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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.33 Rio de Janeiro Nov. 2016

 

ATUALIDADE E SEXO

 

Diante do muro

 

In front of the wall

 

 

Sonia Alberti*,I,II,III; Barbara Zenicola*,IV,V

I Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia
II Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq
III Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
IV Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Psicanálise
V Fóruns do Campo Lacaniano-Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Ao longo de sua obra, Freud faz inúmeros questionamentos sobre o que definiria o homem e a mulher, o que leva Lacan a retomar o poema de Antoine Tudal: entre o homem e a mulher há um muro. Cada um se colocará na partilha dos sexos servindo-se da função da fala, do campo da linguagem e da lógica dos discursos. As ofertas são várias e há diversas formas de amar. O tema da bipartição sexual também leva à homossexualidade e chega à sua máxima com a transexualidade. Ao afirmar a bipartição sexual – a bipolarização da divisão sexual–, ao reconhecer-se em um polo ao qual não se identifica e, então, endereçar-se à ciência solicitando uma mudança cirúrgica, o transexual confirma que só há demanda quando esta se constitui a partir de uma oferta. Visamos levantar algumas questões no vasto campo que se abre quando partimos do fato de que os dois universais, homem e mulher, implicam a impossibilidade da relação sexual, ou seja, quando nos indagamos sobre as diversas formas de um sujeito sexuar-se.

Palavras-chave: Sexuação, Psicanálise, Homossexualidade, Transexuais.


ABSTRACT

Throughout his work, Freud rises innumerous questions about what would define a man and a woman, which leads Lacan to resume the poem by Antoine Tudal: between a man and a woman there is a wall. Each one will place oneself in the sharing of the sexes through the function of speech, in the language theld, and the logic of discourse. The offers are varied and there are several ways of loving. The theme of sexual bipartition also leads to homosexuality and reaches its maximum with the phenomenon of transsexuality. Once sexual bipartition is aErmed – the bipolarization of sexual division – once one recognizes him/herself in a pole where he/she does not particularly identify with, turning then to science seeking a surgical change, the transsexual confirms that there is only a demand when this comes from an offer. We aim to raise some questions in the vast field that gets unveiled when we start from the fact that the two universals, man and woman, imply the impossibility of the sexual relationship, that is, when we ask ourselves about the various forms a subject inserts him/herself in sexuation.

Keywords: Sexuation, Psychoanalysis, Homosexuality, Transsexuals.


 

 

Introdução

O homem não faz parte de um continuum dos animais e da natureza, é o que a psicanálise nos diz, rompendo com qualquer tentativa, ou ilusão, de justificar o que concerne ao comportamento humano por essa via, pois esclarece que o homem não é natural e que não partilha com os animais desse saber pré-programado, que é o instinto. O homem é pulsional! É por sermos pulsionais e por estarmos imersos na linguagem que não é possível tentar observar aquilo que advém do humano pela ótica da natureza. Esta, por exemplo, une um macho a uma fêmea por meio do instinto, mas não um homem a uma mulher, pois quando se trata do humano, a natureza falha. No entanto, algo que causa ainda mais estranhamento, e até algumas polêmicas, é a constatação de que nem mesmo há uma natureza que diga o que é ser um homem ou uma mulher. Ao longo de sua obra, Freud faz inúmeros questionamentos sobre o que definiria o homem e a mulher. Logo no início de sua conferência A feminilidade (1933), esclarece que todas as pessoas, sejam homens ou mulheres, possuem tanto características masculinas quanto femininas. A ideia proposta por Freud de pensar que homens não são unicamente masculinos e que mulheres não são somente femininas é bastante inovadora para a época, e ele só poderia ter chegado a essa afirmação porque não estava reduzido a características biológicas que, à época, levavam os cientistas a acreditarem que os hormônios masculinos eram encontrados exclusivamente no homem e que os hormônios femininos eram exclusivamente encontrados na mulher. Freud retoma a proclamação napoleônica segundo a qual "a anatomia é o destino", que muitos interpretam como uma resistência de Freud em se desvincular da determinação biológica. No entanto, segundo Lacan, a frase apenas testemunha que desde 1905, quando Freud a retomou, o alicerce da psicanálise não é a biologia, mas o dito. Trata-se de uma passagem no início de O Seminário, livro 19, ... Ou pior (LACAN, 1971-1972/2012), na qual Lacan observa que a diferença sexual se deve ao fato de que os adultos a atribuem a uma diferença natural e por causa disso a dizem diferença sexual. Portanto, na realidade, ela é devida à linguagem, "a anatomia é o destino" é um dito, e por causa disso se instituiu esses dois universais que Lacan viria a conceituar nas fórmulas da sexuação. Lacan afirma que há, sim, uma pequena diferença inata entre o menino e a menina. Mas há outra diferença, ou melhor, uma diferenciação, que esta, de natural, não tem nada. A distinção entre meninos e meninas não é feita por eles e sim pelo Outro da linguagem. "Nós os distinguimos, não são eles que se distinguem" (LACAN, 1971-71/2012, p. 16). Assim, Lacan introduz o Outro, como tesouro dos significantes, que irá nomear o que são "coisas de menino" e "coisas de menina". É a linguagem que vaticina a diferenciação sexual, uma vez que não se nasce psiquicamente homem ou mulher. Em 1933, isso é perfeitamente claro para Freud quando afirma que o que verdadeiramente constitui a feminilidade e a masculinidade é algo que está para além da anatomia, já que o corpo do ser falante é capturado pelo significante e não pela natureza (cf. FREUD, 1933/2010, pp. 265-266).Assim, é somente porque segue os trilhos deixados por Freud, que Lacan afirma a desnaturalização do humano e acrescenta à teoria freudiana, o seu axioma "o inconsciente é estruturado como uma linguagem", mostrando que somos tecidos pela linguagem que, por sua vez, nos orienta na inserção na partilha dos sexos (MIRANDA, 2015).

