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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.33 Rio de Janeiro Nov. 2016

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO

 

Atualidade da clínica

 

The actuality of the clinic

 

 

Sandra Berta*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Brasil, Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo
Universidade de São Paulo
Colegiado dos Representantes da Internacional dos Fóruns (CRIF, 2014-2016)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto trabalha a questão da direção do tratamento e o final da análise. Considerando as formulações de Jacques Lacan nos seus últimos seminários, em particular sua proposição do analista-sinthoma, visa diferenciar o alcance da sua proposta e as consequências na clínica e na Escola. A clínica psicanalítica se funda na palavra, sua materialidade (moterialité), visando ultrapassar o sentido dado pela ficção neurótica e levanta, para o que opera do psicanalista, questões sobre a nominação e a função do sinthoma.

Palavras-chave: Psicanálise, Analista-sinthoma, Dizer, Nominação.


ABSTRACT

This text deals with the issue of the direction of the treatment and the conclusion of the analysis. Considering Jacques Lacan's formulations in his last seminars, in particular, his proposition of the analyst-sinthome, the paper aims to differentiate the scope of his proposal and the consequences in clinical treatments and the school. the psychoanalytic clinic is founded on the word, its materiality (moterialité), in order to overcome the meaning of neurotic fiction and raise, for what operates from the analyst, questions about the nomination and the function of the sinthome.

Keywords: Psychoanalysis, Analyst-sinthome, Saying, Naming.


 

 

Como conduzir as análises? Esta é uma pergunta que se renova para cada praticante da psicanálise. Atualmente, no campo lacaniano, temos falado insistentemente sobre o final de análise. Ocupados com a questão do fim e do passe, temos priorizado esse tempo do final. Isto tem várias razões, porém a mais importante, em minha opinião, refere-se ao fato de pensarmos o final de análise que Lacan nos aportou ao longo de seu ensino incluindo o enodamento do real, o simbólico e o imaginário, sem priorizar um registro sobre qualquer outro. Quando nos referimos a uma clínica em direção ao real não devemos confundir que o registro do real estaria em posição de prioridade, mas que o real é a estrutura a ser entendida com RSIΣ (real, simbólico, imaginário e o sinthoma).

A pergunta sobre condução das análises não perde a atualidade. Ela é permanentemente atual, se me permitem a expressão paradoxal, e faz eco com a (de) formação permanente do analista.

Privilegio aqui a afirmação de Lacan no Seminário Le sinthome, quando indica que o analista é parceiro sinthoma. Cito Lacan: "Penso que o psicanalista somente pode conceber-se como um sinthoma. A psicanálise não é um sinthome, o psicanalista sim" (LACAN, 1975-76/2006, p. 133). Precisamente o sinthoma é o que permite manter enodados Real, Simbólico e Imaginário, possibilitando as finezas dos campos de gozo e a sustentação de um desejo que não seja anônimo para o analisante no decorrer da sua análise. Lembro que no Seminário RSI, a esse quarto que enoda RSI Lacan lhe dera a função de nominação. O pai do nome tendo essa função de enodamento e nominação do simbólico, do imaginário e do real.

Em 1975-76 é a função sinthoma que é convocada por Lacan para indicar o que opera do analista em cada cura. Ele o sublinha: a psicanálise não é o sintoma, o psicanalista é parceiro sinthoma. Aqui, a questão refere certamente à ética na direção da cura. Refere, então, à disposição do analista, ao fato de como o desejo do analista e sua presença se colocam na cena clínica. É preciso tempo para se fazer ao sinthoma e à letra do sintoma, que temos que diferenciar. Evoco com isto o que Lacan dizia: é preciso tempo para se fazer ao ser. É preciso tempo para se fazer à nominação, poderíamos acrescentar. Esta formulação é o dever ético do analista. Ele próprio, tendo feito sua experiência, deve saber fazer aí com a textura e a tessitura que o enodamento borromeano promove. É a razão pela qual Lacan disse que o psicanalista, pela interpretação, faz os cortes, as suturas e os empalmes do nó. Isto não é possível sem a sustentação até onde seja necessário (como categoria modal) da transferência, o que significa dizer: do sujeito suposto saber por meio da palavra. Digamos aqui que a palavra deve ser entendida entre o dito e o dizer que é existencial aos ditos.

