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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.32 Rio de Janeiro jun. 2016

 

ESPAÇO ESCOLA

 

Vozes a partir do inaudível: verificação, auditoria e passagem pela Escola1

 

Voices from the inaudible: verification, auditing, and passage to the School

 

 

Matías Buttini*

Universidade de Buenos Aires
Fórum Analítico do Rio da Prata
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Instituição Terapêutica Témpora

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Que necessidade temos de nos reunir de vez em quando para falar sobre psicanálise? Que desejo nos impele a fazer Escola, a fazer passar, por ela, nossa voz? Que tipo de laços nos mantêm unidos? Nossa Escola de psicanálise conta com seus próprios métodos de verificação dos resultados de sua prática. Que diferenças nos vemos levados a estabelecer no que se refere a outros discursos? Lacan propôs à Escola, em seu conjunto, que tome a seu encargo o trabalho de dissipar essa "sombra espessa" que inunda a passagem de analisante a analista. A figura do auditor nos ajudará nessa tarefa, evitando cair em uma obediência burocrático-científica sustentada nos números e, por isso, isenta de toda crítica. Retomemos questões essenciais como o desejo, a verificação e a auditoria.

Palavras-chave: A voz, Auditor, Escola.


ABSTRACT

What need do we have to meet once in a while to talk about psychoanalysis? What desire takes us to make School, makes us pass our voice through it? What kind of bond keeps us together? Our School of psychoanalysis counts on its own verifying methods of the results in its practice. What differences are we brought to establish with other discourses? Lacan proposed the School as a whole to assume the work of dissipating the "deep shade" that floods the passage from patient to analyst. The figure of the auditor will help us in this task, avoiding us to fall into a bureaucratic-scientific obedience founded in numbers, and consequently free of any criticism. Let us return to essential issues like desire, verification and auditing.

Keywords: The voice, Auditor, School.


 

 

1. Introdução: do primeiro passo para meter os pés pelas mãos… [= "meter la pata"]

À guisa de introdução ao tema que propus, trago algo que quero lhes fazer escutar. Trata-se, nem mais nem menos, do primeiro passo na Lua e do que Neil Armstrong, aquele astronauta famoso, disse nesse mesmo instante em que dava esse passo, inundando, pela primeira vez, a Lua com a voz humana (mesmo que tivesse posto o capacete, seria difícil saber se escutou algo ali, mesmo um murmúrio ou um tremor imperceptível) [Áudio]2

Ali se produz uma falha, segundo ele, um lapso segundo a crítica jornalística, que levou a que, em cada entrevista posterior ao acontecimento que ele deu em sua vida, se encarregasse de negar. Foi um problema da transmissão de rádio, dizia incansavelmente.

O que se pode apreciar, em forma auditiva, é que falta o som de uma letra crucial e isso faz, quem escuta, poder supor uma mudança ou passe de sentido, um passe de mãos, inclusive um sem-sentido, como se escuta em francês (pas de sens). Esse passo grandioso se reduz, pela falta da letra "a", em uma espécie de lapso.

Escuta-se que ele diz: "é um pequeno passo para o homem", em vez de "é um pequeno passo para um homem". Em inglês: "That's a small step for (a) man; a giant leap for mankind".3 Leap significa passo e também salto.

Esta letrinha que nos ecoa, Lacan não a retoma no nível do sentido senão no nível pulsional, isto é, no da voz. No Seminário 17, diz que "esses astronautas […] teriam se saído muito pior […] se não estivessem permanentemente acompanhados por esse pequeno a da voz humana" (LACAN, 1969-70/1992, p. 153). É todo o comentário que faz Lacan, de passagem. Pois bem, essas vozes que se escutam, a distâncias cada vez mais inesperadas, conseguem, com sua presença, que a uns seres humanos tenha acontecido algo menos pior do que sem elas. Fala de que escutavam essas vozes ou de que podiam falar e ser escutados?