 

A homossexualidade

Em 1967, dialogando com Heidegger, Lacan perguntou se nós, psicanalistas, estamos efetivamente à altura da subversão do ser-para-a-morte da filosofia pelo ser-para-o-sexo promulgado por Freud. Não que Freud não tenha se colocado a questão do ser-para-a-morte, mas desde o início o dialetizou com o ser-para-o-sexo, ou seja, desde 1898, quando introduziu o impossível em articulação com a linguagem, impossível que o fez esquecer o nome Signorelli: falta um significante (LACAN, 1957/1999). Sexo e morte são os dois reais impossíveis de simbolizar, e foi isso o que o levou ao esquecimento. Castração, perda, falta... uma série de referências clínicas apontam para esses dois reais impossíveis. Foi isso também que permitiu a Lacan avançar em relação à questão de resposta impossível, Was will das Weib? – que Freud (1933/2010) identifica na literatura universal –, que a relação sexual e La/Mulher não existem. Daí que se trata, em psicanálise, de "poder sustentar com coragem e de modo gaio [...] uma relação ao outro que já não é a da luta de morte [... mas] a do amor advertido do fato de que entre o homem e a mulher há um muro" (ALBERTI, 2008, p. 32), conforme – algumas vezes referido por Lacan – poema de Antoine Tudal. Com efeito, diante da incompletude e da incongruência entre o homem e a mulher, a única possibilidade de encontro é no amor – a relação sexual é sempre marcada pelo desencontro. É apenas o amor que consegue fazer suplência à inexistência da relação sexual (cf. LACAN, 1972-73/2008). Então fazemos um convite para examinarmos as coisas de modo gaio – em francês e em inglês, é um equívoco: de façon gay/in a gay way, levando em conta o gozo. Ora, se pretendemos "contribuir para a presença e a manutenção dos desafios do discurso analítico nas conjunturas do século",1 o campo do gozo é, sem dúvida, um instrumento de uma riqueza que ainda exploraremos por muito tempo! Estando posto que a pulsão de morte é primordial de modo que toda pulsão é, antes de mais nada, pulsão de morte – o que não deixa de ser trágico –, inscrevendo-se sob condição de uma perda de gozo, a subversão vem do fato de que tal perda promove um mais-de-gozar. Que isso possa novamente implicar a pulsão de morte é teoricamente necessário, mas a vida se sustenta na busca por esse mais-de-gozar – enquanto há vida! (ALBERTI, 2007). E essa busca, como se dá, senão por meio de Eros e todos os seus possíveis desdobramentos? Na medida em que estes são dependentes da função da fala, do campo da linguagem e da lógica dos discursos, desde o primeiro momento em que o filho do homem com eles se depara, responderá a eles por meio de lalangue. Poderíamos dizer que Eros parte de lalangue – o que é bem mais complexo do que propor o Édipo como seu ponto de partida. Ora, diante do muro que há entre o homem e a mulher, cada um se colocará – nesse salve-se quem puder – da maneira como der, servindo-se da função da fala, do campo da linguagem e da lógica dos discursos. As ofertas são várias! E serão elas a determinar a variedade dos sintomas, conforme as escolhas de cada um. É preciso, diz Lacan em um de seus últimos seminários, reconstituir a relação sexual por um discurso que serve para

