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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.32 Rio de Janeiro jun. 2016

 

ENTREVISTA

 

Entrevista com Vladimir Safatle

 

Vladimir Safatle interviewed by Ronaldo Torres

 

 

Ronaldo Torres*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil
Fórum São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

Vladimir Pinheiro Safatle é professor livre-docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Autor de diversos livros, dentre eles: A paixão do negativo: Lacan e a dialética. (Unesp); Cinismo e falência da crítica. (Boitempo). Grande hotel abismo: por uma reconstrução da teoria do reconhecimento. (WMF Martins Fontes) e Circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. (Cosac Naify). Também escreve regularmente em algumas mídias impressas do país. Suas pesquisas têm sido marcadas pela presença constante das contribuições que a psicanálise aportou ao campo da razão e dos afetos. Além disso, faz com que a psicanálise participe, como nos diz, de seu "modo de tentar organizar problemas e de construir questões". Seus trabalhos têm trazido reflexões importantes sobre temas que tocam não apenas a teoria psicanalítica, mas também sua prática, inserindo-a no exame sobre as práticas discursivas que compõem o campo da cultura. Vladimir nos recebeu em sua sala na Universidade de São Paulo para a seguinte entrevista:

STYLUS: Primeiramente, gostaríamos de lhe agradecer a oportunidade desta entrevista.

VLADIMIR SAFATLE: É um prazer.

S.: O senhor desenvolve, há muitos anos, pesquisas que esclarecem relações entre questões centrais para a filosofia, principalmente a moderna e contemporânea, com alguns fundamentos importantes da psicanálise. Gostaria de iniciar esta entrevista pedindo que contasse como aconteceu, para o senhor, em seu percurso, o encontro, talvez com alguns desencontros, entre a filosofia e a psicanálise.

V.S.: Na verdade, ainda na época da graduação, eu pensava em desenvolver trabalhos entre a filosofia e a psicanálise. Não tinha muita clareza se eu iria para a filosofia ou para a psicologia, porque, para mim, havia muito tempo, era muito evidente que haviam questões que só poderiam ser tratadas do ponto de vista filosófico se levássemos em conta o impacto que a psicanálise teve no interior da história do pensamento do século XX. Seria impossível falar de questões ligadas a sujeito, desejo, reconhecimento, imaginação, sem levar em conta o que a psicanálise nos aportou a respeito da noção de inconsciente e todas as consequências que isso traria para uma visão mais ampla do pensamento. Para mim, então, estava claro que a psicanálise era um fato filosófico fundamental, porque ela impunha à filosofia uma reorientação de rota que era inextirpável; não havia como voltar atrás, e sempre me incomodou muito uma certa reincidência de uma noção de consciência vinculada às ideias de autonomia, de unidade, de identidade, as quais me pareciam completamente na contramão de tudo aquilo que a psicanálise tinha trazido. Por isso, acabei organizando boa parte de meus trabalhos tentando explorar, de forma mais sistemática, como esse acontecimento, que foi a psicanálise, implicou vários conceitos do pensamento filosófico que exigiam uma guinada muito radical dentro do discurso filosófico enquanto tal.

S.: E esses trabalhos iniciaram na graduação e em seguida…

V.S.: Sim. Meu mestrado já foi sobre psicanálise, uma dissertação sobre o conceito de sujeito em Lacan, e meu doutorado foi uma tese também sobre Lacan, sobre Lacan e dialética e…

S.: Foi em Paris…

V.S.: Sim, exatamente. Foi [na Universidade de] Paris VIII, mais especificamente.

S.: Seu orientador foi Alain Badiou?

V.S.: Sim, foi Badiou. Ela acabou sendo publicada em um livro intitulado a Paixão do negativo (São Paulo: Ed. Unesp/Fapesp, 2006).

S.: Muito bom, por sinal.