Portanto, a pergunta com a qual iniciei este texto traz à baila outra: como operam as palavras? Se disso sabemos, poderemos avançar um pouco mais até dizer que se a psicanálise é uma prática linguageira, o psicanalista deve se fazer a essa prática que não lhe é estrangeira. Ele só pode fazê-lo com e pelas palavras, porque o falasser tem como substância a moterialité1... das pulsões. Nesse sentido ele não é poeta, embora possa com eles eventualmente se orientar. Mas ele deve, pela função sinthoma, fazer operar as palavras além do sentido e de seu gozo particular (gozo-sentido, escrito entre o simbólico e o imaginário) para produzir a escrita da letra fora sentido.

No que diz respeito a como operar com as palavras, no Seminário 24, L'insu..., Lacan se refere ao forcing. Esse termo, ele o toma da matemática, acompanhando as pesquisas de seu amigo e interlocutor René Thom, sobre sua teoria morfogenética que ele nomeara como Teoria das Catástrofes. O forcing da materialidade significante – que enodada ao ato da fala se enuncia moterialité – é uma indicação de Lacan para referir-se ao significante novo e ao corte no pan-simbolismo que a construção da fantasia promove. Isso se produz pelo que opera do psicanalista e que indefectivelmente causa, no dizer analisante, a dimensão do enigma. A interpretação pelo equívoco se apoia nesta articulação proposta por Lacan nos seus últimos seminários.

Perde-se o inconsciente freudiano? De modo algum, porque o simbólico está aí operando sua relação ao real e ao imaginário. Porém, do sintoma freudiano onde se coloca em jogo a substituição e que refere ao envelope formal do sintoma para o sintoma como letra de gozo e o sinthoma proposto por Lacan a partir do enodamento RSI, não podemos já contornar ou mesmo burlar o caráter de mudança que a clínica propõe. O simbólico terá sua relação ao sinthoma a partir do enodamento das consistências. Entre eles não há relação se não se considera dito enodamento borromeano. O acento na direção do tratamento se transmuta de "fazer consciente o inconsciente" – trabalho caro ao analisante quando, pela retificação subjetiva, aposta ao sujeito suposto saber – para um trabalho que não se exime da "poiética violência" – como escrevera Roberto Harari (2001, p. 55) – que força o significante a se fazer novo a cada vez.

O inconsciente surpreende, mesmo se o sintoma aliado ao fantasma quer lhe fazer dizer sempre o mesmo. Estar à disposição dessa surpresa não é algo novo. Isso já estava presente com Freud. A questão colocada não é fazer do forcing pura técnica, mas saber que o inconsciente não é apenas elucubração e que pode escrever algo novo. A moterialité do inconsciente é neológica, lembra Colette Soler (2015, p. 151) no seu livro Lacan, lecteur de Joyce. Dito de outro modo, e como propus em 2015 em Buenos Aires, numa análise temos que passar da novela familiar para o novelo fonemático. E isso não vai sem a operância do psicanalista. Nessa ocasião me perguntaram sobre o efeito sinthomal, seja no final de análise, seja na direção de cada caso clínico. Disse lá que para mim uma das consequências do final de análise e do passe fora de pôr em questão a clínica.

Sabemos o quanto Lacan insistira sobre isso. Todavia, não se trata de uma insistência, mas de um desafio que teve um marco prioritário: sua excomunhão da IPA e sua pergunta, a considerar como forcing: como viver a pulsão após a travessia da fantasia? Isso não quer dizer como cada um vai viver sua vida – embora poderíamos contemplar essa opção –, mas como cada psicanalista fará com esse estado de urgência que se lhe impõe ao saber que entre RSI não há relação e que isso se lhe impõe a cada vez, assim como se impõe a fala, ou seja: a fala imposta com a qual há de se fazer o falasser.