[...] ordenar, entendo, para sustentar o mandamento que me permito chamar de intensão do discurso [...]. Todo discurso tem um efeito de sugestão. Ele é hipnótico. [...] Um discurso sempre adormece, salvo quando não o compreendemos. Então desperta (LACAN, lição de 15/3/1977).

O discurso que já não compreendíamos há algum tempo era aquele que impunha, ordenava com seus imperativos, o casamento dito heterossexual. Não o compreendíamos porque há muito tempo já havíamos percebido que ele não colmata o impossível da relação sexual na contramão do que ele mesmo apregoava. Há muito tempo já dera provas de sua mais frequente insustentabilidade, deixando à mostra que uma mulher não passa de sinthoma para um homem, e que ele é para ela "pior que uma aflição, pior que um sinthoma [...], devastação" (LACAN, 1975-1976/2007, p. 98), ou seja, deixando à mostra a impossibilidade de equivalências que exige especificar o sinthoma. É porque já não se compreendia mais que houve o despertar. Este "é o Real sob seu aspecto de impossível, que só se escreve forçando ou por força disso, é o que chamamos a contranatureza" (LACAN, lição de 15/3/1977). As relações amorosas são contra essa suposta natureza que, como vimos, não passa de mais um dito discursivo. Ricardo, ser-para-o-sexo nele introduzido pelas carícias do pai em seus órgãos sexuais desde a mais tenra idade e posteriormente seduzido pelo irmão mais velho, diz em sessão estranhar a demanda pela legalização de enlaces matrimoniais, os casamentos gay, pois isso remete, diretamente, para uma equiparação "das relações homossexuais com as heteronormais". Em que medida podemos dizer que há equivalência entre os amores gay e os relacionamentos entre homens e mulheres? Questão atual para a psicanálise, não apenas porque ainda hoje há psicanalistas que julgam que enlaces homossexuais implicam uma problemática que diz respeito muito mais à perversão do que ao amor de relação de objeto, mas também e, sobretudo, porque é uma questão que tem por objetivo abordar o casamento gay a partir de outro ângulo: a recuperação, no discurso, do que testemunha de uma ruptura do modelo cultural e social, ou seja, de um despertar. Levanta-se a hipótese de que o casamento heteronormal, para retomar as palavras de Ricardo, se impôs visando a uma associação necessária entre amor e procriação (sobretudo a partir do século XIV, quando populações inteiras eram arrasadas por doenças e a peste negra) – associação subvertida por Freud – e que, necessariamente, a homossexualidade rompe ou, se quiserem, perverte. A homossexualidade na clínica indica, apenas, que é possível escolher essa forma de amar como qualquer outra. Que ela pode ser determinada pela função da fala, pelo campo da linguagem, pelos discursos, ou pode ser uma varidade sinthoma, diante do impossível da relação sexual. As conjunturas que virão não podem ser modificadas a partir das resistências que queiram se impor contra elas, e é obrigação ética do psicanalista, na trilha deixada por Freud, a de nos mantermos despertos pois, como nos ensinou Lacan, se há resistência na clínica, ela é do psicanalista. Freud também resistiu à homossexualidade: diante de Fliess, diante de Dora. Mas cedo descobriu seu engano. Em 1914, diante da enorme resistência que seus colegas médicos lhe opunham, retomava uma frase do poeta Hebbel e concluía: "Passei a fazer parte do grupo daqueles que 'perturbaram o sono da humanidade'" (FREUD, 1914/1999, pp. 59-60) e, tanto em 1920 – com a Jovem homossexual – quanto em 1935, na carta à mãe americana que, ao que tudo indica, lhe pedia uma forma de curar seu filho de sua homossexualidade, deu provas de que estava convencido da força de um Eros bem mais complexo do que originalmente supunha. Afinal, é ele que move montanhas! E se move montanhas, talvez mova o discurso – se não o do mestre, que sempre haverá independentemente do que pretenderá sugestionar – ao menos o do analista, na direção que Lacan quis lhe dar, aquela que exige que o analista ocupe apenas o lugar do objeto a causar a análise do sujeito. Ora, se nem Freud nem Lacan deixaram uma orientação quanto à homossexualidade enquanto doença, desajuste ou ainda problema a ser tratado pela psicanálise; se Freud e Lacan são os autores que orientam nosso trabalho, por que ainda estamos discutindo? Seria porque o sujeito homossexual é fruto de um discurso? Função da fala? Seria porque está inserido no campo da linguagem o que lhe impõe haver-se do jeito que pode com a castração? Seria porque é determinado ou porque, tendo atravessado uma análise, fez escolhas absolutamente próprias? Em que então difere do sujeito que não o é? Ou seria porque, momentaneamente, o movimento gay despertou de uma letargia a humanidade inteira diante do impossível da relação sexual, assim como tantos outros movimentos? Questão para a psicanálise novamente, porque os discursos que a ela se contrapõem nos dias de hoje, ou pretendem com a teoria queer "que o gozo é rebelde a toda universalização, à lei" (MILLER, 2003, p. 50), ou insistem na patologização que criminaliza o gozo quando, na verdade, não há vida sem ele. Como transmitir que, ao identificar o sujeito em suas relações com a fala, a linguagem e os discursos, a psicanálise não visa à patologização, mas apenas procura, a duras penas, teorizar o sofrimento a que tem acesso a partir da clínica – independentemente da opção sexual do sujeito sintoma? Na realidade, nem sempre foi assim, como atestam Bulamah & Kupermann (2016). Não fossem as mudanças históricas, na própria psicanálise, instigadas pelas questões de gênero nos movimentos sociais, certamente não estaríamos hoje nos perguntando sobre o papel da psicanálise na transmissão que se inscreve na ética freudiana segundo a qual todo gozo é efeito da relação do sujeito com a lei, enlace e desenlace entre a ordem do semblante e o imposs&i acute;vel a representar: heteros que se repetem. Como testemunhar, no mundo, que o saber do psicanalista é, fundamentalmente, o insabido?

