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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.33 Rio de Janeiro nov. 2016

 

ATUALIDADE DO LAÇO SOCIAL

 

O sofrimento do sujeito contemporâneo

 

The suffering of the contemporary individual

 

 

Marc Strauss*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Analista Membro de Escola - AME
Collège de Clinique Psychanalytique de Paris

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Lacan mostrou a novidade e a originalidade do discurso contemporâneo que rege os laços humanos. Se os laços tradicionais organizavam, não sem dificuldades também, as relações entre os sexos e temperavam o ódio, esse discurso faz, de cada um, um indivíduo que não pode contar senão com seu próprio corpo para se sustentar. O sofrimento que se segue toma, então, formas inéditas, como as respostas que nele encontram o sujeito para suportá-lo. A psicanálise é, assim, solicitada de uma maneira diferente da dos tempos de Freud.

Palavras-chave: Laço, Ciência, Parceiro, Sintoma.


ABSTRACT

Lacan brought novelty and originality to the contemporary discourse that orients human bonds. If traditional bonds, not without difficulty, organized the relations between sexes and conditioned hatred, this discourse turns each individual into someone who can count only on his/her own body to stand. The suffering which follows then assumes forms never taken before, as much as the answers that once inside it find the subject to endure it. Psychoanalysis is then demanded in a way different from Freud's times.

Keywords: Bond, Science, Partner, Symptom.


 

 

Milão, 12 maio 1972

(No quadro negro)

 

 

O que é que nos liga à vida? É uma questão que cada um já se colocou em um momento ou em outro. A religião, a filosofia tentaram responder, sempre pela promessa de um mais além, um mais além de paraíso para a religião, de sabedoria para a filosofia. O fato é que isso não funcionou. Uma única palavra é suficiente para nos fazer despertar cruelmente de nossa fé em uma palavra de esperança... um nome próprio... Se lhes disser "Auschwitz!", isso fará ranger freios e dentes. Por trás de tudo, logo pensamos: com esse curinga você desconcerta [coupez le sifflet] todo o mundo. Você apita [sifflez],1 até mesmo o fim da partida. Em que podemos ter fé depois de Auschwitz?

A negação do humano vinda da própria humanidade sempre foi uma aporia para o pensamento, mas com o extermínio industrial dos judeus da Europa, os quadros tradicionais de sustentação do laço com o outro perderam sua consistência. Com efeito, sempre se deveu ou se quis destruir o outro, o inimigo, com mais ou menos violência, seja aquela regulada, da lei, ou aquela desenfreada, da barbárie. E sempre soubemos que para ter mais sucesso nisso é melhor não estar só, mas fazer amigos.

O que são os amigos? Como os fazemos, como os escolhemos? É muito simples: pelo peso que eles dão à palavra dada, com relação a um projeto que representa uma questão comum. Cada um possui sua maneira própria de significar o peso que tem a palavra: até aí... mas não demais... Não até o ponto, ainda assim, em que isso se torne insuportável... O impossível de suportar, é assim que Lacan definiu o sintoma. E o problema com a palavra dada é que não é possível dar-lhe um valor absoluto, como queria o velho Kant. Seria uma loucura, pois dar um valor absoluto à palavra consiste em se fazer, a si próprio, o garante de sua própria palavra. Em outras palavras, isso não deixa nenhuma chance de se colocar de acordo com o outro sobre o que pode, entre eles, garanti-la. Consequentemente, aqueles que caem nessa loucura não têm amigos: eles não têm que lidar senão com outros que só lhes querem bem porque aí encontram interesse, e que terminam sempre por traí-los. Em suma, eles não têm senão inimigos. Terminam, em geral, nas mãos dos psiquiatras, com o diagnóstico de paranoia.