Essa voz de Armstrong e as imagens transmitidas em conjunto foram questionadas por alguns como uma montagem filmada em um estúdio de televisão, que se trata de um passo em falso da ciência que cambaleia. Esboçamos, com isso, uma ideia simples: qualquer testemunho humano, por estar estruturado pela linguagem, está aberto a leituras.

Outra anedota: navegando pela internet, encontrei um artigo de um rapaz chileno que se apresenta como bricoleur, alguém habilidoso, alguém a quem encarregavam uns trabalhinhos, na época em que estudava em Paris nos anos 1970. Diz:

Me apresentei na rua de Lille, nº 5, em um típico edifício burguês do século XIX. Abre a porta um senhor de cabelos brancos, de óculos, um tanto magro. Cumprimenta mais a minha caixa de ferramentas do que eu. Não me lembro muitos detalhes daquele lugar. Talvez não me importassem ou já estava habituado ao ambiente de intelectuais parisienses… Me propôs um servicinho, digamos delicadamente, meio doido. Me pediu que serrasse em um par de milímetros o pé de um divã. Me disse que precisava desse móvel com un petit defaut [um pequeno defeito], vamos traduzir: manco. Era o divã que, usualmente, suas pacientes utilizavam (Disponível em: <http:www.francochilenos.com/spip.php?article2452&Lang=fr>.).

É uma anedota ou um rumor ou, talvez, simplesmente se trate de uma invenção como a do escritor italiano Giovanni Papini sobre seu inexistente encontro com Freud e a suposta conversa em tom de sátira. Acontece com personagens famosos e seus contemporâneos. Lacan serrando um pé de seu divã não é mais que um mito e, justamente por isso, uma metáfora de algo apelativo: uma espécie de real cambaleante, como vou chamá-lo; um incômodo que se faz sentir na experiência do dizer analisante. Um real que cambaleia por estar próximo da equivocação, do incomprovável em termos estritamente científicos ou, por que não?, um real que faz cambalear outros discursos pondo-os em questão com seu ato, "o ato de colocar o inconsciente" (LACAN, 1967-68/inédito, Aula de 10/01/1968).

Seja como for, se acreditarmos nessas histórias como fatos ou invenções, elas nos servem pela posição de leitor a que aludem: convocam aquele que escuta e que deveria decidir se crê nisso ou não, ou se diretamente não o afeta. Mas o lugar está convocado, chama-se o Outro pela via da voz, já que, como testemunhou Primo Levi e sublinhou Agamben, surge um paradoxo, uma vez que aquele que não tem voz não deveria poder dar testemunho. O que não acontece com o muselmann (muçulmano), o abatido em Auschwitz, aquele que, justamente por não ter voz nem vida já considerada humana, por estar "irreversivelmente exausto, extenuado e próximo da morte" (LEVI, 1986, p. 92), se converte no testemunho mais perfeito dos horrores que ali aconteciam. Contudo este testemunho mudo, sem restos visíveis de humanidade, necessita da voz de outros que deem testemunho por ele, introduzindo-nos em uma estrutura diferente. Inclusive, diz Primo Levi sobre o fim definido de sua vida, da obrigação que teve de sustentar, "precisamente o de dar testemunho, fazer ouvir minha voz ao povo alemão" (LEVI, 1986, p. 92).

Quando digo que está evocado o que escuta, eu o faço sublinhando que um testemunho está sujeito a afetar ou não a quem o recebe, a ser escutado ou não escutado.

 

2. Obedecer, auditar, verificar

Queria esmiuçar um pouco o título que propus para este Espaço Escola cuja causa inicial foi um trabalho intenso de cartel que levamos adiante com vários colegas sobre o tema Leitura de testemunhos do passe (2012-2014), originalmente proposto por Lucas Boxaca e eu no marco de uma oficina aberta de leitura de testemunhos em 2012. Nós nos ocupamos, naquele momento, em fazer várias apresentações. Também [lembro] as últimas jornadas, com a presença de Colette Soler e seu comentário na atividade do CIG, em que ela disse que, diferentemente da escola, o passe não é para todos.

