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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.33 Rio de Janeiro Nov. 2016

 

ENSAIO

 

A propósito dos discursos

 

About the discourses

 

 

Frédéric Pellion*

Analista Membro de Escola - AME
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Institut National de Jeunes Sourds
Université Paris Diderot
Université Paris Descartes
Collège Clinique Psychanalytique de Paris

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Os quatro discursos de Lacan, elaborados entre 1968 e 1970, e aos quais ele ensaia, um pouco mais tarde, incluir um quinto, são um dos aspectos mais arriscados de seu ensino. Trata-se, na verdade, de política? De psicologia coletiva? De psicanálise aplicada à antropologia social? Partiremos aqui de suas "partículas elementares" para tentar fazer aparecer melhor os meandros propriamente clínicos de sua construção.

Palavras-chave: Discurso, Impossível, Gozo, Real, Saber, Verdade.


ABSTRACT

The four discourses developed by Lacan, between 1968 and 1970, and to which some time later he appears to add a fifth, make up one of the most perilous aspects of his teachings. Is it truly a question of politics? Of collective psychology? Of psychoanalysis applied to social anthropology? Here, we depart from his "elementary particles" as an attempt to better reveal the strictly clinical intricacies of their construction.

Keywords: Discourse, Impossible, Jouissance, The real, Knowledge, Truth.


 

 

"Se em parte alguma do Outro é possível assegurar a consistência do que é chamado verdade, onde está ela, a verdade, a não ser naquilo a que corresponde a função do a?" (LACAN, 1968-69/2008, p. 24)

 

A escrita esquemática dos chamados "quatro discursos" – tal como a encontramos, por exemplo, no anexo de "Radiofonia" (LACAN, 1970/2003, p. 447) – pode parecer demasiadamente bela para ser verdadeira.1

Sua arquitetura simétrica dá a ideia de uma descrição completa, de uma ordem imutável, uma totalidade acabada. Quase de uma "visão de mundo", como dizia Freud – para desconfiar disso.

Assim como o quadro doma o olhar – lembramo-nos do desenvolvimento de Lacan sobre esse tema em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (LACAN, 1964/1988) –, esse aspecto de sistema, em que todos os casos parecem previstos desarma um pouco o pensamento; discretamente hipnótico, ele convida à paráfrase, quando não se trata apenas de pura e simples imitação. Mesmo que Lacan tenha sido tão exigente, como de costume ele é consigo próprio, nesta parte de seu ensino, isso faz com que tudo seja bem possível – nem sempre voluntariamente, aliás – se fazer uma leitura desonesta disso, com relação a Lacan e, sobretudo, com relação à coisa analítica.

É preciso, portanto, partir novamente das questões para as quais essas escritas buscam trazer uma resposta. E isto se correndo o risco de aumentar a complexidade, até mesmo a opacidade, do discurso de Lacan. O que, no fim das contas, talvez não seja tão grave. Pois sustento que é dessa complexidade, e em nosso afrontamento a essa opacidade – opacidade que certamente não se encontra no mesmo lugar para cada um – que o ensino de Lacan pode nos ajudar – como ele próprio nos incitava – "a pensar a psicanálise, apesar disso [pourtant]" (LACAN, 1969/2003, p. 373, sublinho o "apesar disso" [pourtant] na medida em que ele remete à divisão do analista – já que seu ato, por sua vez, não procede do pensamento).

Muitas vezes, é de forma enviesada que Lacan enuncia a complexidade da coisa analítica. Tomemos disso um exemplo um pouco exterior – embora... – ao que é nosso propósito aqui: o da "teoria da falta", cujo projeto abre o seminário sobre A relação de objeto. A falta é o mais seguro denominador comum da experiência dos sujeitos neuróticos; ela é, assim, o sujeito, no sentido original do fundamento, do discurso sustentado em análise. A partir da lição de 12 de dezembro de 1956, Lacan vai ali representar os avatares da falta de objeto2 num quadro que ele iria completar, pouco a pouco, até março de 1957 (LACAN, 1956-57/1995, pp. 59, 199, 216). Ora, os arranjos de três em três (falta, objeto, agente) dos três registros (real, simbólico e imaginário) são possivelmente em número de 3! = 6. Os três arranjos mantidos por Lacan em seu quadro, ou seja, privação, frustração e castração, somente abarcam, portanto, a metade das combinações possíveis. A tipologia desses três avatares da falta de objeto procede, portanto, de uma seleção, que tende a fazer esquecer as combinações intermediárias, ao passo que são elas que não apenas sustentam, mas animam – mas, certamente, apenas se nos dermos ao trabalho de reconstruí-las – a construção de conjunto; e isso do lugar de ser, ora elididas, ora sintomáticas, como mostra, por exemplo, o encaminhamento de Lacan acerca de "a dialética da frustração" (Ibid., pp. 59-75).

Uma dessas combinações suplementares, possível, mas esquecida pela apresentação sistemática dos quatro discursos, é aquela que Lacan utilizou, uma única vez, para falar do discurso do capitalismo. Voltarei a isso ao terminar, mas, por ora, guardemos somente que os discursos estabelecidos por Lacan são aparentemente apenas uma pequena parte das possibilidades que o real oferece.

 

De um contexto

Entre 1968 e 1970, Lacan fez, então, três anos de seu seminário girarem em torno desses quatro discursos. Digo "girar", pois me parece que Lacan não faz desses discursos Ideias reais; e que as apresentemos, a posteriori, como uma teoria acabada, não impede que aquilo de que Lacan procura falar, durante esses três anos, seja, antes de tudo, "teoria psicanalítica". Isto é, daquilo que poderia ser, já que fica entendido que o campo de noções como, por exemplo, "Outro", "sujeito" ou mesmo "desejo", ultrapassam amplamente os invólucros do indivíduo concreto, uma metapsicologia geral.

Devemos, então, conservar desses três anos de seminário – e, portanto, dos chamados "quatro discursos" – mais do que aquilo que serve para Lacan dar ênfase ao modo singular de existência do discurso analítico? Vê-se também que a questão é também julgar se há uma psicanálise "aplicada", e, caso sim, decidir quais são seus melhores pontos de aplicação à subjetividade da época.