Mas não dissemos, nós mesmos, que era por interesse que devemos ter amigos, para poder sobreviver? Na verdade, sabemos não somente a fraqueza do homem só, mas sua impotência radical. Mesmo se ele nasce a termo, é prematuro; não viveria dois dias se não recebesse a proteção e os cuidados que chamamos "maternos". Os primeiros amigos, como se vê, são os pais, e começa-se sempre por amar a mãe, quer se queira ou não. Não somente ela afasta a morte, que ronda desde o primeiro grito, e assegura a sobrevivência do corpo, mas com ela se instaura ainda outra coisa, um jogo a partir das sensações, um gozo que pode se fazer prazer. E para que esse jogo se desenvolva e se mantenha, é preciso pôr fé na palavra. Daí a função do pai, que encarna o terceiro garante. Ele encarna os limites da palavra, tanto no sentido daquele que a enquadra, confere-lhe sua validade, quanto também no sentido em que ela encontra seu limite, quando é preciso outro para tomar as coisas em mãos. É o que Lacan diz sobre o pequeno Hans e sua ereção traumática: por causa do pai e da mãe que tinha, não havia ninguém para lhe tomar o problema das mãos. É preciso, para isso, que a mãe o permita, e que o pai o queira, e mostre que ele consegue, mais ou menos. É ele que apita o fim da partida, quando não é mais jogo, e que é preciso parar de pensar senão no próprio prazer. Com efeito, existe um prazer a que o pai se reserva, com a mãe. Não somente o prazer da sexualidade, mas aquele da sexualidade partilhada, em uma perspectiva que se situa fora de toda satisfação de necessidade, mesmo de procriação. Essas são simples lembranças.

Na verdade, se há algo de que o humano, como indivíduo, não tem necessidade, é de ter filhos, os quais irão se acrescentar às suas preocupações cotidianas, por uma promessa bem incerta de prazer. O que, então, pode levar um casal a participar do empreendimento de reprodução da espécie? É preciso justamente que haja outra coisa que a necessidade no que anima os humanos, e a essa outra coisa, que nome lhe dar senão amor? Uma velha história, um velho enigma, sobre o qual Platão já quebrou a cabeça; conhecemos suas categorizações da amizade e a sua mais bela representação: não sobreviver a seu amigo morto no campo de batalha. É belo, mas, justamente, não se deve exagerar! Se realmente todo mundo fizesse isso, no primeiro amigo morto, o exército seria dizimado, e seria inútil se entregar a uma batalha perdida de antemão. Explica-se, então, que o soldado, cujo amigo morreu no campo de batalha, deve redobrar o vigor para punir seu assassino e vingá-lo. A Pátria, a Causa, adquirem o nome do amigo supremo. Mas, no fim das contas, é a mesma coisa: trata-se de afirmar que existe algo mais poderoso que a sobrevivência corporal, que faz com que se possa ser levado a, voluntariamente, colocar a própria vida em jogo. Portanto, para Freud o pai é o protótipo da sociedade, ele encarna, antes de tudo, os valores simbólicos que fazem a cultura e, portanto, organizam o jogo entre os corpos que constituem um coletivo. Assim, cada um sabe onde é seu lugar, tanto como amigo, quanto como inimigo, homem e mulher.

Lacan foi mais longe. Ele reduziu a função do pai à sua parte de enigma irredutível. A seu nome.

Com efeito, dos valores que são transmitidos pela cultura do meio parental, não se trata senão de uma encarnação, mais ou menos feliz, sempre imperfeita, na realidade. Mas, sobretudo, ela é fundamentalmente falha no ponto do casal que forma com a mãe. Está claro para toda criança que há alguma coisa que não funciona entre seus pais, quaisquer que sejam. Não somente lhes ocorre de estar em desacordo, mas eles brigam e se recriminam mutuamente sua insatisfação. A criança, no entanto, deseja que entre seus pais isso funcione, ela está pronta para consolar aquele que não encontra no outro a satisfação que espera. Os dois estão insatisfeitos, como dissemos, mas a criança escolhe seu campo. Ela é, antes, designada a um campo, recrutada por aquele de seus pais que será para ele o pai/mãe traumático, porque traumatizado pelo outro pai/mãe. Aquele cuja insatisfação será para ela a mais dolorosa, e que ela quererá, então, a qualquer custo apaziguar, para justificar o casal que eles formam.

Restar-lhe-á, então, colocar em cena em sua vida o cenário de seu "isso funciona, ainda assim", isso com um parceiro que será adequado ao modo pelo qual ela quer corrigir o "isso não funciona" do pai/mãe traumático. A clínica tem aí seu lugar, pois as maneiras de traumatizar não são as mesmas para o pai e para a mãe, elas não são as mesmas para o homem e para a mulher.