A pergunta-guia que me conduziu ao título poderia ser formulada deste modo: como se verifica algo baseado exclusivamente no desejo? Ou, mais precisamente: como tornar audíveis seus resultados, uma Escola como a nossa, isto é, que oferece efetivamente4 pôr em prática o dispositivo do passe cada vez que alguém decide correr o risco de pedi-lo?

Queria dividir em três partes este desenvolvimento:

1ª – O título: Confesso que o roubei, com a intenção de que não passe despercebido, de um livro de Theodor Reik – Voices from the inaudible: the patients speak (1964), para interrogar a Escola. Longe da qualidade de Listening with the Third Ear (REIK, 1948/1983), o melhor é o título. Trabalhou bastante na questão da voz, do som, da escuta do analista e é contemporâneo de Lacan.

"Os pacientes falam" – diz. Falam graças a que ele, já entrado em anos, dá testemunho por eles, revisa as notas de sua vida, que incluem sessões de supervisão, seminários, alguma anedota com Freud e faz um livro…

Como pertence à IPA daqueles anos, seu corte se faz evidente: não há lugar para este sujeito dividido a que chamamos o analisado. Somente há lugar para os Analistas Atualizados Didaticamente. Eles não escapam à nomeação meritória do Grande Outro e, portanto, do discurso burocrático comum: tantas sessões e pronto! Você é analista!

O autor se surpreende, porque nenhum outro analista acreditou ser útil compilar todas essas expressões espontâneas ditas no contexto de uma análise. Reik (1964) sabe que apresenta algo um pouco cru e diz: "Yet I know that the more important material is not what patients say, but what is expressed in silence – in the pauses between their sentences. Here is the unsayable and sometimes the unspeakable" (REIK, 1964, p. 8).

Podemos traduzir: "Ainda assim, sei que o material mais importante não é o que os pacientes dizem senão o que se expressa em silêncio – nas pausas entre suas frases. Aqui está o que não se pode dizer (the unsayable, o indizível) e, às vezes, o inefável/inexpressável/indizível". The unspeakable, torcendo as coisas, alguém pode fazer escutar, na passagem de uma língua a outra, um-spi-ke-able, que fale. A isso que não se pode dizer, o analista oferece o corpo sonoro, capaz de responder com sua escuta e seu que fale.

Para Reik (1964), seus pacientes falam em sua memória, não recordam as caras desses sujeitos, mas "suas palavras, o tom e o timbre de suas vozes" (Ibid., p. 9). Nesse livro, permanecem como vozes: "Only their voices remain. It is almost ghostly…" (Ibid., p. 10).

Esse tipo de fantasmagoria quer nos dizer que devemos tomar caminhos mais científicos, tal como estipulam os inimigos da psicanálise? Teremos de escutar essas vozes críticas e simplesmente obedecer?

2ª – Como tornar audível sem obedecer? Sempre me surpreendeu que Lacan tenha inventado o passe para dar a essas vozes um topos específico: o Espaço da Escola. Vozes inaudíveis, inauditas, não escutadas até esse momento, surpreendentes, estranhas, inesperadas.

Ambos os dispositivos, o analítico e o passe, são veículos de vozes inauditas, que permitem ou não que algo inédito se produza. Esse objeto é próprio das práticas humanas. Do mesmo modo, talvez, que se eleva a voz para ressaltar algo, Lacan eleva a voz do analisante, realizando a operação contrária à de Reik: as vozes dos que se arriscam ao passe não são vozes ressonantes na recordação dos mais velhos que aprenderam ou não algo. De nenhuma forma. Quando Lacan (1967) propõe seu passe, passagem pela Escola, eleva essas vozes, fazendo com que as dos sábios permaneçam em silêncio.