V.S.: Fico feliz em saber que você gostou. E mesmo depois houve alguns desdobramentos, com outros trabalhos que não eram diretamente ligados a ela, o que poderíamos aqui chamar de epistemologia da psicanálise. Sempre foi muito clara a presença da psicanálise em meu modo de tentar organizar problemas, de construir questões. Até em meu último livro, O Circuito dos afetos (São Paulo: Cosac Naify, 2015), há toda uma reflexão sobre o conceito psicanalítico de desamparo, que para mim é muito claro que a presença da psicanálise se faz sentir. Quando se faz filosofia, há sempre um campo empírico que nos empurra a pensar. Acho muito estranha a ideia de que a filosofia seria uma espécie de discurso autorreferencial, que fala apenas de seus textos, de suas tradições, de seus próprios problemas. Minha visão é completamente diferente desta. A filosofia é um campo no qual os problemas são produzidos por experiências que vêm do exterior – ou elas vêm da política, ou elas vêm da estética, ou elas vêm da ciência, ou elas vêm da psicanálise, e, no meu caso, acredito que isso funciona de maneira muito evidente. As questões que trabalho no campo da filosofia foram produzidas pelo impacto de alguns discursos externos, e o principal deles, com certeza, é a psicanálise.

S.: Neste sentido, então, Lacan também foi tocado, para tratar das questões clínicas que se apresentavam a ele desde sempre, por outros discursos, como o próprio discurso da psicanálise. Outro desses campos, como se sabe, foi o da antropologia. Talvez devêssemos dizer antropologias: primeiro com Kojève (fortemente influenciado por Hegel) e depois Lévi-Strauss (com um certo kantismo do estruturalismo). Como o senhor vê e o que pode dizer sobre o arranjo desses sistemas distintos de pensamento funcionando na obra de Lacan?

V.S.: Acho que Lacan é um caso muito interessante, muito evidente, da forma como os melhores setores das ciências humanas produziram questões filosóficas. Diria que existe um certo tipo de discurso híbrido, um discurso entre as ciências humanas e a filosofia, ou esse campo que entendemos como sendo as ciências humanas. Podemos admitir que a psicanálise, à sua maneira, partilha um pouco desse campo, da mesma maneira como certos setores da sociologia o fazem. Não no sentido de partilhar o mesmo conceito de sujeito, mas de que é um tipo de discurso que tenta falar, descrever e intervir em seu objeto. Ao mesmo tempo, tem-se uma teoria psicanalítica sobre o aparelho psíquico, sobre a estrutura do desejo, a dialética do desejo; ou seja, algo que se constitui mesmo como uma teoria para além do campo clínico. A teoria da linguagem, por exemplo, não é de uso estritamente clínico, mas uma teoria tout court, no sentido forte do termo, mas além disso, é também um modelo de intervenção – há uma prática, que é a prática clínica, com suas orientações, com a sua compreensão do que é patologia. Acho que existe um setor de discursos muito interessantes, que são esses discursos híbridos, que vêm do campo das empiricidades, mas que têm uma forte carga especulativa. Freud é um caso muito evidente disso, Lacan, Lévi-Strauss, Weber também, todos eles têm um pouco essa caracterização. Acho que o caso lacaniano é extremamente expressivo da forma como uma reflexão clínica mobiliza setores e um conjunto de valores que estão para além da clínica. Não é possível compreender uma orientação clínica sem levar em conta o sistema de influências produzidas por valores de circulação no campo da cultura, na constituição do que entendemos por normalidade ou patologia, a maneira como organizamos as patologias em categorias ou orientamos o que fazer com o sofrimento. Acredito que Lacan tinha muita consciência disso. Para mim, essa é uma das razões fundamentais pelas quais ele cria um sistema de retroalimentação, no qual entram a antropologia, filosofia, linguística, teoria literária, teoria social. Isso não significa nenhum tipo de ecletismo, no mau sentido do termo, mas, simplesmente, revela uma consciência muito clara de que os valores que orientam a clínica vêm de campos exteriores à clínica e, por esse motivo, uma reflexão clínica vai ser necessariamente uma reflexão sobre esses sistemas de influência.

S.: Exteriores ou mais amplos do que a clínica?