 

O mal-estar da bipartição sexual

O tema da bipartição sexual chega à sua máxima com a transexualidade, que surge na metade do século XX. São sujeitos que experimentam um mal-estar tamanho com relação aos seus sexos anatômicos, a ponto de demandarem uma correção cirúrgica. Dizemos correção, pois é muito comum observar nos relatos de transexuais a afirmação de que nasceram no corpo errado. É isto que caracteriza a transexualidade para a medicina que, em consequência, a reconhece como patológica, um transtorno. Os transexuais lutam pela despatologização de sua sexualidade, no entanto, se desejarem qualquer tipo de intervenção que promova modificações corporais, precisam ser diagnosticados como transtornados de gênero para obter a autorização do SUS para a cirurgia. Com Freud (1905/2002), ao apontar que a pulsão pode satisfazer-se com incontáveis objetos, poderíamos dizer que toda sexualidade humana se não é transtornada é um transtorno! Pois falta-lhe a naturalidade (AYOUCH, 2014). Poderíamos perguntar: então por que a cirurgia? Será que o sujeito transexual não estaria, também, mergulhado na ilusão da normatização sexual ao demandá-la? Ao fornecer o Processo Transexualizador,2 pelo SUS, o Estado não estaria vaticinando que é possível um apaziguamento quanto ao real do corpo e do sexo, por meio da cirurgia? Se o ser falante não é instintivo e nem natural, a bipartição sexual entre homem e mulher não consegue dar conta da subjetividade e sempre haverá algo que irá escapar. Será que a promessa de uma adequação do sujeito ao seu corpo e ao seu sexo é possível? Sobre a diferença sexual, não estariam, ainda, esperando que, a partir de uma "pequena diferença" (idem) anatômica exista uma identidade específica, um posicionamento na partilha sexual ditado pela certeza anatômica? Freud se defrontou com a questão dessa inscrição a priori, de uma anatomia que não é o bastante para definir o que é "ser homem" e o que é "ser mulher", já que não há uma resposta que diga a "verdade sobre a verdade" assim como "não existe Outro do Outro" (LACAN, 1971/2009, p. 14). Assim, tratar-se-ia talvez de melhor fazer operar o enigma, na busca de um saber que será sempre parcial. E, uma vez que as palavras faltam e o simbólico não drena tudo o que é do real do sexo, isso leva necessariamente a um mal-estar. Logo, o mal-estar do sexo está para todos, sejam ele transexuais ou cisgêneros. Inicialmente, em seu ensino, Lacan propõe que um sujeito se posiciona na interpretação da diferença sexual a partir do lugar que ocupa entre o ser e do ter o falo, atribuindo ao falo uma função significante. Mais tarde, propõe as fórmulas quânticas da sexuação, que asseveram a bipartição sexual a partir do posicionamento do sujeito diante do desejo e do gozo. A partir do momento em que o campo do gozo encontra na ciência um avalista, tudo efetivamente passa a ser possível. Ao afirmar a bipartição sexual – a bipolarização da divisão sexual –, ao reconhecer-se em um polo ao qual não se identifica e, então, endereçar-se à ciência com a demanda de transposição para o polo sexual com o qual se identifica, confirma outra máxima de Lacan: só há demanda quando esta se constitui a partir de uma oferta.