Por isso, tomo uma hipótese que não deve ser muito inovadora, mas de que sempre gostei; é que penso que tanto o passe como as diversas teorias sobre o final de análise se deduzem de sua aprendizagem, escutando os psicóticos, aqueles que se movem melhor fora do Outro e que têm outra experiência da voz. Há finais que se repetem, por exemplo, o de dar testemunho, o de secretariar, o de se inventar por fora do Outro, o de se dar um nome fora dos discursos estabelecidos. Temos, no passe-dispositivo, um marco de movimento de corpos e de vozes que veiculam um dizer diverso.

Recorda-nos Colette Soler que o que se diz fica esquecido pelo próprio ato de dizer; e agregaria: a voz fica esquecida também pelo próprio ato da escuta, que costuma apontar para o significado.

Esse objeto voz é o objeto fundamental da psicanálise, dizia-nos Gabriel Lombardi faz pouco tempo. Como não o vimos antes? Como não recordar, com entusiasmo, essa frase de Lacan que leva diretamente ao próprio paradoxo? Se os objetos, como ele nos ensina, não têm uma estratificação nem uma evolução padrão, se nenhum é mais ou menos fundamental que outro, como podemos afirmar que o objeto voz é o objeto fundamental da psicanálise sem nos inquietar um pouco?

Além disso, não há dúvida de que é o objeto privilegiado da experiência analítica e aquele que a análise privilegia e permite personificar [encarnar]. É o que verificamos diariamente no uso freudiano do divã. Não se trata de uma técnica, tampouco de uma tecnologia avançada, nem sequer de algo retrô ou vintage, mas de um elemento ético, o ethos da palavra que articula a voz ao dizer de um sujeito. Uma voz in-audível que somente se faz audível graças ao ato analítico.

Claude Jaeglé (2010), em seu Retrato silencioso de Jacques Lacan, revisa exaustivamente e com um estilo contundente a função da voz na prática de Lacan, tomando-se a titânica tarefa de escutar seus seminários gravados. Insiste em que a transcrição a que estamos acostumados faz perder uma entonação, um ritmo, uma forma de dizer, a "teatralização" do que denomina um "pensamento-em-voz-alta". Perdemos o que sai de um corpo falante ou vociferante. E diz isso de um modo poético e preciso:

O dispositivo clássico da cura mobiliza o corpo do paciente sobre o divã, e o faz de modo que analista e paciente não troquem nenhum olhar, o silêncio se instala; a voz do paciente se eleva; o analista lhe opõe seu silêncio, fragmentos vocais de reinício ou de interpretação. Cada um dá ouvidos ao que o outro diz ou cala. A própria presença dos corpos se torna algo que se escuta: um gesto é um ruído. A imobilidade, um silêncio (JAEGLÉ, 2010, p. 88).

O autor se interroga – como é possível que Lacan, o qual manteve seu ensino a viva voz, durante três décadas; que se opunha a publicar rapidamente seus escritos e seus seminários; como é que ele que, próximo do final de sua vida, teve um acidente automobilístico de que supostamente saiu ileso, porém fingiu haver perdido um pouco a voz (ROUDINESCO, 2012), estendendo seus silêncios … como é que Lacan, tão interessado e, inclusive, perturbado pela questão da voz, dedicou apenas duas aulas do Seminário A angústia a esse tema e outros comentários soltos, e que haja produzido, em troca, um desenvolvimento muito preciso e extenso a respeito do olhar? Jaeglé (2010, p. 88) recorre aos números, dizendo que "em um quarto de século, três horas específicas, somente, são as que Lacan consagra ao vetor dominante dos intercâmbios entre um paciente e seu analista". Finalmente, propõe uma hipótese curiosa: "Essa exiguidade do tema da voz é um enigma – senão uma omissão voluntária".

Pois bem, a grande mágica, a maçã lustrosa que oculta a serpente da obediência é, já o sabemos, como escutar sem se deixar capturar. E o sabemos há muito tempo, com o flautista de Hammelin ou desde o canto das sereias para o qual Homero nos alerta: como se desatar (anelysan) do mastro sem se deixar atrair obedientemente pelo canto das sereias?