V.S.: São exteriores mesmo. Podemos pensar, por exemplo, em alguns valores que são fundamentais para a orientação, até mesmo de nossa compreensão do que é normalidade, equilíbrio. Saindo um pouco do campo psicanalítico e indo para o campo médico mais amplo, equilíbrio não é um valor clínico, mas um valor estético ligado à simetria. Controle, seria a capacidade que se tem de hierarquizar as próprias vontades – ter um princípio mínimo de autocontrole. Controle, portanto, não é um valor clínico, mas um valor político. Há, de fato, um sistema por meio do qual a clínica vai mobilizando, à sua maneira, esses valores ou a crítica desses valores. Nesse sentido, diria que ela vai ser sempre obrigada a se deparar um pouco com as suas exterioridades, a todo momento. Acho que Lacan é um dos psicanalistas que compreenderam isso melhor, a ponto de abandonar um pouco o modelo tradicional de exposição de conceitos por meio de casos clínicos, para desenvolver um tipo de exposição de conceito através da mobilização da literatura, da filosofia e de vários outros discursos que nos compuseram. O que é interessante no uso que Lacan faz da literatura, não é simplesmente fornecer um exemplo que pode ser mais "chamativo" do ponto de vista da sua elaboração, mas compreender que a literatura é um discurso de formação, que forma uma categoria de sujeito, um sistema de sensibilidade, um horizonte de ação e de justificação de ações. De certa maneira, quando se tem um sujeito no interior de uma situação clínica, há também um pedaço das literaturas que o compuseram. Essa maneira de pensar é muito interessante, pois não trata a literatura como um caso clínico, mas compreende, de certa forma, como, no interior da experiência literária, há estruturas de pulsões, mobilizações de afeto, que, de uma maneira ou de outra, vão servir como horizonte para a constituição, para a subjetivação, de uma vasta categoria de sujeitos que vão ser encontrados, depois, nos consultórios.

S.: Talvez um elemento emblemático disso que o senhor está dizendo – que é um elemento articulador entre aquilo que é de uma esfera mais ampla ou exterior à psicanálise, e também é um elemento de pesquisa para a psicanálise, mas um elemento fundamental de intervenção, de prática da psicanálise – seja a noção de saber: a forma como Lacan, como Freud na verdade, trouxe, construiu a noção do saber como uma cadeia significante. Isso que move toda a estrutura simbólica; por exemplo, falamos da literatura, mas como isso se mostra como o elemento que fundamenta, mas também a própria prática da psicanálise…

V.S.: Sim. Diria também o seguinte: não se trata, aqui, de fazer a defesa de uma psicanálise aplicada, ou coisa parecida. Também não acredito que os textos, sejam os de Lacan, sejam os de Freud ou de outros psicanalistas, sobre, por exemplo, fatos sociais, fatos sobre obras literárias, sejam, com efeito, de psicanálise aplicada. Acho que é uma má maneira de compreender isso. Há uma ideia, que me parece muito forte, que consiste em dizer que quando se tem um sujeito no interior da clínica, também há a vida social expressa, o sistema literário expresso em seus sofrimentos, seus sintomas. Não se tem um indivíduo no sentido trivial do termo, mas um momento da vida social, que se individualiza na figura de um sujeito. Se não se for capaz de compreender isso, talvez não se conseguirá ser capaz de compreender como os sofrimentos adquirem as suas gramáticas, no caso dessa experiência particular. Então, acho que é um modelo. O que é interessante para quem vem da filosofia, é que a psicanálise coloca em operação um modelo de intervenção clínica de alta mobilização: mobilizam-se vários setores da experiência social para poder dar conta daquilo que parece ser, em última instância, um sofrimento individual, um sofrimento psíquico individual. Mas se rebate o sofrimento psíquico interior do sofrimento social, ele é desdobrado em todos os seus campos, mobilizam-se outros setores para conseguir garantir a eficácia da sua intervenção. Este tipo de reflexão sobre o que é a clínica é muito singular da psicanálise e, para quem vem da filosofia, trata-se de uma experiência extremamente rica.

S.: Gostaria de retornar, agora, a uma noção mais específica que o senhor vem pesquisando. Em determinado momento, Lacan definiu o fim da orientação da experiência analítica como uma passagem do desejo de reconhecimento ao reconhecimento do desejo. Depois, ele encontrou alguns problemas nessa formulação, problemas os quais o senhor, inclusive, trabalha muito bem em seu livro, e ele desprivilegiou a noção de reconhecimento. No Seminário 24, Lacan propõe uma subversão da noção de conhecimento, que ele sempre alinhara ao imaginário a questão da cópula sexual, mas subverte essa noção de conhecimento ao associá-la ao real do sintoma. Sei que o senhor tem trabalhado sobre a teoria do reconhecimento nos últimos tempos; sendo assim, como entende esses movimentos no interior da obra de Lacan?