Os acontecimentos de maio de 1968 – manifestações estudantis e operárias, greve geral, eleições antecipadas e em seguida, depois de alguns meses, alertas econômicos em série – vieram interromper o curso previsto do seminário precedente, sobre O ato [psic]analítico. Nesse seminário, Lacan se propunha a desenvolver as razões de sua "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola" (LACAN, 1967/2003), na qual ele propõe à sua Escola o dispositivo do passe.

Para o que nos interessa aqui, penso ser útil lembrar que a "Proposição..." de Lacan ficou muito longe de ser aceita unanimemente, inclusive dentro da Escola que ele havia fundado, com alguns outros, (apenas) três anos antes. Pois quando Lacan falaria da greve (LACAN, 1968-69/2008, pp. 11-25), por exemplo, aquilo que ele diz é também a interpretação da oposição de um bom número de analistas da sua EFP, como uma greve contra a efetivação de seu dispositivo.

Enfim, nesse capítulo do contexto, preciso também mencionar a École Normale Supérieure, que, a partir de 1964, acolhe o seminário. Na época, ela era dirigida por Louis Althusser, eminente comentador de Karl Marx e ele próprio autor de uma teoria dos discursos. Os estudantes que assistem ao seminário são para alguns, inicialmente, para muitos, depois, jovens filósofos engajados, evidentemente sem nenhuma prática clínica, e para os quais o discurso de Lacan vai ter efeito, intencional ou não, de reorientar o desejo de ação da política – o que, em outros países da Europa, levou alguns desses mesmos estudantes a formas variadas de violência – com relação à psicanálise.

É, pois, bem possível que a dita "teoria dos quatro discursos" tenha, de início, visado assegurar a singularidade do discurso analítico. Isto a fim de deslocar sua função tradicional quanto à formação dos analistas em duas direções: 1. a mudança da discursividade misturada, e por vezes confusa, de maio, e, 2. a conformação das aspirações ao engajamento concreto de uma certa classe intelectual.

 

Da cadeia significante ao par ordenado

Lacan começa a primeira lição do seminário De um Outro ao outro (estamos, então, em 13 de novembro de 1968) mencionando sua eventual filiação à corrente estruturalista, a qual ele não reivindica, mas também não recusa. Em todo caso, ele declara que o ponto comum ao trabalho de alguns, muito diferentes, que se reconhecem, ou não, nessa suposta corrente, poderia ser "o levar a sério do saber [anterior] como causa" (Ibid., p. 14).3 Mas, ele precisa em seguida, o que deve ser levado "a sério" nesse saber anterior é, inicialmente, sua falha (Ibid., p. 15).

Na sequência do seminário, Lacan escreve esse levar a sério por meio do "par ordenado S1 → S2" (Ibid., p. 55).4 A flecha sugere imediatamente o ordenamento diacrônico de S1 e de S2 que produz a chamada associação livre. Mas ela assinala também uma relação de implicação entre S1 e S2, congruente, aliás, com o que essa associação revela ser, na experiência, perfeitamente determinada. Em suma, S1 leva a uma consequência, que é S2.

Nos anos 1950, este par ordenado levava o nome de cadeia significante. Ora, quando ele estava introduzindo a noção, em março de 1956, Lacan já precisava isso: "A cadeia dos significantes tem um valor explicativo fundamental, e a noção de causalidade não é outra coisa" (LACAN, 1955-56/1985, p. 205).5 Portanto, um dos sentidos da escrita S1→S2 é, pois, dizer que, se um significante convoca outro, esta convocação manifesta também a causa que faz derivar o segundo do primeiro. Um certo "logo"6 é, portanto, incluído de início em qualquer cadeia significante. Isto é, um embrião de conceito, já que o conceito, segundo Lacan, é sempre portador de uma postulação sobre a causa: "o conceito [seria] (...) um significante que comanda[ria] esse real de acordo com sua causação íntima"(LACAN, 1962-63/2005, p. 323).

A partir de 1960, Lacan define o sujeito como "um significante é aquilo que representa [o sujeito] para outro significante" (LACAN, 1962/1998, p. 833, grifos nossos). O suporte desse "logo", do conceito e da determinação da associação, é esse mesmo sujeito, o qual, nem que seja porque a causa é inconsciente, não se superpõe ao real.

Eis então, situado muito rapidamente, o que significa para Lacan essa noção de "par ordenado" S1 →S2. Mas é preciso detalhar um pouco mais.

O S1 é o primeiro significante. Certamente, não é o primeiro vagido, o grito primal, nem mesmo, sem dúvida, as primeiras lalações; mas o primeiro ato de fala de um sujeito cuja intenção é de se significar, o "querer-[se-]dizer" (LACAN, 1958-59/2016, p. 48; LACAN, 1968-69/2008, p. 44-60) vai ao encontro do Outro enquanto lugar de um conjunto de regras discursivas já estabelecidas. De um saber anterior, portanto.

Ora, o ser falante demanda à linguagem que o S1se baste a si mesmo, que signifique tudo (É, talvez aqui, nesse condicional que se situa o ponto de interseção entre o "símbolo Φ de "Subversão do sujeito…" (LACAN, 1960/1998, pp. 835-838) e o futuro S1 do Seminário 16). Mas ele não têm êxito nisso, pois sua natureza de signi ficante o proíbe. O falante, então o repete. Ele insiste. Nós estamos no ponto em que os dois níveis do grafo, chamado grafo "do desejo", se separam um do outro: "O desejo se esboça na margem em que a demanda se rasga da necessidade" dirá Lacan (Ibid., p. 828).

Mas essa insistência, como Colete Soler lembrou (SOLER, 2010, p. 258), ordena todo um discurso. O que não significa apenas comandar explicitamente, prescrever, mas também formatar – ser o princípio e o motor desse discurso.

O S1 pode permanecer claramente identificado: como, por exemplo, "ideal comum de uma família, de uma classe, de uma nação" (FREUD, 1914/s.d.), o significante /mestre/ ele próprio (mas o que faz com que o mestre o seja?), quiçá para cada um, seu eu [moi]. Mas, geralmente ele paga com o recalque seu primeiro fracasso. Suas manifestações derivadas serão, então, inesperadas, e até mesmo estranhas, como são o objeto "raro e extraordinário" que, segundo Descartes (1646/1953, p. 728), põe em ação as paixões, ou ainda essas representações hiper-intensas" (Freud, 1895/s.d.) suscetíveis de deixar doente e que foram o primeiro assunto de Freud (FREUD, 1890/s.d.).