A descoberta de Freud foi a de mostrar o valor determinante desse "isso não funciona" particular, que cada um encontrou, um valor que permanece inconsciente, mas que por isso não opera menos no que diz respeito às escolhas do sujeito.

Será que um sujeito tem escolhas e, mais particularmente, a escolha de seus parceiros; e, em primeiro lugar, de seus parceiros amorosos e sexuais? Com o inconsciente, não. Certo é que ele não sabe conscientemente o que determina suas escolhas, mas não sabe quando, e sob que forma eles vão se oferecer a ele. Mas o lugar desse parceiro está reservado no que chamamos de estrutura do desejo. O parceiro, por meio de seu sintoma, deve responder ao sintoma do sujeito, e isso o distingue de qualquer outro. Se esses parceiros podem ser múltiplos, eles ocupam, de fato, sempre o mesmo lugar e se distinguem entre eles por seu nome.

Nome do pai e nome do sintoma, o parceiro é uma necessidade que impõe à própria lei do discurso, uma lei que necessita engajar sua palavra, malgrado – por causa de, de fato – a ignorância sobre a qual ela se apoia. O laço de amor é inerente à estrutura da palavra, ele prima sobre as formas que sua manifestação adquire.

Esse laço de amor é, de fato, o laço de representação entre dois significantes. Somente ele justifica a fé na representação que impõe. O humano, então, sempre obedeceu inconscientemente ao que Lacan chamou de discurso do mestre (DM), o qual rege as relações humanas desde sempre, e no qual um significante primeiro, S1, se faz representar para um outro.

Lacan mostrou, além disso, que esse discurso estava acompanhado por dois outros. Um, que lhe é contemporâneo, o discurso da histérica (DH), no qual o sujeito recusa subtrair sua singularidade na representação coletiva de sua colocação em jogo. O outro, o discurso universitário (DU), apareceu mais tarde. Ele consistiu em colocar o saber no lugar da justificação última de toda ação. É a ciência que permitiu isso, postulando um saber na natureza que prescinde de todo deus criador. Isso não resolve o problema de Deus, da verdade última, mas substitui um garante, que não é nenhum humano, por outro, que também não é nenhum humano.

Esses três discursos coexistiram por um tempo, rivalizando uns com os outros, e determinando lugares precisos: o do mestre, do escravo, do aluno e da histérica.

Nesses discursos tradicionais, pode-se fiar no outro para que ele não toque na verdade que funda o laço. A verdade, com efeito, é relativa ao discurso, mas seu lugar é único, é ela que funda o discurso e ela é, como tal, inacessível. Na circulação dos discursos, do termo que ocupa o lugar da verdade, é impossível retornar. Ela é, por outro lado, sustentada no par formado com o parceiro do discurso. É ela que permite, segundo o que se coloca nela, repartir os lugares entre o casal. Assim, no DM, a verdade recalcada da divisão do mestre permite ao escravo produzir no mundo um objeto de gozo. No DH, a verdade pulsional recalcada, quando se põe ao trabalho da associação livre, permite ao sujeito confrontar o mestre com os limites e com as insuficiências de seu saber. No DU, a verdade escondida do mestre permite ao saber tratar o outro como objeto de estudo. Esses três discursos fazem assim, à sua maneira, consistir uma ordem e por aí tentam representar também a relação sexual (RS).

O discurso analítico veio mostrar o estatuto da verdade, um lugar, e o que vem ocupá-lo é relativo ao discurso, e aí é recalcado. O mestre esconde sua divisão, a histérica desconhece o real de um gozo outro, o universitário esconde sua submissão ao mestre. Assim é suprida à RS no DM e o que ele prescreve da diferença homem/mulher, uma diferença cuja modalidade é contestada pelo DH, com razão, já que ela é sempre ideológica; enfim, a diferença é dissimulada no DU; o DA, por sua vez, mostra o limite das possibilidades de um discurso, já que o saber aí procede de um inconsciente inacessível senão por seus efeitos. Assim, como precisa Lacan, a tarefa do DA é de completar e de sustentar os três outros discursos.

Isso permanece eficiente enquanto o discurso universitário mantiver sua submissão ao mestre, e não se impõe como a única verdade que vale. Ora, para Lacan, a época contemporânea se distingue radicalmente daquelas que a precedeu.