V.S.: Parece-me impossível compreender a clínica lacaniana sem o conceito de reconhecimento. Sei que uma das ideias tradicionais é que o uso do problema do reconhecimento seria muito localizado em Lacan, e que ele teria desaparecido à sua maneira, principalmente quando ele abandona o conceito de intersubjetividade como horizonte fundamental da prática analítica – isso seria por volta de 1958, 1959 e 1960. Depois disso, o conceito de reconhecimento, a ideia de reconhecimento do desejo, não teria mais lugar, porque o conceito de intersubjetividade estaria totalmente vinculado ao conceito de reconhecimento: seria um reconhecimento intersubjetivo que a prática clínica procuraria realizar e, a partir do momento em que se faz a crítica, o conceito não funciona mais. Acho essa uma leitura equivocada, por duas razões: a primeira é que o conceito de reconhecimento volta, por exemplo, no Seminário 20. Podemos encontrá-lo lá, principalmente quando Lacan fala da maneira como uma relação sexual cessa de não se inscrever; segundo, porque é possível pensar em modalidades de reconhecimento que não são necessariamente os reconhecimentos intersubjetivos. Acredito que era isso que Lacan procurava, um tipo de reconhecimento que não é mais um reconhecimento, de certa forma, entre sujeitos, mas entre sujeito e objeto – é o reconhecimento de que há algo da opacidade dos objetos que me causam e que me constituem. Essa ideia de reconhecimento é fundamental.

S.: Desculpe, o senhor mencionou quando a relação sexual cessa de não se inscrever?

V.S.: É, cessa de não se inscrever. Há um momento muito específico, e muito importante, do Seminário 20 em que ele retoma o conceito de reconhecimento. Chego a trabalhar isso em minha tese, porque acreditava tratar-se de uma reincidência significativa, o que é muito importante, pois há vários conceitos de Lacan que vão e voltam (a palavra plena, de certa forma, também volta), teria uma tendência. Acho que existe um problema em certas leituras de Lacan, uma "leitura de açougueiro". Pensemos no que um açougueiro pensa quando vê um boi: "onde vou cortar?", "como eu corto?", "corto aqui, ali". Isso, às vezes, produz uma situação em que se tem três Lacans, duas clínicas, seis paradigmas do gozo. Vejo isso como um mau modelo de leitura, porque se perde a experiência do pensamento em sua dinâmica interna. Normalmente, essas leituras insistem muito nesses cortes e são muito interessadas, dizendo "Lacan, quando encontra fulano, sicrano, beltrano, muda completamente de referência e deixa tudo para trás" ou ainda "quando ele encontra os althusserianos, os alunos do Althusser, aí começa o verdadeiro Lacan, então aí quando ele tematiza o real". Acho que isso não se sustenta, nem sequer na leitura dos textos. Claro que se está falando de alguém que tem uma produção extensa, pois são mais de 40 anos – de 1931 até 1981 são 50 anos de produção –, com vários debates, reconfigurando uma série de conceitos em vários momentos. Mas toda experiência intelectual realmente rica tem essa característica, e é possível questioná-la, inquiri-la em sua continuidade. Levando isso em conta, diria o seguinte: parece-me que retirar o conceito de reconhecimento do campo clínico nos deixa numa situação tal, que é impossível explicar a diferença entre ter uma experiência e sofrer algo do qual eu não tenho saber algum. Ter uma experiência é um processo que exige certa elaboração, um modelo de elaboração, um modelo de implicação; preciso me implicar na experiência, e essa implicação tem um nível de reflexividade, mesmo que esse modelo passe por uma série de outras coisas que não sejam a pura experiência do pensamento (mas que é a implicação sensível, uma certa implicação no que diz respeito na sua maneira de relacionar ao seu desejo). Existe uma implicação, e isso é um dado fundamental. Essa é uma discussão que me parece que todo psicanalista compreende de maneira muito clara: o sujeito precisa se implicar em seu sintoma. O que significa, porém, implicar-se, senão se reconhecer? O que significa se implicar senão, de certa maneira, operar, desenvolver uma operação reflexiva na qual, de alguma forma, eu me vejo, mesmo em algo que é completamente irredutível à minha própria identidade como um sintoma? Então, se se retirar isso, faz-se uma espécie de defesa da irreflexibilidade, o que não faz o menor sentido na teoria de Lacan. Por isso, acho que a questão interessante para a psicanálise é pensar novas formas de reconhecimento. É claro, porém, que há certo abandono de um determinado paradigma de reconhecimento em Lacan, mas outra forma de reconhecimento se desdobra daí. Por isso, uma boa parte de meu trabalho foi tentar pensar formas de reconhecimento que não seriam formas intersubjetivas de reconhecimento – o reconhecimento de si na figura de um objeto, o reconhecimento antipredicativo, este é um trabalho ainda em curso.