Mas, em todo caso, esse S1 vai misturar novamente as cartas do saber anterior.

 

Do saber à ciência

Lacan batiza saber, S2, a distribuição, o agenciamento no Outro dos significantes já colocados em cadeia (LACAN, 1968-69/2008, pp. 44-60). É por isso que o "saber" é sempre "saber anterior".

Em 1895, Freud definia o trilhamento como o fluxo preferencial e permanente da quantidade do neurônio A em direção a B (FREUD, 1895/s.d.). O caráter orientado da associação, da qual Lacan, como acabamos de ver, dará tanta importância a seguir, já está, portanto, aí. Além disso, se ele é pensado a partir do trilhamento e da conexão, o saber não é de natureza fundamentalmente diferente, conforme seja consciente ou não. Nem, aliás, se for adquirido ou herdado.

Esse saber determina o sujeito, ou, ao menos, sua "condição" (LACAN, 1958/1998, p. 555) – a ponto de, às vezes, comprometer sua própria existência. Pois S2 deixado a si mesmo não tem o que fazer do sujeito, e isso vale tanto para a psicologia coletiva como para a individual. Eis porque Lacan pode falar em "saber sem sujeito" (LACAN, 1968/2003, p. 372) a propósito do inconsciente, ao redigir, nesse mesmo ano de 1968-69, o resumo de seu seminário inacabado sobre O ato.

O sujeito enquanto tal nasce da confrontação, diversamente ajustada, de um S1 com este S2. O dispositivo freudiano, e o analista que persevera na hipótese freudiana, deduzem o espaço dessa confrontação: "Os psicanalistas fazem parte do conceito inconsciente, posto que constituem seu destinatário"(LACAN, 1960/1998, p. 8487). Com efeito, a hipótese freudiana, que promete a elucidação do inconsciente, faz deste último, tanto um objeto quanto um S1 – mesmo se a estratégia do analista, claro, for de decepcionar pouco a pouco esta promessa (LACAN, 1961/1998, p. 594-595).

Mas, então, objeto ou S1? Já assinalei essa ambiguidade há pouco, fazendo ficar lado a lado, na mesma frase, a representação hiper-intensa de Freud e o objeto novo de Descartes. Lacan já havia falado sobre isso dez anos antes, ao desenvolver a observação de que a metonímia, de forma contrária à metáfora, não supera a "barreira resistente à significação" (LACAN, 1957/1998, p. 499, e noto que se encontrará essa mesma barreira, duplicada, em cada um dos quatro discursos). E, com efeito, ao segui-lo, as conexões significantes, já ali no Outro, não sendo em si próprias portadoras de sentido, é preciso que o sujeito, para aí poder inserir libido, faça o desvio, por meio de sua demanda, de um objeto de que deve ser admitido no Outro que seja ser "demandável" (LACAN, 1957-58/1999), e que se encontre por isso inserido de início nas relações de coprodução das quais Marx não cessa de falar.

Lacan chama tais objetos de "objetos metonímicos". Seu processo é triplo:

1. eles compensam o "não sentido" [Sinn] que distingue a metonímia da metáfora por aquilo que se pode chamar de uma "não referência" (Bedeutung);

2. tomados em conjunto, eles edificam uma realidade a ser compartilhada;

3. por fim, eles conferem ao saber um fim, o de seu "conhecimento" (LACAN, 1958-59/2016, p. 108).

Ora, a ciência contemporânea, enquanto experimental e matematizável, nutre essa ambiguidade. Com efeito, ela coloca em seu princípio o mandamento de saber e o "unifica" (LACAN, 1968-69/2008, p. 29-43) em uma coleção de conhecimentos integralmente intercambiáveis, que são, a partir deste momento, demandáveis, e até mesmo exigíveis, como qualquer outro objeto metonímico.

Lacan ressalta dois efeitos dessa universalização do saber pela ciência:

1. é certo que o saber pode ser produzido, mas pode também ser adquirido, sem um trabalho particular: ele é, pois, um ganho de contrabando, cujo preço não foi pago – eis algo de que teremos de nos lembrar ao abordar o discurso histérico;

2. nenhum domínio, inclusive os do inconsciente e o do gozo sexual, não é, a priori, excluído do campo do saber.

 

Divisão entre saber e verdade

Mas, e mesmo em tempos de ciência, o problema continua sendo que, desse saber, nada, fora do próprio sujeito, garante a consistência da verdade. "Não tenho nenhuma garantia de que esse Outro, o sistema do Outro, possa me dar aquilo que eu lhe dei – seu ser e sua essência de verdade" (LACAN, 1958-59/2016, p. 355, grifos nossos).

Isso tem duas consequências:

1. por um lado, a de situar o saber, como produto finito "fora do campo do Outro" (LACAN, 1968-69/2008, p. 82);

2. por outro, o de um luto, sempre a ser refeito, "da" verdade, a qual, se fosse encontrada, objetivaria o saber.

Ninguém está preparado para esse luto, e o sábio menos que qualquer outro. É por isso que seus impasses preparam a cama daquilo que Lacan em "A ciência e a verdade" designa como drama (LACAN, 1965/1998, p. 884)

Georg Cantor, segundo ele, é um bom exemplo desse drama, que recentemente Erik Porge (2015, p. 125-129) retomou, para mostrar que as circunstâncias nas quais tal ou tal sábio "vai à loucura" (Ibid.) dependem ao menos tanto de sua atividade científica quanto dos acidentes de sua biografia. Seu argumento é o seguinte: a recusa da foraclusão em decorrência [de fait] da verdade vale para todos, mas Cantor aí se confronta sem escapatória, no momento em que, com o contínuo, encontra algo diferente do que ele procura. Para ser mais preciso, algo que entra em contradição com aquilo que ele busca, isto é, seu saber anterior e, do qual ele tem então que julgar se consente com ele ou o recusa.8 "A" verdade volta, então, no real, de fora, sob a forma de ideias delirantes... sobre a paternidade: peças de Shakespeare, como se sabe, mas também sobre Jesus Cristo, ou sobre ele mesmo.