Evidentemente, a história nos lembra que desde sempre as sociedades se modificaram com o tempo, os mestres mudaram, e distinguimos no Ocidente grandes épocas, desde o império grego, depois o romano, até hoje, passando pela Idade Média, a Renascença etc. Mas não é disso que se trata em nossa época, a mudança é muito mais radical, já que se trata de um novo discurso que nos dirige, do qual somos sujeitos, que ele chamou o Discurso do Capitalista (DC), ou Discurso da Ciência (DS). Ele ressaltou a simultaneidade do triunfo desse quinto discurso com a aparição do DA, e propôs sua escrita em Milão, em 12 de maio de 1972.

Tomemos duas questões: o que nos diz esse discurso e sua escrita do laço ao parceiro? E o que faz a solidariedade dessa aparição com a do DA?

Notemos, em primeiro lugar, que se seguimos o percurso das flechas na escrita do DS, a sucessão dos termos é conservada, a exclusão do lugar da verdade é abolida.

Temos, ainda assim, dois parceiros que reconhecemos, por vê-los escritos em outros discursos: à esquerda, o analisante, que está à direita no DA, $/S1 – e à direita o escravo, S2/a. Isto posto, à esquerda, não é nesse DC o analisante que é representado, mas o sujeito que se aliena ao significante mestre. Se um sujeito produz essa alienação sob o corte de um analista, de um que dá seu valor de verdade ao gozo que divide, então esse sujeito daí se torna um analisante. À direita, é a priori o escravo que está escrito. Mas trata-se aí do escravo de um mestre dividido, que não pode dizer o que quer. É por isso que o saber do mercado faz suplência a isso, propondo, até mesmo impondo ao sujeito, o objeto de seu desejo. Assim, ele é feito sujeito por esse objeto. Lacan insistiu muito sobre o fato de que éramos, muito mais do que acreditávamos, os sujeitos desses objetos, que ele chamou de lathouses, ou de gadgets. E foi bem antes da internet e do telefone celular...

Podemos dizer que o sujeito do significante é preservado, já que ele é sempre o efeito da articulação S1 – S2, mas ele não está contido em lugar de verdade pelo significante mestre, e permanece indeterminado. À direita, S2/a não representa o escravo do mestre, mas um corpo animado de um saber sem sujeito. Lacan chamou esse último de proletário, precisando que estávamos todos nesse discurso. Ele o definiu assim: aquele que não tem senão seu corpo para representá-lo. Em outras palavras, ele não possui nenhum valor simbólico. A ordem que rege seu corpo e suas satisfações eventuais é a do expert. Foucault, extraindo aquilo que chamou de biopolítica, mostrou bem essa evolução de nosso mundo permitida pela ciência.

Os psicanalistas lacanianos não criticam a ciência, muito pelo contrário. Mas criticam o uso da ciência na forma pela qual o discurso do capital evacua a questão do sujeito e da verdade, a questão da palavra e do dom que ela implica. Em nome da ciência, o mercado sabe o que está faltando para vocês. E não é mais um parceiro que faz suplência à relação sexual faltante, mas o par que forma o sujeito com seu objeto-gadget.

Assim, Lacan reconheceu os campos [de concentração] como precursores. Somos todos números agora, e nem é mesmo necessário tatuá-los no antebraço. Enquanto formos úteis à circulação dos valores mercantis, mesmo estando doentes ou inválidos, temos um lugar no mundo. Permanece, é claro, a questão de saber o que fazer com os corpos inúteis, sempre mais numerosos.

Ao lado dessa mercantilização mundializada do humano, constatamos fenômenos que parecem, pelo contrário, manifestar uma forte resistência do DM. Assim, o terrorismo e, mais amplamente, o retorno do religioso em nosso século, e com eles, também o retorno de valores de nacionalismo, de pátria, de fronteiras, tudo aquilo que o cosmopolitismo do fim do século XX acreditava estar enterrado para sempre. Por toda parte reivindica-se com violência a defesa e a preservação de uma identidade.

Mas também podemos ver como esses próprios valores hoje reivindicados obedecem às leis do mercado, o sujeito pode escolhê-los e trocá-los à vontade, ao sabor de seus humores diários, sem experimentar o embaraço da traição. O indivíduo de hoje deve, antes de tudo, ser fiel a si próprio, já que supostamente ele é a própria verdade de si mesmo.