S.: Isso se relaciona com o que o senhor falava sobre o fato de que Lacan não exatamente abandona os conceitos, ele vai retomando, revisitando, reenlaçando…

V.S.: Sim. Tenho a impressão de que são raros os conceitos que Lacan, de fato abandona. O que ele faz é…

S.: O que é impressionante.

V.S.: É, é impressionante, com certeza.

S.: Porque as mudanças são grandes.

V.S.: Sim, são grandes. Acho que a grande mudança mesmo é no conceito de desejo puro, pois há aí uma mudança muito importante, que reorienta completamente a experiência de final análise.

S.: E, ainda assim, o desejo é uma noção fundamental.

V.S.: E, ainda assim, o desejo continua até o fim. Mesmo que se desdobre desejo e pulsão, isso não implica um abandono no sentido estrito, mas em reordenações. Acho importante, para compreender a natureza dessas reordenações, reconstituir a continuidade da experiência do pensamento, senão ficamos numa situação meio bisonha. Houve um momento entre os lacanianos em que você não lia o Seminário 1 e 2 como se eles fossem algo que tivesse sido ultrapassado. Ficava-se quebrando a cabeça com os Seminários 24, 23, e eles são totalmente incompreensíveis se não se reconstitui o movimento que leva até eles.

S.: Determinação e indeterminação, alienação e separação, universalização e singularização são formas de se dizer sobre a divisão do sujeito. Uma análise pode tratar do sintoma, que se enlaça a esses pontos da divisão. Todavia, essas dimensões parecem tocar também questões de ordem coletiva, como o senhor já falava – a questão da segregação, discriminação, produção da miséria. O senhor tem buscado trazer o debate de ideias para uma prática política; como considera essas questões no tecido social?

V.S.: Insistiria, primeiro, no seguinte: se há algo interessante na psicanálise, é que seu conceito de sujeito não se confunde com o conceito de indivíduo. Acho muito importante lembrarmos disso. Mesmo que se tenha um modelo de clínica, que é marcadamente individualizado, atende-se um indivíduo, não um coletivo – é muito raro isso acontecer. A prática de análise institucional nunca foi de fato completamente absorvida pela psicanálise, embora algumas pessoas saiam um pouco da psicanálise e vão tentá-la – por exemplo, de La Borde, Jean Oury e Guattari, que têm uma marca muito forte da psicanálise, mas, em última instância, conservou-se muito o quadro que é do analista e do analisando. A questão é que, mesmo que se tenha uma presença individual, o que está em jogo na experiência clínica é um sujeito que não se confunde com a figura do indivíduo, que não se configura completamente sob a figura de um eu. Isso significa que se tem, no interior da experiência clínica, uma elaboração da experiência social porque, de certa maneira, relaciona-se o sujeito como um momento de um sistema de relações, uma rede de relações que se desenvolvem no interior da vida social, e isso traz uma série de consequências. Uma delas, por exemplo, consiste em dizer que uma experiência clínica modifica necessariamente a natureza dos vínculos sociais. Imaginar que dentro de uma experiência clínica leva-se o sujeito a fazer a crítica das construções imaginárias do seu desejo e depois, fora dela, ele terá a mesma relação fetichista de objeto no interior dos processos de consumo (como teria anteriormente) é um fracasso clínico. Porque se está modificando relações, vínculos que, por serem vínculos do sujeito ao outro, por se tratar do outro que não é simplesmente uma mera projeção fantasmática (mas de um outro institucionalizado, que tem vida social, que está encarnado na linguagem e nas suas instituições), ele constitui a sociedade enquanto estrutura institucional, as figuras de autoridade estão lá presentes, não somente as figuras paternas, mas as figuras, inclusive, das relações ao Estado. Não é à toa que Freud tem que fazer todas essas passagens e esses vínculos entre outras coisas; a ideia fundamental é de que essas relações se modificam qualitativamente dentro de uma experiência clínica. E parece-me que Lacan é alguém que tem uma consciência absoluta desse processo. Há dois exemplos muito claros disso: ele é o psicanalista que mais claramente vincula o final de análise ao problema de constituição do modelo de relação possível entre os analistas, o que traz uma série de problemas bombásticos, explosivos que foram devastadores, por um certo período. O problema é bom, mesmo que as respostas até agora não tenham sido realmente boas. O problema faz todo o sentido. Depois de um final de análise, ainda mais se levando em conta que não há diferença entre uma análise didática e uma análise para todo e qualquer sujeito, vai se colocar o problema final: qual tipo de vínculo que se produz depois da análise…