Fora do delírio, somente é possível se aproximar "da" verdade enviesadamente. "Há divisão entre (o) saber e (a) verdade" (Ibid., p. 856; p. 8789), dos quais Lacan tira a consequência para a psicanálise, nesses termos: "aquilo de que se trata[,] é admitir que nos é preciso renunciar, na psicanálise, a que a cada verdade corresponde seu saber" (Ibid., p. 883).

A interrogação histérica, voltarei a ela, incide muito precisamente sobre o ponto desta divisão – tanto a do mestre, como a de cada um, ao(s) ponto(s) de seu(s) S1.

 

Do objeto a como a-substância e como saldo

O objeto metonímico era também, e sem dúvida inicialmente, uma leitura clínica da plasticidade dos fenômenos libidinais. Nisso, ele seguia o fio freudiano da independência da pulsão e de seu objeto (FREUD, 1917/1989). Mas, ele prefigurava também aquilo que vai amplificá-lo e fazê-lo substituir, o objeto a.

A transição de um para outro ocupa o essencial do seminário sobre O desejo e sua interpretação, em que Lacan se apoia, além da contingência do objeto, sobre a mistura de imperatividade, insaciabilidade e insatisfação que faz aquilo que é próprio do desejo.

Essas características do desejo indicam que por trás de toda demanda, e por trás de todo objeto demandável, esconde-se ainda outra coisa, que seria o verdadeiro objeto do desejo. No final do seminário, Lacan produz uma primeira definição desse objeto: "O objeto a é o suporte que o sujeito se dá na medida em que ele falha" (LACAN, 1958-59/2016, p. 434).

Essa falha do sujeito – que o objeto a recobre, portanto – pode ser concebida em duas direções: uma decorre dos impasses da dependência do sujeito à linguagem. Esses impasses, no fundo, declinam as recaídas sobre o sujeito do "nada há de certo" (LACAN, 1961-62/inédito, Aula de 21/03/1962) do qual acaba de tratar brevemente: a fala fracassa duplamente em estabilizar as relações que têm curso na linguagem, por um lado, e, por outro, em fixar a relação de referência.

A outra direção diz respeito ao fato de que o desejo, assim como o gozo, se situa em um além do princípio do prazer. "O desejo [...] encontra seu cerne, sua proporção fixada, seu limite, e é em relação a esse limite que ele se sustenta como tal, franqueando o limiar imposto pelo princípio do prazer" (LACAN, 1964/1988, p. 35). É por isso que, tomado no sentido que Lacan lhe dá, ele ultrapassa sempre os limites da utilidade – de uso do objeto, em vista de um fim conhecido, quer esse fim seja de uso ou de troca.

In fine, o objeto a permanecerá marcado pela ambiguidade entre mais e menos, que é a ambiguidade do próprio desejo. Ele é positivo na medida em que é "suporte" para o sujeito, isto é, tábua de salvação para seu enfrentamento com a verdade que não há. Mas, ao mesmo tempo, ele é negativo, na medida em que é por meio de sua ausência, sua falta, ou mais exatamente, por sua "cessão" (LACAN, 1962-63/2005, p. 340 sqq.) – cessão por meio da qual o sujeito se dá [essa falta] a si mesmo, ao mesmo tempo em que dá corpo à insatisfação da estrutura do desejo – que ele entra em função. "Asseguro-me daquilo que me falta – do objeto que eu teria perdido". Ou ainda, em estilo cartesiano: "Eu o teria cedido, logo, sou/existo". Ou: "Não serei/existirei sem tê-lo cedido!" É por isso, sem dúvida, que Lacan falará disso, em 1968, em termos de "saldo" (LACAN, 1967-68/inédito,07/02/196810): o saldo se obtém ao se parar as contas e sem pré-julgar o ganho ou a perda... Mas isso supõe todo um histórico e de extratos, que não se inscrevem sem o analista.

 

Do laço social, da economia e do modelo marxiano

Eis, inventariados, os principais tijolos do edifício: S1, S2, → e a, agente e verdade.

No momento de iniciar a construção propriamente dita, a junção, Lacan faz uma longa referência a Marx: sem dúvida, efeito do contexto no qual ele fala – disse algumas palavras sobre isso há pouco –, para a invenção da mais-valia, claro – voltarei a isso – mas, inicialmente, porque ele se convenceu, há tempos, de que Marx aderiu bastante à "subjetividade de sua época" (LACAN, 1956a/1998, p. 322) para que seu pensamento fizesse disso o sintoma – tanto em sua consistência quanto em suas aporias.

Essa época de Marx, ele declara, era de uma "absolutização do mercado" (LACAN, 1968-69/2008, p. 37), isto é, de uma contratualização generalizada; cada um está tomado aí, se preciso contra sua vontade, daí se encontra transformado em "sujeito da realidade econômica" (Ibid., p. 21).

Observo que aqui se trata de um compartilhamento de natureza bem diferente da que Freud descrevia em sua "Psicologia das massas" (FREUD, 1921/s.d). Inicialmente, porque ela é mais durável que as massas mais ou menos instáveis das quais fala Freud. Em seguida, porque, ao inverso da relação da massa freudiana com seu líder, essa organização é ainda mais coercitiva quanto, embora estritamente codificada, desconhecida pelos sujeitos que determina. E, por fim, e talvez principalmente, porque o arranjo discursivo do qual Marx fala modifica concretamente o mundo físico: pela influência que ele exerce sobre os corpos em presença, por um lado, pela repartição diferenciada do elemento material que este arranjo produz em lugar do saldo, e que Marx chama de "mais-valia" (MEHRWERT11).

 

O que é um discurso?

Essas três características do capitalismo – estabilidade, desconhecimento e efetividade – vão se encontrar em cada um dos discursos isolados de Lacan.

Mas Lacan, como acontece frequentemente, demorará para formular aquilo que coloca exatamente com o termo /discurso/. Será preciso esperar até 1972, e pela publicação de "O aturdito": "[O discurso], eu o situo pelo laço social a que se submetem os corpos que abitaño" (LACAN, 1972a/2003, p. 47512).