Como diz Colette Soler no seu seminário Que es lo que hace lazo?, a clínica borromeana considera o dizer como sinthoma, uma vez que o dizer se impõe clinicamente, isto sendo indiscutível, uma vez que o nó borromeano é convocado para dar conta dos efeitos de uma experiência linguageira e uma vez que para que haja palavra é necessário que haja do dizer. "O inconsciente, saber falado, ele mesmo vem de lalangue, mas supõe ainda o dizer" (SOLER, 2011-12/2015, p. 157). Neste mesmo sentido, acompanhando Jean-Claude Milner, podemos afirmar que "Esclarecer a relação de lalangue com a língua tangencia, então, a ética" (MILNER, 2012, p. 23). Ética do psicanalista que incide no dizer analisante indicando que se a linguagem é a designação de uma elucubração de saber, a língua, cada língua, carrega no seu bojo a dimensão do impossível de dizer. Isso fala, o inconsciente é um saber sem sujeito onde o insabido faz sua dança, ou, se quiserem, sua ópera prima. Mas é não todizante e por isso nessa poiética violência caberá ao analista operar para que o analisante produza sua língua, intraduzível porque singular, porque inédita. Nesse percurso o inconsciente também cessa de se escrever como elucubração e possibilita a escrita dessa letra que não se diz.

Lacan refere a isto em vários dos seus seminários, mas indico aqui o que afirmara em L'insu, em particular na aula de 18/04/1977:

Eu sou, evidentemente um psicanalista já muito vivido, mas é verdade que o psicanalista, no ponto em que cheguei, depende da leitura que ele faz de seu analisante, daquilo que o analisante lhe diz em termos próprios [...] aquilo que seu analisante crê lhe dizer, isso quer dizer que tudo o que o analista escuta não pode ser tomado – como a gente se exprime – ao pé da letra. Eu disse a tendência que essa letra – da qual esse pé indica a pega ao solo, o que é uma metáfora, uma metáfora pobre (piètre), o que combina bem com é (pied) – a tendência que essa letra tem para alcançar o real. É..., é seu afazer. O real, na minha notação, sendo aquilo que é impossível de se alcançar, aquilo que o analisante, ao analista em questão, crê dizer, não tem nada a ver – e disso Freud se apercebeu – não tem nada a ver com a verdade. Entretanto, é preciso dizer que crer já é alguma coisa que... que existe (LACAN, 1977/inédito, Aula de 18/04/1977).

Crer dizer a verdade, falar vizinho do verdadeiro, cria uma vizinhança com o Real. Pergunto-me se aqui não poderíamos pensar a noção de vizinhança, no sentido matemático. Pablo Amster no seu livro "A matemática no ensino de Lacan" nos explica que a ideia de vizinhança considera a função de homeomorfismo (biyectiva, contínua e as invariantes topológicas) a qual preserva a estrutura do espaço. Com isto, ele define e diferencia o conjunto aberto e o conjunto fechado (AMSTER, 2002, p, 17 e ss). Será então que o verdadeiro que o analisante crê dizer e que ele ignora não nos permitiria pensar como se avança além da verdade? Será que por aí, sendo um conjunto aberto o campo de forças não permite que o forcing ganhe operância?

Precisamente e porque a seguir – Lacan se refere à lalangue – convoca-nos a ouvir o equívoco, ele diz como fez dessa noção índice do real: ferrer, fairereal, convocando a ler no que se escuta o fazer real, o ferrar no sentido de selar, pôr ferros. Quer dizer, fazer da lalangue não toda, isto que faz real. E por essa razão o delírio freudiano teria sido o nódulo traumático. Não há nenhum nódulo, mas apenas um furo. Porque o trauma é o furo (trou), e nesse furo a pulsão turbilhona. Então, l'outra cena (l'autre scène) é obscena (obscène), quer dizer, é a obscenidade que enquadra a cena fantasmática em resposta ao traumático, ao trou. O significante em sua novação é, ao mesmo tempo, de-novo e novo. Ele conta com a invenção e com a variété (entre a verdade e as varidades) do sintoma.