S.: Qual laço social…

V.S.: Exatamente. Qual laço social que se vai produzir, que se transforma no problema da escola, do laço social entre os analistas. A questão é absolutamente central, decisiva, de extrema importância e relevância. Acho que Lacan entendeu muito claramente isso. O segundo elemento, perceba, há um tipo de clínica em que várias figuras que orientam a experiência de final de análise são de problematização dos laços sociais: Antígona, Joyce… Não é por acaso que elas estão ali. Nesse sentido, é absolutamente central que se compreenda que não se está simplesmente modificando a relação do sujeito com o seu sintoma, até porque essa relação do sujeito com o seu sintoma não é individualizada pura e simplesmente. Está-se colocando em questão o modelo de relação do sujeito com os laços que o vinculam a um outro, a qual, ao mesmo tempo, é fantasmática, familiar e é social. Todas essas esferas, então, mudam, são tocadas.

S.: E isso toca fundamentalmente a questão da transmissão?

V.S.: Isso toca também a questão da transmissão, exatamente.

S.: A pergunta, finalmente, é: o que uma relação como essa transmite?

V.S.: Sim.

S.: Uma pergunta voltada para o campo da filosofia: o que o senhor poderia dizer sobre a questão da transmissão na filosofia? Essa é uma questão para a filosofia?

V.S.: Começando pelo Lacan, acredito que ele tinha a crença de uma transmissão integral – daí todo o uso do matema, da teoria dos nós, toda essa guinada logicista. Minha maneira de compreender isso é de falar, se se quiser estabelecer uma relação de transmissão, tem algo da ordem da intuição que é necessário modificar radicalmente. Talvez uma maneira de modificar a intuição seja mostrando como ela está dependente de uma certa estética transcendental, de uma certa ideia de tempo e espaço que já é a definição completa do que é o campo da experiência. É preciso, então, modificar no sujeito a sua maneira de perceber tempo e espaço – daí o uso dos toros e todas essas figuras tridimensionais, dizer "olha, está vendo como é possível intuir no espaço, intuir espacialmente de outra forma, misturar tempo e espaço, pensar em uma experiência espacial que demanda uma dinâmica temporal de passagem de um lado ao outro". Há uma questão muito interessante quando Lacan desenvolve o problema da transmissão. Transmissão não é simplesmente uma questão de como se faz para passar de maneira mais clara certas informações, como se faz para explicar de maneira mais clara como o significante é aquilo que representa o sujeito para o outro significante; para mim, transmissão é quebrar um regime de sensibilidade, que já orienta radicalmente a nossa experiência e que vai sempre orientar essa experiência de uma determinada forma. A quebra desse regime de sensibilidade é condição necessária para que um outro campo de experiência se constitua, e esse outro campo de experiência é fundamental para que certa ideia do que significa o impacto da experiência analítica possa se desdobrar. Diria que esse tipo questão, que toda prática que se confronta com a necessidade de uma formação, que é, antes de mais nada, uma desconstituição – uma formação que só pode ser formação quando desconstitui certas representações naturais…

S.: Uma deformação?