Não teria como ser mais claro, nem, aliás, mais fiel à fonte marxiana, trata-se do diálogo de cada um desses corpos com uma certa configuração linguageira, ao mesmo tempo em que sua agregação, e da modelagem de suas interações: "a referência de um discurso é aquilo que ele confessa querer dominar, querer amestrar." (LACAN, 1969-70/1994, p. 65)

O primeiro efeito desse programa dos discursos é uma "renúncia ao gozo" (LACAN, 1968-69/2008, p. 17). Isso significa, como Freud já havia amplamente desenvolvido (FREUD, 1930/s.d.) que os sujeitos que aí se "implicam" (LACAN, 1968-69/2008, p. 18) num discurso abandonam algumas de suas reivindicações pulsionais. Quanto a isso, todo discurso é proibidor, ainda que com uma nuance – é o sentido da palavra "renunciar" que traduz a Versagung freudiana – que essa proibição opera com o assentimento do eu [moi], exceto o do sujeito. Assim, o trabalhador assalariado julga mais certo abrir mão de uma parte do valor de seu trabalho para aquele que mantém a ele próprio, bem como a suas ferramentas.

Aliás, Lacan completa esta definição observando que, dentro de cada discurso, o parceiro do casal sexual é escolhido para ser aquilo que encarna certa não renúncia (LACAN, 1968-69/2008, p. 11-25).

Lacan dá um verniz à genealogia dos diferentes discursos com alguns nomes próprios: Licurgo, para o discurso do mestre; Carlos Magno, para o da universidade, e Sócrates para o da histérica (LACAN, 1970a/2003, p. 305 sqq.). Mas, cada um desses grandes nomes fez, à sua maneira e em seu regime próprio, escola, cujos ecos reverberam até nós. Esses diferentes discursos estão, portanto, copresentes no "discurso concreto" (LACAN, 1953/1998, p. 258-259).

A meu ver, essa copresença deve ser remetida à divisão entre saber e verdade. Cada um desses discursos confere ao saber uma função diferente, mas a verdade, como lugar e como função, por sua vez, não se move de um discurso a outro. Na verdade, ela é sempre aquilo que, para preservar uma unidade de ação, o agente desse discurso deve negligenciar, esquecer, recalcar, e até mesmo foracluir. Assim, quando Lacan diz "nenhum discurso pode dizer a verdade" (LACAN, 1968-69/2008, p. 42), "nenhum" [nul] deles quer dizer nenhum [aucun] discurso particular, mas tampouco os quatro, ou cinco, tomados em conjunto.

Contudo, os diferentes discursos se comunicam, e mesmo se esclarecem mutuamente: "O sentido (penso que aqui Lacan utiliza este termo no sentido pleno que ele pode ter como, por exemplo, em "fazer sentido", em que se trata sempre de um "fazer sentido para") se produz pela tradução de um discurso em outro" (LACAN, 1972/1998, p. 481).

 

Ambiguidades do discurso do mestre

Ao menos três figuras do discurso do mestre se alternam nos desenvolvimentos de Lacan, conforme o S1 seja referido ao mestre antigo, ao inconsciente ou ao capitalismo.

1. O par que o mestre antigo e o escravo formam, que procede de Hegel, pre-figura, assim, o par ordenado S1→ S2, mas Lacan se interessa tanto, senão mais, pela maneira como o mestre extrai o saber do escravo do que pelo processo mítico da escravização. Sem dúvida, é por isso que Lacan cita com tanta frequência, no que diz respeito a esse par, o Menon de Platão. Em seu seminário sobre O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, ele já destacava como Sócrates, que pretende fundar um saber totalmente coerente, julga ele próprio um problema que coloca para o escravo a partir de um ponto de vista heterogêneo ao saber que se trata de fazer aparecer junto a este último. Esse ponto de vista é o da opinião verdadeira, da ortodoxa (LACAN, 1954-55/1985, pp. 24-29)e, notemos, Sócrates age nessa circunstância, a partir de uma posição de mestre. Mas, recorrendo a isso, talvez Sócrates dissimule, e talvez até mesmo dissimule para si próprio, o fato de que ele utiliza para a resolução do problema um elemento extraintuitivo – neste caso, √2 – que, na época, é uma construção "científica", que é impossível que ele ignore, mas muito improvável que o escravo tenha ficado sabendo. Esse elemento "tu" carrega, segundo Lacan, "a função criadora da verdade na forma nascente", e lhe permite introduzir a tese segundo a qual todo saber só opera a partir de um ponto de verdade que ele "esquece" (Ibid., p. 30).

2. Que o inconsciente descreva uma variedade do discurso do mestre decorre diretamente da hipótese freudiana. Mas Freud não se contenta com a constatação de que o Isso é um dos mestres a que o eu [moi] serve; ele precisa que as satisfações substitutivas tomadas pelo sintoma são, em larga medida, desconhecidas pelo próprio sujeito (FREUD, 1917/1989), e só serão, talvez, trocadas por outras com a condição de serem elas próprias retomadas no dispositivo analítico. Há, pois, já em Freud a intuição dos desafios "econômicos", diz ele, podendo objetar à passagem do discurso do inconsciente, variante do discurso do mestre, ao discurso analítico. Desafios que, como veremos logo mais, Lacan reconsiderará ao interrogar, em termos de mais-de-gozar, o produto próprio ao inconsciente.

3. Mas, segundo Lacan, não é bem o estado do discurso do mestre, ordenado pelo capital em posição de S1, que torna esse desafio mais claramente visível. Desafio que ele identifica com a mais-valia de Marx. Mas, identificação não é identidade, e me parece que o paralelo tem seu limite. Com efeito, Lacan não adere à afirmação de Marx, segundo a qual o desequilíbrio dos gozos serve em todos os casos à utilidade do mestre. Reformular Marx em termos de discurso é, aliás, também "implicar" aí, com partes iguais, tanto o proprietário quanto o assalariado e interrogar cada um dos dois sobre a satisfação que ele retira dessa implicação – a do primeiro é opaca, sublinha Lacan, e deve ser nuançada a apresentação do segundo, conforme a evidência de uma falta-de-gozar.

 

O mais-de-gozar modifica o valor do gozo?

O "mais-de-gozar" é, portanto, a fórmula geral de Lacan para aquilo que produz um discurso. A palavra está formalmente calcada sobre o "excedente de trabalho" [Mehrarbeitt] e sobre a "mais-valia" [Mehrwer] – aliás, Lacan se diverte transcrevendo-a em alemão como Mehrlust. E a própria noção se inspira fortemente na conceitualização marxiana da produção como codeterminação do social e do real (DEKEN, 2013, particularmente pp. 87-90).