Nessa prática de palavra que é a psicanálise, a lalangue se alonga (e-langue) e se estica; se dobra e faz do inconsciente um saber pelo qual o analisante diz a variété de seu sintoma no que ele crê dizer, vizinho ao verdadeiro. Nisso ele pode sonhar, porque dorme. Contudo, para Lacan o despertar é o real à tiquê. E é nesse despertar que ele localiza o forcing. O despertar é o real que se escreve à força. Se a verdade desperta ou não, isso depende do tom com que ela se diga. A poiética violência se evoca no contraponto tônico, na sua modulação. Aí o forcing permite fazer soar outra coisa, outra coisa que o sentido olímpico. Isto significa dizer que, pelo forcing, o que soa e consoa é a fonação da lalangue, sua jaculação, e pode permitir ir além do gozo-sentido. Como se faz uma contrapsicanálise, uma psicanálise que vai contra a psicanálise do sentido (da hermenêutica)? Estão dadas as coordenadas nesses anos: chiffronnage, dobradura, forçamentos da moterialité da palavra.

Concluo com um aporte que nos traz Colette Soler no seu livro Lacan, lecteur de Joyce. Nessse aporte ela lê Lacan nos anos 1970 no que diz respeito ao sinthoma e ao dizer. "O sinthoma é a dit-mensão do dizer e especificamente do dizer que nomeia" (SOLER, 2015, p. 151). Sublinha com isto a dimensão do dizer e do desejo propondo o neologismo diresir (dire et désir). Esse desejo do analista que está em causa na sua função sinthomal, que do lado do analista convoca o dizer apofântico, esse dizer da função sinthoma evoca e provoca o dizer do analisante. O psicanalista nesta função deve ter a delicadeza de acompanhar, sem apressar, o trabalho analisante. Fazer produzir a letra do sintoma (sem h), isso leva tempo.

Deixo aberta aqui a pergunta pela incidência da nominação na análise. Dito de outro modo: o que nomeia a função sintoma do analista? Tenho uma suspeita sobre essa nominação que transmite o "não há relação sexual". Essa suspeita diz respeito ao final de análise – e em particular para aqueles que praticam a psicanálise – uma vez que considero que não é suficiente que analisante tope com a "não relação" e que se precipite por esse encontro contingencial para sua saída, mas que saiba fazer aí com isso. Algo da nomeação sinthomal (analista – sinthoma) deve transmitir, deve ter o ar que transmita que se pode prescindir do pai com a condição de se servir dele. Talvez seja esse um modos de indicar o que se transmite do ato psicanalítico e do desejo do analista com o qual não há identificação, porque isto é singular e individual. Sustentar esse tempo do final de análise, isso também depende dessa função-sinthoma. E sabemos que este é um tema controverso e atual. Penso que isso pode afetar a clínica, nas suas dificuldades e na delicadeza que ela exige hoje.

 

Referências

BERTA, S. "Efeitos de um dizer na clínica e na Escola" In: Wunsch 15, jan. 2016. <http://www.champlacanien.net/public/docu/4/wunsch15.pdf>         [ Links ].

HARARI, R. "La pulsión es turbulenta como el lenguaje" In: Ensayos del Psicoanálisis caótico. Barcelona: Des Serbal. Ed., 2004.         [ Links ]

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MILNER, J.-C. O amor da língua. São Paulo: Unicamp. Ed. 1987.         [ Links ]

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__________. Qué es lo que hace lazo? Curso ditado no Colégio Clínico de Paris, 2011-12. Medellín, Colômbia: Associação dos Fóruns do Campo Lacaniano, 2015.         [ Links ]

__________. Lacan, lecteur de Joyce. Paris: Presses Universitaires de France, 2015.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: bertas@uol.com.br

Recebido: 15/08/2016
Aprovado: 12/09/2016

 

 

* Psicanalista. AME da EPFCL, Brasil, Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo. Mestre e Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo. Coordenadora da Rede de Psicose pela Universidade de São Paulo. Membro do Colegiado dos Representantes da Internacional dos Fóruns (CRIF, 2014-2016). Autora do livro Escrever o trauma, de Freud a Lacan. (Letra Viva, Buenos Aires, 2014; e Annablume, São Paulo, 2015)
1 Moterialité: jogo homofônico entre "mot", palavra; e "matérialité", materialidade. Na Conferência de Genebra, pela primeira vez Lacan se refere a esse neologismo: "É, se me permitem empregar pela primeira vez esse termo, nesse motérialisme onde reside a tomada do inconsciente – quero dizer que é o que faz com que cada um não tenha encontrado outros modos de sustentar a não ser o que há pouco chamei o sintoma" (BERTA, 2015, p. 211).

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