Pascal Quignard (2012, p. 68), em seu inesquecível O ódio à música, afirma uma série de questões que deveríamos retomar em uma Escola que não se orienta pelo Poder do Um senão pelas vozes de dispersos disparatados… e alguns outros. Sustenta que "escutar é obedecer. Escutar se diz em latim obaudire". Do que derivou, em francês, obéir, obedecer; "A audição, a audientia, é uma obaudientia, portanto uma obediência".

3ª – A que obedece nossa Escola como orelha que escuta as vozes diversas? Que tipo de auditoria deveríamos ter sem cair necessariamente na obediência da ciência, da obeciência?

Podemos ler no texto de apresentação de Ecos/Echos, n. 2, Boletim do novo CIG 2015, que:

O passe implica o mistério de decisões que se apoiam em encontros e mal-entendidos próprios do dispositivo, assim concebido por Lacan para deixar alguma possibilidade à transmissão do clarão [ou fulgor, brilho] de um desejo que não se divisa nas coordenadas tradicionais ou tecnológicas do reconhecimento. Que saia bem ou não, é responsabilidade dos cartéis do passe encontrar esta luz discreta, mas decisiva, para a Escola.

Das perguntas que formulei, duas permanecem pendentes: a primeira – como se verifica algo baseado no desejo? E a segunda – que desejo nos anima a re-unirmo-nos ou a fazer passar nossa voz pela Escola?

Sobre o termo verificação, escutamos Colette Soler repeti-lo amiúde em escritos, seus cursos e conferências: "Bonne… mas deve-se demonstrá-lo". Que tipo de demonstração tem a Escola?

Não podemos nos contentar com um laissez-faire institucional nem tampouco com as antigas análises didáticas onde o desejo do analista não figura senão como desejo de ser analista. Ambos, podemos dizer, da mesma forma que a ciência, evitam o sujeito e o desejo. A análise antepõe a essas vias o analisante, com um nós o verificaremos em seu discurso – ainda que eu interprete e empreste meu corpo aqui, não verificarei eu como um amo – no modo como você diz o que diz, o que lhe acontece e que efeitos teve e tem isso sobre você mesmo, tudo isso graças à regra fundamental.

Na Escola, essa estrutura não tem por que mudar. Digam, testemunhem, falem, escrevam, participem das atividades. A Escola os escuta. Para verificar, com seus dispositivos veículos das vozes, a transmissão que foi produzida, ela tem suas formas. Passagem necessária pela Escola.

Outros, às vezes, estão inclinados a dar testemunho aberto, livre. Há lugar na Escola para isso, sabendo que ali não se verifica nem se demonstra nada mais que alguém com seu dizer próprio, falando de sua experiência. Não é que isso tenha um valor, pelo contrário, já que o passe não é para todos, senão para quem se aventure a isso, inclusive para quem assim o deseje. Do contrário, passe obrigatório para todos igualmente e … fracasso da Escola, como aconteceu quando da famosa "Nota italiana" de Lacan (1974).

Então, é o passe como dispositivo, mas também a passagem pela Escola das vozes, o que torna possível uma verificação de algo cujos números, cujas estatísticas não têm muito que nos dizer: de tantos passantes, uns tantos foram nomeados, outros tantos, não. Se pusermos o valor nos números, nas possibilidades a que estamos acostumados desde há muito no mundo, caímos nos usos políticos mais perigosos. Por exemplo, nos Estados Unidos, a Confederação, em 1777, realizou o primeiro censo para dividir os custos da guerra e os que vieram depois, estabeleceram que se realizasse um censo a cada dez anos para assegurar igual representação das famílias, mas "para apaziguar os proprietários de plantações do Sul, os negros deveriam ser contados à razão de 3/5 de pessoa" (HACKING, 1991/2009, p. 40).

Agora, por que introduzir a figura da auditoria? Essa verificação da passagem pela Escola não poderia ser feita sem essas vozes que recebe e torna audíveis. O auditor não é outro senão o que traslada seus corpos para ouvir, constituindo-se assim, a cada vez, em auditorium.