O "mais-de-gozar" traduz o fato de que o gozo não permanece como "substância amorfa" (LACAN, 1968-69/2008, p. 44): ele assume, por exemplo, a forma tangível do rir, por meio do qual, no apólogo de Marx (1867, pp. 735-745) o capitalista pontua o discurso no qual se vangloria do serviço prestado a seu operário, colocando suas ferramentas à sua disposição (LACAN, 1968-69/2008, p. 61-75).

Mas, a mais valia isolada por Marx, e na qual se efetua o capitalismo, é, segundo Lacan, apenas um caso particular – mesmo sendo especialmente eloquente – de mais-de-gozar. O objeto a enquanto "efeito de perda" (Ibid., pp. 125-134) específico da repetição fomentada pelo inconsciente – e do qual falta determinar melhor aquilo que as condições para que ele se isole devem ao discurso analítico – é outro. A meu ver, há aí uma primeira dificuldade que é preciso levar em conta: Lacan, que faz uso da escrita /a/ em cada um de seus quatro, ou cinco, discursos, a cada vez está falando de seu objeto a?

Segunda dificuldade, correlativa à primeira: como acabamos de ver, Lacan fala ao mesmo tempo de "mais-de-gozar" e de "renúncia ao gozo". Essas duas dificuldades exigem duas observações:

1. A tonalidade agradável com a qual a expressão "mais-de-gozar" colore o gozo parece contrastar com certas afirmações anteriores. Em particular aquela segundo a qual o gozo seria um "mal" (LACAN, 1959-60/2008, p. 215 e sqq.). Mas ressalto inicialmente que aquilo de que Lacan falava, no seminário da Ética, era de um uso direto da Coisa – apanágio, talvez, dos heróis trágicos, mas, em todo caso, "vedado a quem fala como tal" (LACAN, 19659-60/2008, p. 79; LACAN, 1960/1998, p.836). Em seguida, que o "mais-de-gozar" fala de um ganho sobre fundo de perda, sobras de um festim que não há. De uma formatação que é, ao mesmo tempo, passagem ao ser. E, por fim, que a topologia do além do princípio do prazer, na qual se inscreve o mais-de-gozar, supõe esse princípio colocado, e não é, portanto, o da relação imediata com a Coisa. Mais tarde, no mesmo seminário, aliás, Lacan terá uma fórmula que diz muito simplesmente essa dialética e esse temperamento: "O gozo decorre da distribuição do prazer no corpo " (LACAN, 1968-69/2008, p. 218).O que equivale a dizer que ele tem a ver, antes de tudo, com norma e com os desvios dessa norma que o uso – os costumes – toleram...

2. Segunda observação, na qual se introduz a dimensão coletiva. Essa positivação provém, também, da "identificação objetivante" (LACAN, 1948/1998, p. 114), segundo a qual o gozo é sempre expropriado; esse é o princípio homo lupis homini, que, da luta de classes à concorrência de todos com todos, passando pela palidez agostiniana, faz o usufruto suposto ao outro, sempre superior ao seu próprio. Jamais em seu lugar legítimo, o gozo tortura o sujeito desse lugar mesmo, e perturba a organização de seus prazeres. Nesse sentido, "ele [o gozo] que não se deveria" (LACAN, 1972-73/1985, p. 81)

 

A universidade desnudada pelo próprio capitalismo

A universidade à moda antiga – a universidade medieval, certamente, mas também o liceu antigo – colocava o saber acima de tudo, e, em particular, fora das regras que regem o discurso do mestre. Daí seus privilégios com relação ao político. Daí também, a tradição da gratuidade, ou ao menos, da livre remuneração do ensino.

Mas esse privilégios, claro, não faziam nada além de negar a dependência: da qual faziam sintoma a auctoritas dos Antigos, mas também, mais perto de nós, "a deslizada de tobogã do Panteão à Chefatura de Polícia", de George Canguilhem (1956) que Lacan cita com tanto prazer (LACAN, 1965/1998, p. 874).

Num certo momento, Lacan fala da forte crise desse modelo. Se ele ridiculariza, aliás, o restabelecimento geral à "unidade de valor" instaurada na volta das férias de 1968, na urgência dos acontecimentos de maio (LACAN, 1968-69/2008, p. 29-43) é que ele lê aí mais um sinal da extensão ao saber da absolutização do mercado. Essa inscrição do saber na contabilidade geral tem por efeito, segundo ele, que ele perde seu valor – entenda-se aí, ao mesmo tempo como valor particular e como valor absoluto (LACAN, 1969-701992/, p. 91-92)

Pois não nos esqueçamos de que é o a que ele situa no lugar de outro, de interlocutor, e até mesmo do verdadeiro trabalhador da operação universitária (Ibid., p. 120 e 192): S2a. O que simplesmente significa que o saber não pode ser obtido sem levar o estudante a "uma consequência em que ele precise colocar algo de si" (LACAN, 1966/1998, p. 11), isto é, sem dividi-lo.

Se este efeito-sujeito falta, não há ensino propriamente dito, o saber somente é adquirido e o tecnocrata que daí resulta (Lacan, claro, não emprega essa palavra, mas me parece, contudo, bastante apropriado dizer aquilo de que se trata) pode ainda mais ser suposto gozar do saber. Ele atribuirá a tese do saber-poder (LACAN, 1968-69/2008, p. 286-298), então, e legitimará, por exemplo, a figura do "biopoder", imaginada por Michel Foucault (1976).

Com relação a isso, Lacan reserva seu prognóstico: "É pelo gozo que a verdade resiste ao saber" (LACAN, 1967/2003, p. 357). O que pode querer dizer que o gozo singular de cada um faz objeção a toda tomada de poder do saber unificado. Mas também que ele espera outras manifestações da verdade no campo coletivo do saber.

O ódio ao saber, que se espalha, poderia ser uma delas?

 

A histeria e, de novo, a ciência

Para Lacan, Descartes, ao pôr em dúvida a "Escola" e a autoridade de seus mestres, intensifica a figura de Sócrates, o histérico. É certo que tanto um quanto o outro "coloca[m] o mestre contra a parede de produzir um saber (LACAN, 1970/2003, p. 436). O que tem por efeito tornar o saber desejável enquanto tal, e preparar os "impulsos" (Ibid.) da ciência.