Que o verdadeiro par que o sujeito forma seja com seu objeto, mais do que com o corpo de um parceiro, é também o que mostrou a psicanálise. Do mesmo modo, que o saber inconsciente seja para cada um sua própria verdade, também é a descoberta da psicanálise, já que ela faz do gozo singular, intratável, o que causa o desejo de cada um.

O DC e o DA fizeram, em comum, do objeto o parceiro real do sujeito, não um outro corpo. E se eles puderam aparecer ao mesmo tempo, é porque os três discursos que vinham em curso até então haviam atingido os limites de seu poder, por causa justamente da ciência e de suas consequências em termos de produção de objetos de consumo sempre mais indispensáveis à vida cotidiana.

Dito isso, sua resposta à fragilidade dos discursos tradicionais foi também muito diferente, até mesmo oposta. O objeto-parceiro não é o mesmo segundo se trate do objeto perdido freudiano, do sintoma singular, reconhecido e autenticado, ou se trate de um objeto produzido pelo mercado. Com efeito, o DA preserva o laço entre o objeto e o parceiro como corpo falante, ao passo que o objeto do mercado abre mão de um tal parceiro, ele remete ao próprio sujeito, e em sua circularidade alimenta a "sede da falta de gozar".

Isso deve nos levar a precisar nossa posição com relação ao DC, e a reconsiderar nossa posição com relação aos outros discursos. Desenvolvi este ponto em Paris, na ocasião de nossas jornadas nacionais.

Ao DC estamos opostos por origem. Mas como manifestar essa oposição? Denunciá-lo não serve para nada, como sempre que se denuncia alguma coisa. Isso não quer dizer que não seja necessário saber reconhecer seus efeitos e desmascarar sua louca pretensão. Desmascarar sem denunciar pode-se fazer ridicularizando, mas não necessariamente, isso pode também assumir a forma da indiferença, do mesmo modo que em um raciocínio puramente lógico. Lacan ressaltou isso, o lógico é odioso ao mundo porque ele diz o fato, sem cobri-lo com a menor história que lhe daria sentido. Mas mesmo nessa perspectiva, o psicanalista deve velar para que o que lhe resta de voz que lhe é creditada não seja sufocada. Assim, diante do sujeito contemporâneo, podemos reconhecer o mal-estar em sua sede da falta em gozar, mal-estar legítimo, da mesma forma que era a exigência de verdade da histérica Dora.

Temos, portanto, que nos tornar amigos daqueles a quem o mercado torna doentes. O que não quer dizer que devemos nos fazer amigos daqueles que querem restaurar a ordem antiga, ou impor ao lugar do mercado uma nova ordem que lhe convenha. Esses últimos querem um mestre, cuja ferocidade será na medida da ferocidade do mercado.

Para concluir, será que devemos nos preocupar com o devir da humanidade, e será que somos os guardiões de sua manutenção? De um lado, sim, tenho o encargo de meu irmão; de outro, não, a humanidade faz o que pode, e não mais. Podemos, o próprio Lacan o fez, ter confiança na estrutura, que sempre fará com que um gadget se faça também sintoma, já que o enigma do sexo permanece insolúvel, e que ele não cessará de se manifestar por seu gozo perturbador e traumático. Em outras palavras, não há nenhuma confiança a se ter nos tempos que se anunciam, que serão sempre mais duros para cada um, mas uma total confiança a se ter na humanidade para inventar os modos de perpetuação.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: strauss.m@wanadoo.fr

Recebido: 15/08/2016
Aprovado: 12/09/2016

 

 

Tradução: Paulo Marcos Rona
Revisão da tradução: Cícero Oliveira
* Psiquiatra, psicanalista. Ex-residente dos Hopitaux Psychiatriques de la Région Parisienne. Ex-assistente de Consultas no Hospital Sainte-Anne (Paris). Membro Fundador da EPFCL, AME, Docente no Collège de Clinique Psychanalytique de Paris.
1 Nota do tradutor: O autor joga aqui com a palavra siffler, que na frase anterior aparece como "vous coupez le sifflet à tout le monde", e nesta como "vous sifflez même la fin de partie". Na ausência de uma expressão adequada em português, que mantivesse o jogo, optamos traduzir cada termo separadamente.

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