Mas este auditar da Escola tem outra função: fazer com que a mensagem retorne sobre ela mesma e não somente sobre quem fala, diferença incisiva em relação ao que audita os números de uma companhia.

Igualmente ao desejo, sua verificação ou sua realização depende de condições particulares de cada qual, mas sobretudo, depende também de que isso se faça audível de certa maneira. Igual ao você o disse de Lacan, o analista bem poderia responder freudianamente com um você o desejou.

A obediência própria da voz e o escutar como encantamento, já advertido por Plínio nas leituras públicas realizadas em Roma no final do século I, quando os autores se faziam famosos lendo em voz alta seus textos e contavam com o "deleite de escutar sua própria voz" (MANGUEL, 2005), pode nos conduzir ao dogmatismo egocêntrico das massas. Plínio também adverte, por outro lado, que essa prática é "um ato realizado com a totalidade do corpo, para ser presenciado por outros" (MANGUEL, 2005, p. 262). Ambas as questões nos interessam e sob que forma.

Tal como comenta Manguel (2005, p. 266), há uma terceira opção que podemos tomar para a Escola e suas vozes: "como Plínio havia explicado, as leituras públicas do autor estavam pensadas não apenas para levar o texto ao público, mas também para devolvê-lo logo ao autor" (Ibid.). Movimento de ida e volta entre o autor/leitor, o auditor, o auditorium e o próprio texto, que não poderia reduzir-se à obediência aos números sem matar o desejo, que não pode traduzir-se em números.

Para responder à segunda questão sobre o desejo que nos anima a nos reunir, agruparei as respostas que habitualmente escuto de colegas da saúde mental de diferente procedência. Por um lado, um grupo de respostas é expresso em termos de corte político-partidarista. Escutam-se palavras como militância, fanatismo, entre outras. Por outro lado, estão as respostas mais clássicas: os psicanalistas – especialmente os lacanianos –, porque permanecemos quase o dia inteiro calados, escutando outros e necessitamos da Escola como do café com os amigos ou outros dispositivos similares, que nos servem para poder falar. Esta é a resposta que chamaria de retentiva-acumulativa: calar durante o dia inteiro e, no final, falar na escola.

Como essas respostas não me satisfazem muito, as primeiras, por não parecerem muito atrativas como ideia, já que levam a pensar em um líder e seus seguidores, quer se trate do ideal de doutrinamento religioso, da força política ou do treinamento militar; as segundas, porque dão maior consistência ainda ao preconceito de que nós, os analistas, calamos com um esforço enorme – eu costumo chamar de entulho lacaniano o analista mudo, que nunca fala, do qual os pacientes se queixam dizendo "nunca me dizia nada, nunca abria a boca" –, trata-se mais de uma teoria que confunde a abstinência e a atenção flutuante com uma espécie de sufocação voluntariosa de uma curiosidade exagerada ou excessiva.5 Sinto-me obrigado a buscar alguma outra que sustente o que acontece.

Algo da voz, não apenas da palavra, mas também de um percurso emocional, deverá fazer-se presente. Alguns virão porque querem saber mais, porque querem se fazer escutar; outros porque querem se agrupar, outros simplesmente porque necessitam de diálogo com colegas.

Mas não aponto as causas próprias de cada membro, senão uma um tanto mais geral. A Escola é o lugar onde tornamos audível algo que nos resulta inaudito, não escutado. As vozes ressoam nos encontros, nas jornadas, nas supervisões, nos cartéis, nos passes … todos dispositivos humanos da voz, muito diferentes dos números da ciência, das porcentagens de esquizofrênicos no mundo, das probabilidades de contrair ou não tal ou qual enfermidade mental, de acordo com a quantidade de genes malignos ativos que a cadeia de sua família lhe deixou como herança.