Isso não se dá, como vimos, sem se maltratar a verdade, identificada com o resto dessa promoção à marcha forçada do indivíduo que questiona, e, portanto, ao dejeto sob o aspecto do qual, eventualmente, se apresenta o objeto a.

Eis o individualismo, o relativismo, o capricho, e até mesmo o "narcinismo" (SOLER, 2012), os obstáculos fenomenais da histeria clínica. Colocar em destaque sua divisão pode produzir a psicanálise, mas a dificuldade da histérica em juntar-se a seu próprio desejo permanece. É como dizer que a histérica não é nem si, nem por si, analisante.

 

Um discurso sem fala

Mas, como disse, o discurso psicanalítico permanece o assunto principal do seminário De um Outro ao outro e dos dois seguintes. No dia 13 de novembro de 1968, Lacan escreve no quadro a seguinte frase, que é em parte o frontispício do ciclo: "A essência da teoria psicanalítica é um discurso sem fala" (LACAN, 1968-69/2008, p. 11).

Essa proposição misteriosa somente vai se esclarecer lentamente. Mas, uma vez situado o discurso analítico, constata-se que ele é, na verdade, um discurso sem fala, pois a, seu agente, não é linguagem, não fala e, por não ser intercambiável (LACAN, 1968-69/2008, p. 11-25; LACAN, 1968a/2003, p.368), tampouco pode ser falado.

Mas, como pode esse objeto, em direção ao qual convergem as diferentes experiências da falta, agenciar um discurso? Com a condição, me parece, de que sua cessão, uma vez assumida como tal (cf. supra) tenha aberto a via ao desejo, e, assim, a uma satisfação que o sujeito poderá, finalmente, reconhecer como certamente sua.

O discurso analítico é, portanto, agenciado, com todo o rigor, pelo estado particular a que o término da análise conduziu o mais-de-gozar. Ou seja, sem dúvida, ainda mais precisamente, para o analisado que se arrisca a manter sua posição analisante além do limite de sua própria cura (PELLION, 2015).

Uma das formas dessa manutenção é a passagem à prática analítica. O analista, então, "faz as vezes de", faz "semblante"13 dessa falta indizível ao sujeito. E desse lugar "lhe sustentar o tempo todo que ele não pode se reencontrar no tocante à causa de seu discurso" (LACAN, 1968-69/2008, p. 20).

Mas, não poderia se tratar de troca entre o a do analisante e o do analista. Pois, se as desavenças do saber com a verdade estão no cerne do discurso analítico, e são até mesmo, com relação aos outros discursos, a marca eletiva dele, sua saída não é reproduzível.

Vê-se, então, que se trata de algo diferente da hipótese do inconsciente como S1. Este último ponto é decisivo, pois, se toda análise, seja qual for sua orientação, produz S1, os efeitos que eles acionam,14 se não forem transferidos para a conta do sujeito, podem muito bem permanecer prisioneiros do prestígio da análise, do analista, e até mesmo do analista do analista (PELLION, 2012).

 

Retornos no real

A flecha superior, como desenvolvi, designa a implicação constituinte da qual cada um dos discursos se funda. Ora, salvo no anexo que acompanha a primeira publicação de "Radiofonia", em Scilicet (LACAN, 1970/2003, p. 447) Lacan não indica geralmente flecha inferior, flecha de retorno.

Isso, me parece, indica a ausência de qualquer medida comum entre aquilo que produz o discurso e a verdade que ele deixa em suspenso. No lugar dessa verdade, o produto tem, portanto, o estatuto de um retorno no real.

As crises esporádicas que os discursos conhecem, são bastante afins, me parece, a esses retornos: assim, a expansão do mais-de-gozar pode ser lida como um retorno no real da divisão subjetiva; a servidão voluntária dos "astudados",da questão do mestre; a covardia neurótica e sua saída depressiva, do consentimento à desqualifiação da verdade como dejeto; enfim, os impulsos em direção ao Um, ou ao menos em direção a essa "suficiência" (LACAN, 1956/1998, p. 479 sqq.) que, por vezes, torna os analistas surdos àquilo que, de sua época, lhes faz objeção, a inconciabilidade do saber e da verdade.

 

Continuar a dar dividendos no mercado (LACAN, 1973/2003, p. 314)

Chegamos ao ponto. Uma última questão, todavia.

Evoquei longamente a insistência de Lacan sobre "um discurso capitalista" e para referi-lo ao nome próprio de Marx. Ele declara, por exemplo, em "Radiofonia", e não sem malícia, que sua "descoberta" por parte dele, uma vez completada pela luta de classes, fez do nome de Marx a referência do discurso capitalista e, assim, um "mestre" (LACAN, 1970/2003, p. 434-438)

Mas nem por isso, porém, Lacan se arriscou a escrever esse discurso preto no branco. Ou melhor, sim, ele fez isso uma única vez, em Milão em 1972 (LACAN, 1972).

Nessa única tentativa, a e S2 permanecem no mesmo lugar que no discurso do mestre, ao passo que S1 e se invertem. Flecha que liga S1 a S2, no discurso do mestre, e que poderia, por causa dessa inversão, ser traçada entre e S2, é desdobrada em duas flechas idênticas, indo de S1 a S2 e de a a . Os ideais e mesmo a ideologia são recalcados como obscenos, o saber faz seus negócios sem o sujeito, que não mais o distingue das outras mercadorias, os mais-de-gozar comandam as subjetividades mais do que são ordenados por elas; e o indivíduo, seja, quais forem suas ilusões pequeno-burguesas, é ainda ao menos tão proletário quanto capitalista. Quanto à crise da economia, ela não levará forçosamente à crise do discurso.

Sem dúvida. Mas, então, quid das relações do discurso do analista com o discurso do mestre assim renovado?

Não tenho uma resposta pronta, mas me parece que encontrar a flecha que vai de a a no discurso capitalista é uma indicação útil (BRUNO, 2010): qual analista, aliás, não constatou a impotência dos consumíveis e de a consumação em fazer recuar realmente a insatisfação? A falta continua, portanto, sendo uma das vias de abordagem do objeto, inclusive no regime mercantil.

Tudo se dará, então, no que distingue os usos do objeto na análise e no discurso concreto. E por isso, é hoje tão pertinente quanto em 1967, se não for até mais, distinguir a passagem a analista da entrada numa carreira.