V.S.: Não diria uma deformação, pois, ao dizer deformação parece que há uma forma estabelecida e que se vai, assim, modificá-la. Não. Ela vai ser destituída, vai se insistir no fato de que as pessoas não são tábulas rasas, elas trazem sistemas de representações naturais, as quais já definem todo o campo da experiência, já definiram o que a experiência pode ser. A primeira função da formação, então, é desconstituir as bases desse campo, e isso exige muito mais do que uma outra forma de pensar, uma outra forma de intuir, uma outra razão sensível. Aí entra uma outra discussão muito interessante, muito importante do que significa, de fato, transmissão.

S.: Voltando à questão do saber e fazendo uma incursão mais propriamente no campo da política e de nossas questões atuais, há uma interpretação de que o discurso que move o Brasil atualmente a determinados retrocessos se sustenta sobre operação do desmentido (Verleugnung), o famoso eu sei, mas mesmo assim… Sabe-se, por exemplo, que uma mudança no governo atual não afetará em nada o problema da corrupção, mas, mesmo assim… Ou o senhor acredita que estamos mais próximos de algo como o esquecimento ativo do saber de nossa história? Qual seria a ordem da operação sobre o saber e a participação do saber, se é que é possível dizer algo nesse sentido?

V.S.: A ideia da Verleugnung é boa, porque parte do seguinte pressuposto: posso ter uma consciência clara a respeito de uma situação, mesmo agindo de forma tal como se eu nada soubesse. Na verdade, o saber aparece como um sistema de compensação à paralisia da ação; quer dizer, a ação está paralisada, em um certo campo de atuação, e já é, à sua maneira, ilegítima do ponto de vista do saber. Mas o saber é impotente para modificar a ação, porque a estrutura da ação responde a outros interesses, a um certo tipo de afetividade, de resposta afetiva que é de natureza completamente diferente. Talvez isso funcione um pouco para se pensar algumas questões da realidade nacional. Não se trata de explicar melhor para as pessoas aquilo que elas, porventura, não saberiam; acho que há alguma coisa de pueril, uma espécie de iluminismo pueril nesse tipo de leitura, completamente impotente como se fosse uma questão de "mas espera aí, deixa eu te explicar, veja bem, você não entendeu direito". Isso é uma empáfia intelectual, se acreditar que outro tem uma posição diversa à sua porque ele não pensa bem, ele pensa mal. Não, o outro tem uma posição diferente da sua, porque ele se afeta de outra forma, ele tem um outro circuito de afetos. O embate é muito mais relacionado aos circuitos de afetos do que realmente à estrutura de argumentação e de julgamentos. Aí está toda uma questão do que significa e em que condições é possível desconstituir certos circuitos de afetos, como se faz isso. Diria que isso passa ao largo, completamente ao largo da ideia de que é possível criar um espaço ideal de comunicação que se organizaria a partir de uma consensualidade suposta, que poderia se desenvolver a partir da procura do melhor argumento ou algo dessa natureza. Não se conversa em política, e acho que a primeira coisa importante a entender seria isso: abandonar de uma vez por todas a ideia de que é necessário algum tipo de conversação. Não se conversa em política, na verdade, se identifica mais os afetos que mobilizam você e o outro e se procura desconstituir a base fantasmática que produz tais afetos. Tenta-se atravessar fantasias, é o que se faz, como todo analista sabe muito bem. Isso não tem nada a ver com você explicar melhor para seu analisando o que está acontecendo e porque ele está agindo dessa forma; não é uma questão de uma intervenção na constituição de espécie de espaço de comunicação. Todo mundo sabe muito bem que uma análise não é uma comunicação; um analista não está se comunicando com seu analisando. Mesmo que se use a palavra, ali se está produzindo um outro processo, está se desconstituindo o objeto causa do desejo, destituindo o seu lugar, atravessando uma fantasia, e isso passa por um outro regime de uso da palavra, muito mais vinculada à noção de ato do que qualquer outra coisa que possa lembrar alguma consensualidade suposta. Acho que isso vale para a política. Esse é o ponto em que a experiência clínica e a experiência política estão mais próximas, e o problema é que esse é o ponto que a experiência política menos entende o que ela realmente é. Se ela se orientasse mais para o que é a experiência clínica, talvez pudesse entender melhor o que ela realmente pode produzir.