Eu me oponho aos números! A Escola é em voz alta, é onde ressoam as vozes de quem deseja ser escutado, inclusive confrontado com seus próprios dizeres. Ainda que essa voz possa ser gravada e manipulada pela tecnologia e até resulte interessante fazê-lo, eu resisto a que se calem as vozes que querem soar, do modo próprio, não sem risco. Este oposicionismo é uma maneira antiburocrática que encontro de manter vivo o questionamento da experiência que conduzimos e à qual nos deixamos conduzir em um princípio, e é justamente ali onde um analista requer a companhia de outros que não sejam seus pacientes.

Justamente, a esses astronautas de que fala Lacan, teria ocorrido algo muito pior se não estivessem acompanhados por esse a minúsculo da voz humana. Retomo esse comentário inicial, já que Lacan falou de outro personagem flutuando no espaço; mas é a imagem oposta, é alguém muito só, antecedido somente por Laika (literalmente, ladradora em russo), a cadela astronauta, em novembro de 1957, mas que não voltou. Em 16 de dezembro de 1964, tece seu comentário sobre o cosmonauta russo Yuri Gagarin, o primeiro homem a sair da atmosfera. Ele o faz para sustentar que o corpo está estruturado como uma garrafa de Klein, em que um interior e um exterior se põem em contato topologicamente com outro interior e exterior. Diz:

Gagarin, aparentemente, está exatamente enclausurado – digamos para simplificar em ir rápido, não temos mais muito tempo – como o homem antigo, em seu pequeno cosmo ambulante […] faz uma operação redobrada. Ele se envelopa em seu próprio pulmão, o que necessita que, no fim das contas, ele mije no interior de seu próprio pulmão, porque é preciso que tudo isso [refere-se aos excrementos corporais que não saíam do interior desse traje espacial] se enfie em alguma parte (LACAN, 1964-65/inédito, Aula de 16/12/1964).

A descrição é de uma desolação que creio similar à de um analista que não dialoga com a Escola e com o que ela proporciona: como saber sobre o final da análise, por exemplo, não somente do próprio final, mas também do de outros, daqueles que fazem sua passagem pela Escola? Como investigar certa clínica sobre o desejo do analista, o final da transferência, a queda do outro etc., sem contribuir para o encontro onde esses testemunhos se dão a ouvir?

É necessário, então, que os restos da experiência cotidiana se vertam em alguma parte que não seja o próprio corpo. Já que a vida do psicanalista não é cor-de-rosa e pode ser comparada a uma lixeira, como nos diz Lacan desde muito antes (1955-56, p. 47), e que eu já trabalhei com o equívoco do reco-leitor de lixo, de testemunhos, de restos de experiências.

Para encerrar a apresentação, podemos tomar a palavra de Josep Monseny (2007, p. 17) quando diz que "somente fazendo parte de uma Escola na qual o passe mantenha vivo o questionamento da experiência, inclusive se for para que o grupo inteiro resista a ele, permite-se manter viva a questão da relação com o 'desejo do analista' para cada analista".

Uma ideia que me interessou desde que a li pela primeira vez, já que propõe o passe como adesivo da Escola, se tomarmos o jogo homofônico que faz Lacan entre École e cole, Escola e cola ou adesivo. Mas não ao modo da massa freudiana, mas ao modo de um dispositivo a que se costuma resistir na própria Escola, porém é o único capaz de manter aberta, junto com o cartel e a prática da supervisão, a pergunta sobre o desejo para cada analista. Um adesivo que não é intruso, que resiste à intrusão, à uniformidade e que se sustenta na pura diferença que o passe lhe outorga em forma verificada. Seus resultados, os que põem a experiência à prova, voltam-se sobre a própria Escola.

 

3. À guisa de conclusão…

Queria voltar ao início, à Lua e aos avatares de alguns personagens e até a Estados inteiros sujeitos ao rigor científico, mas também à obediência muitas vezes ineludível – quando se fez auditiva, audível – dos próprios desejos, a esses vetores, que nos conduzem como flechas em direção a lugares inesperados, com o estranho convencimento de que os temos buscado de alguma maneira.