No discurso analítico, com efeito, não é sendo objetivado como ausente, insuficiente, inadequado etc. que o objeto a causa a divisão do sujeito. É, antes, enquanto falta apresentada (LACAN, 1978; PELLION, 2006) pelo analista. Apresentação essa que significa, a meu ver, a mesma coisa que Lacan visa, a partir de seu seminário sobre O desejo, ao falar de "reintegração de a"(LACAN, 1958-59/2016, p. 381-382) e que opera, por exemplo, quando o analista recusa ativamente, ao contrário dos outros "psis", a se pronunciar em verdade sobre a causa (PELLION, 2016).

Nisso, ainda somos freudianos, o que quer que se pense: pois se Freud, em 1892, disse "etiologia sexual" (FREUD, 1892/1956) foi também para repetir, em seguida, década após década, que no fundo nada sabemos da química sexual nem dos impulsos físicos da pulsão, nem das causas fisiológicas do amor...

 

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Endereço para correspondência
E-mail: f.pellion@wanadoo.fr

Recebido: 25/08/2016
Aprovado: 12/09/2016

 

 

Tradução: Elisabeth Saporiti
Revisão da tradução: Cícero Oliveira e Dominique Fingermann
* Membro da Escola de Psicanálise do Maranhão. Doutorado em Psicologia Clínica e Cultura pela UnB, docente adjunto IV da pós-graduação em Psicologia da UFMA.
1 Texto ampliado da conferência pronunciada em 11 de junho de 2016 a convite do Seminário clínico de Beirute, que se tornou o Fórum do Líbano.
2 Parece-me que a expressão "falta do objeto" que se encontra nas taquigrafias indica melhor a preparação, entre simbólico e real, do lugar que o objeto, com artigo definido, irá ocupar, do que o termo "falta de objeto", mantido pela transcrição da Seuil.
3 Acrescento à transcrição a palavra "anterior", que se deduz de todo propósito ulterior de Lacan, bem como da taquigrafia.
4 Guardarei para a sequência a consideração deste gráfico conforme a transcrição da Editora Seuil, embora Lacan tampouco rejeite escrever seu par ordenado com os símbolos da teoria dos conjuntos, <S1 S2>.
5 A expressão "cadeia significante", como tal, só será utilizada por Lacan cinco meses mais tarde, em sua reescrita para A psicanálise (LACAN, 1957/1998 pp. 11-61), de sua conferência sobre "A carta roubada", do ano anterior, quando ainda não estava apenas em questão a "cadeia simbólica" (LACAN, 1954-55/1985, p. 241 sqq.), Que Lacan fale inicialmente de "cadeia simbólica" e em seguida de "cadeia dos significantes", e, por fim, de "cadeia significante" testemunha, a meu ver, que o significante seja ser distinto do símbolo antes que ele restabeleça seu poder determinante à sua colocação em cadeia.
6 Chamo atenção para o fato de que esse "logo" é precisamente a cláusula que Descartes, por vezes escreve, por vezes omite, entre seus "penso" e "existo/sou" (PELLION, 2014, pp. 41-46). Mas que é, escrito ou não, o epicentro da certeza. A escrita que Lacan proporá a partir de 1964 (Ibid., pp. 69 sqq.), ou seja, "Penso": "logo existo/sou", ressalta, aliás, que o "logo" é o verdadeiro objeto do cogito. Junta-se a isso a causa, na qual o par ordenado, S1ą S2, encontra seu princípio motor e um primeiro saber, ainda mais "anterior", porque não é articulável para além do "logo". Em suma, e inclusive quando ele liga "a noção de inconsciente" a "uma regra de pensamento que tem que se assegurar do não pensamento como aquilo que pode ser sua causa" (LACAN, 1968-69/2008, p. 13), Lacan confere a Descartes a paternidade da montagem que emparelha um "logo" a um Eu. É por isso que, sem dúvida, na lição de 11 de fevereiro de 1967 do seminário sobre A lógica da fantasia, ele identificava pura e simplesmente esse "logo" cartesiano… com o Ça freudiano.
7 É necessário, me parece, se referir à concepção lacaniana do conceito (cf. supra), para se entender a que ponto diferem, no espírito de Lacan, o inconsciente e seu conceito. O equívoco aqui recai sobre o en: "les psychanalystes font partie du concept de l'inconscient, puisqu'ils en constituent l'adresse": trata-se de inconsciente? De seu conceito? Ou ainda Lacan não diz mais a passagem, pelo endereçamento, do inconsciente a seu conceito, o que significaria que o que ele chama de endereçamento é sempre demanda da causalidade?
8 Eis algo que esclarece rapidamente porque a ciência prefere tão frequentemente falar mais de descoberta do que de invenção. Na medida em que a primeira mantém a ficção de uma relação de saber com "a verdade como causa" (LACAN, 1965/1998, p. 889), identificada ao mundo sensível, "descobrir" é, com efeito, bem menos penoso, para o sujeito, do que "inventar".
9 Os colchetes são ditados pelo fato de que os dois artigos definidos desaparecem na segunda ocorrência da expressão. Nessas poucas páginas, saber e verdade passaram, então, do estatuto de objeto ao de função.
10 Exatamente a "saldo da operação psicanalisante". Voltarei a isso.
11 A mais-valia é definida por Marx como a diferença entre a remuneração do trabalho e do valor que este acrescenta ao valor de troca do produto final. Ela é idêntica ao excedente produzido pelo capital empenhado (MARX, 1965, pp. 511 sqq.).
12 O jogo de palavras visa Martin Heidegger, mas também o empréstimo que Lacan faz dele muitas vezes (por exemplo, LACAN, 1961-62/inédito, 02/05/1962) dessa ideia da linguagem-habitat: com efeito ali onde, para o primeiro, a linguagem é a "casa do ser", o segundo sugere agora que não há ser mas somente corpos.
13 A colocação do semblante ali onde antes estava o agente, em 1970, leva em conta a impossibilidade irremediável de se dar conta por meio dos discursos, dos efeitos de verdade (LACAN, 1970-71).
14 Como já sugeriam as "representações hiper-intensas" do primeiro Freud (cf. supra) é por meio do efeito que o S1 comanda – move um corpo.

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