S.: Então o que poderia ser uma espécie de correlato do ato analítico, no sentido de dar uma direção a uma relação, a uma experiência? Nesse sentido, qual seria o correlato de um ato analítico no campo de uma situação política tão sensível como a nossa atualmente?

V.S.: Como todo verdadeiro ato, ele tem uma dimensão de explicitação de um impossível. Ele é a exigência de que aquilo que é impossível para uma situação atual possa se tornar possível, ele tem sempre uma dimensão extremada, no sentido forte do termo, porque obriga, a quem o ato é dirigido, que ele saia de uma situação, da qual ele não queria sair, da qual ele fez de tudo até agora para não sair. Cria-se uma situação extrema nesse caso…

S.: O passe para o impasse.

V.S.: Exatamente. Essa ideia de Lacan é muito bonita: a passagem da impotência ao impossível…

S.: Radiofonia…

V.S.: Exato, o que acho que é uma colocação muito feliz para o que significa a experiência do ato. Lacan tem uma sensibilidade clínica para compreender que o eixo fundamental – mesmo que a análise se desenvolva a partir de processo de interpretação, no sentido tradicional do termo, hermenêutico do termo –, que o eixo da experiência, se dá fora da interpretação. Ele se dá através de um tipo de ato que não é exatamente a ideia tradicional de interpretação: é, na verdade, a ideia de corte, no sentido mais forte do termo, não somente o corte da cadeia significante, o corte da palavra do analisando, quando se corta ele no final de uma sessão. É um corte no sentido de impedir que ele continue em uma certa situação, ou seja, de obrigá-lo a ir para uma situação que, para ele, é impossível ir, porque é impensável. Essa confrontação com aquilo que ele não sabe como predicar é um momento decisivo, vocês sabem disso melhor do que eu, em situações fundamentais na experiência analítica. Diria mais: isso deveria ser uma das coisas fundamentais para que se possa entender o que significa uma experiência política, e muitas vezes é exatamente isso que falta… O Brasil tem medo do ato, sempre teve. Tem um medo patológico desses atos que seriam capazes e poderiam nos tirar de uma determinada situação, nos confrontar com o impossível e obrigar a sociedade a mobilizar toda a sua criatividade para transformar uma impotência no impossível, ou seja, dar a esse possível uma caracterização de um caminho de uma outra situação. A ausência de rupturas se demonstra muito claramente nesses momentos em que se tem uma situação na qual se percebe que não há diálogo possível. Há uma sociedade que é organizada de uma forma radicalmente antagônica, uma experiência política que vai em direção aos extremos, a ponto de se ter uma franja da classe média que, de fato, ingressou em um discurso completamente fascista: 20% dos eleitores que ganham acima de cinco salários mínimos votariam hoje no [Jair] Bolsonaro. Acho que isso é significativo, por tratar-se de uma em cada cinco pessoas que conhecemos, porque são as pessoas do nosso universo. Isso demonstra que nesse momento o que se precisa é de um ato, que mostre de maneira muito clara a natureza desse antagonismo. Não que tente eliminá-lo, mas que insista nele e fale, de fato: "um se dividiu em dois", e daqui para frente é necessário encarar essa divisão de maneira cada vez mais forte. Como falta algo dessa natureza, a política brasileira vira um gestão da desagregação contínua, a vida política e social entra em um processo, em uma dinâmica regressiva de desagregação, e o que se produz nesses momentos é simplesmente a tentativa de pensar como é possível ainda consertar alguma coisa, o que a gente faz para impedir que tudo pare. Mas, como todo bom analista sabe, há momentos em que se tem que falar: tudo precisa parar. Há certos momentos em que se fala: não, agora é hora de parar. Talvez tenhamos chegado a esse ponto – agora é a hora de o país parar.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: ronaldotorrescl@gmail.com

 

 

* Psicanalista, Membro da EPFCL-Brasil - Fórum São Paulo. Doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Autor do livro Dimensões do ato em psicanálise (São Paulo: AnnaBlume, 2010).

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