Quando Neil Armstrong estava para sair dali, justamente antes de levantar a última bota da superfície lunar, escuta-se um comentário rápido, fora de toda lógica esperada. Ele diz: "Good luck, Mr. Gorsky". Novamente, com o passar do tempo, já não negando a frase, não rechaçando a interpretação dos jornalistas, como o havia feito em relação à frase que começamos, mas simplesmente sorrindo sem responder. Parece que seu silêncio intrigou muitas pessoas e durante muitos anos… Até que um dia, finalmente, confessou, já que o suposto Mr. Gorsky estava morto e era chegada a hora: "Quando criança, brincava com um amigo no backyard [quintal] e a bola foi parar na casa do vizinho. Saltei escondido a cerca para recuperá-la. Nesse momento, escutei a senhora Gorsky dizendo ao seu marido: 'Sexo oral?! Terás sexo oral no dia em que o menino daqui do lado caminhar na lua!'."

Mas, com certeza, ninguém sabe se isso é um rumor, uma lenda urbana, um testemunho ou um mito a mais sobre aquilo que já ninguém sabe com certeza se aconteceu ou foi uma invenção. Parece o limite do in-verificável, embora não seja in-audível. Certamente, muitas coisas não se podem saber. O passe não é compatível com os números nem com as estatísticas: grande passo para um homem (e para a Escola), pequeno passo para a humanidade.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: matiasbuttini@yahoo.com.ar

Recebido: 10/02/2016
Aprovado: 01/04/2016

 

 

Tradução: Solange Mendes da Fonsêca: Licenciada em Letras Neolatinas pela Universidade Federal da Bahia. Professora aposentada da Universidade Federal da Bahia (espanhol) e da Secretaria de Educação do Estado da Bahia (português, espanhol e francês). Revisora e tradutora de textos acadêmicos, artigos, ensaios, coletâneas, livros técnicos e literários. E-mail: solange_sossoh@yahoo.com.br
Revisão da tradução: Ida Freitas
* Formado em Psicologia pela Universidade de Buenos Aires, trabalha atualmente como psicanalista, foi e ainda é professor e pesquisador na UBA nas disciplinas de Psicopatologia e Clínica de Adultos. Nesta última, é Coordenador da área de Práticas Hospitalares. Membro do FARP (Fórum Analítico do Rio da Prata) e da EPFCL (Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano). Coordenador Geral de Psicologia e Abrigos de Saúde Mental na Instituição Terapêutica Témpora. Há muitos anos dedica parte de seu tempo a escrever. Publicou artigos sobre psicanálise, literatura e cinema e um livro de contos – Nadie soporta uma vida encantadora (Letra Viva, 2012).
1 Conferência pronunciada no espaço Escola do FARP (Fórum Analítico do Rio da Prata), na segunda-feira, 27 de abril de 2015.
2 O áudio completo está em: <https://www.youtube.com/watch?v=z-N3-2YTawI>.
3 Palavras que pronunciou Armstrong em 21 de julho de 1969, o que havia sido anunciado por J. F. Kennedy, oito anos antes, em maio de 1961: "Esta nação deveria comprometer-se em levar um homem à Lua e trazê-lo de volta à Terra antes que termine esta década".
4 LOMBARDI, Gabriel. Hacia un dispositivo del pase efectivamente practicable. Wunsch, n. 8, mar. 2010.
5 Interessante expressão, que tomo de Freud em "O Homem dos Ratos" como antecedente fundamental do desejo do analista freudiano: "o analista deve sufocar sua curiosidade", a que agregaria um – Se é que a tem! Ponto este, o da curiosidade de Freud, que o leva a se apagar em sua posição analítica na transferência de Dora alguns anos antes. Ver suas expressões em volta do primeiro sonho, por exemplo, quando Freud confessa que se trata de "um sonho que se repetia periodicamente, era, já por este único caráter, muito apropriado para despertar minha curiosidade".

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