Escola, é o título conferido àquele que fez o passe, no qual se reconheceu a passagem de analisante a analista em seu relato sobre sua análise; com isso a Escola se diferencia das outras instituições de psicanálise, nas quais autorização e garantia se confundem.

A "Proposição de 9 de outubro de 1967" de Lacan pode nortear reflexões sobre os impasses e aquilo que nos faz pensar sobre a estrutura de uma instituição psicanalítica e seus impasses. O passe foi aí proposto com a finalidade de teorizar sobre o surgimento de um analista na lógica do final de análise, o qual, após Freud, não havia sido tratado com o devido rigor. No lugar desse rigor teórico, criaram-se regras cada vez mais rígidas, padrões preestabelecidos, que longe de fazer surgir o sujeito do inconsciente o faziam sumir, ou melhor, apareceu o consumir, consumir tempo, dinheiro… assim, erguia-se uma padronização da análise e a burocratização da instituição.

Em sua "Proposição", Lacan parte do seguinte princípio: "o analista se autoriza de si mesmo". O que se extrai de uma análise é um analista. O final da análise é marcado por essa passagem de analisante a analista. A Escola será testemunha dessa garantia não só mediante seu ensinamento, mas também por meio da instauração de uma "comunidade de experiência". A psicanálise tomada em intensão deverá ser verificada pela Escola em sua função de extensão, ou seja, de transmissão. Lacan propõe, então, o passe na tentativa de fazer uma mostração de que daquela análise se retirou um analista. Assim, não se exclui a garantia da Escola, porém ele diz que não é com essa garantia que o analista opera.

Sendo assim, há o impasse na formação. Um beco sem saída, mas que nos leva a pensarmos no empasse, no em-pares (com os pares), ou seja, é com as estacas (pau do início e pau do fim) que se faz cartel. É em-par, com os pares membros de Escola, que se pede, que se solicita o passe.

Temos aí a contradição em relação a outras instituições não lacanianas, nas quais o grupo funciona como fundamento do ensino. A metáfora da videira exemplifica o trabalho do cartel, que de pau de começo e pau de fim, vai enlaçando e desenlaçando com o que vai transmitindo no percurso.

O analista é sempre advindo de uma queda, de um dejeto, mas não qualquer um. Não basta se fazer dejeto para o outro, há que se entusiasmar com a transmissão. Assim, tornar-se analista é dispor-se à transmissão com todos os seus percalços, dentro ou fora de uma instituição psicanalítica. Tornar-se analista não é um sinal verde para que o analista possa fazer simplesmente o que quer, tendo como critério seu próprio gozo. Quinet (2009) constata que a frase "o analista só se autoriza de si mesmo" com o dever de garantia em sua Escola, onde é convocado a levar ao conhecimento público o que ele faz do seu saber textual e do que foi depositado em sua experiência analítica.

E quanto ao ensino da psicanálise? Pode-se pressupor a existência de um enlaçamento entre o ensino e a transmissão representados no círculo de Euler. A zona de interseção entre esses dois campos, criada a partir desse nó, aponta para uma estrutura de corte. É dessa estrutura que se extrai o estilo, com o qual o analista opera e pode inventar, ir além da cola, da identificação com os ideais. O estilo de cada um vai dizer como se dá a formalização do ensino e a transmissão somente a partir de uma singularidade diferenciando com os pares.

A Escola de psicanálise encampa esses dois registros, do ensino e da transmissão, pois ela apresenta uma parte formal, de ficção e outra real, de pura falta, partes que se mesclam para deixar cair o objeto a, objeto causa de desejo. No "Ato de fundação" (1964/2003) o termo Escola, conforme Lacan, "deve ser tomado no sentido de que, em tempos antigos, significava certos lugares de refúgio, ou bases de operação contra o que já então se podia chamar de mal-estar na civilização. A partir dessa definição, entende-se que Escola implica a avaliação do estilo de vida a que a psicanálise leva. O estilo de vida se distingue de normas e modelos.

Nessa perspectiva, segundo Lacan (1958/1998), o ensino da psicanálise não pode ser um saber pré-digerido. Por isso tem razão a pergunta feita em "A direção do tratamento e os princípios de seu poder": Como ensinar aquilo que a psicanálise nos ensina? Pode-se afirmar nessa pergunta que há um ensino que se passa no âmbito da experiência psicanalítica? Sim, pois, foi o que levou Lacan a dizer que toda análise é didática. Assim, se o ensino também se dá aí, há que se levar em conta a transferência e, consequentemente, o sujeito suposto saber que a concebe. Freud diz que o que se aprende na transferência jamais se esquece.

Ao falar em transferência, menciono a publicação Stylus, que é uma publicação seriada da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano/Brasil, que permite que vozes, sotaques, abordagens e estilos diferentes sejam ouvidos nos diversos fóruns, pluralidade tencionada por uma mesma opção epistêmica e ética que a Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano sustenta.

Ao refletir sobre o impasse, recorremos ao texto "O mal-estar na civilização", no qual Freud explicita que o sofrimento nos ameaça a partir de três direções: a do nosso próprio corpo, a do mundo externo e, finalmente, a de nossos relacionamentos com os outros homens. Sobre essa última, enfatiza ser a mais penosa. Além disso, ressalta que na tarefa de evitar o sofrimento é prioritária a busca da felicidade. Portanto, os impasses se mostram necessários, pois como disse Freud (1920-30/1976) citando Goethe, nada é mais difícil de suportar que uma sucessão de dias belos.

Por fim, sobre uma metáfora que me foi dada por uma colega do campo lacaniano, que em-par me acolheu e me fez pensar que a videira nada mais busca que se enlaçar no seu vigor, assim como os analistas, não só em-pares, mas também só ou seria sol, com sua luz própria adquirido muitas vezes no céu duro de suas análises e com suas fitas.

 

Referências

FERREIRA, A. B. H. Novo Aurélio Século XXI: O dicionário da língua portuguesa. 3ª ed. totalmente rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.         [ Links ]

FREUD, S. (1929-30). "O mal-estar na cultura" In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud, v. 21. Rio de Janeiro: Imago, 1976.         [ Links ]

__________. (1919). "Sobre o ensino da psicanálise nas universidades". In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 17. Rio de Janeiro: Imago, 1976.         [ Links ]

LACAN, J. (1957). "A psicanálise e seu ensino". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1998.         [ Links ]

__________. (1964). "Ata de fundação da Escola Freudiana de Paris". In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.         [ Links ]

__________. (1967). "Proposição de 9 de outubro de 1967…". In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.         [ Links ]

__________. (1974). "Nota Italiana". In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.         [ Links ]

QUINET, A. A estranheza da psicanálise: a Escola de Lacan e seus analistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Dr. José Calumby Barreto, 133 – Bairro Suissa
Aracaju – SE – CEP: 49050-020
E-mail: katarinak1110@hotmail.com

Recebido: 11/02/2016
Aprovado: 11/04/2016

 

 

* Psicanalista, Doutoranda em Psicologia, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Fórum Aracaju.

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