 

Será que é possível exterminar a alteridade sexual?

Entretanto, na contramão da crença na bipartição sexual estão algumas feministas que, inicialmente reivindicavam direitos equânimes entre os gêneros e, atualmente, defendem a anulação das diferenças entre o homem e a mulher. Isso não veio à toa; na realidade é contemporâneo a uma resposta direta a práticas terapêuticas que anulavam o desejo de analisantes de serem identificados conforme o gênero de suas próprias escolhas e tratavam seus pacientes com os "nomes e pronomes ditados por seus sexos biológicos, contrariando a vontade" deles (BULAMAH; KUPERMANN, 2016, p. 77). Judith Butler, em seu livro Problemas de gênero (1990), cita a música, cantada por Aretha Franklin, "You make me feel like a natural woman", para indicar que só é possível para o sujeito afirmar-se mulher a partir de uma diferenciação com o outro gênero, o homem. Talvez Butler tenha lido O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante (1970-71/2009). Nele, Lacan enfatiza a ideia da alteridade em relação à partilha sexual, o que define o homem é sua relação com a mulher e vice-versa, pois a identificação sexual consiste em considerar que existem mulheres, no caso do menino, e que existem homens, no caso da menina. É nesse cenário, no qual o biológico é insuficiente para a subjetivação da diferença sexual, que se inscreve o semblante que tem função de verdade, sempre meio dita para Lacan. Já que não há nada instintivo que diga o que é ser um homem ou ser uma mulher, o que resta é fazer semblante, resta apenas "parecer" homem ou "parecer" mulher, fazendo "semblante do que se chama um homem e uma mulher" (LACAN, 1971-72/2012, p. 36). O sujeito transexual vem reafirmar que habemus gender! Como escrevem Tenório & Prado (2016), transexuais não relatam "serem incapazes de se sentirem 'mulheres' ou 'homens'" (p. 45), e sim, de se sentirem mal-compreendidos, não aceitos – fundamentalmente em função dos discursos que patologizam – e de terem um "defeito físico" – por não terem nascido no corpo certo. E por maiores variações que possam existir no modo de ser homem ou mulher, tal alteridade está posta. Inclusive, para que possa haver sexo, é imprescindível que haja a diferença. Na lógica dos gozos, Lacan, ao abordar o lado feminino das fórmulas quânticas da sexuação o faz pelo viés da Heteridade, e afirma que aquele que é heterossexual, aquele que ama uma mulher, identifique-se ele próprio com o sexo que for. Com efeito, para haver o real do sexo é necessário que haja o Heteros, a diferença, enquanto o amor narcísico é homemsexual, como Lacan chamava o amor do homem pelo homem, no sentido humano.

 

Para concluir

Exatamente por não existir equivalência possível entre os termos homem e mulher, é pela inexistência da relação sexual que é possível o sexo, o ato sexual. É preciso cruzar, de um lado para o outro das fórmulas quânticas para acertar o parceiro, seja localizando no corpo do outro o objeto de sua fantasia, ou buscando no outro o significante fálico. Mas é sempre no outro, no diferente, na alteridade. A linguagem de que Lacan sempre tratou, em que as verdades se dizem em contrabando, a linguagem que ele teve o cuidado de cingir no campo em cuja função está a fala – ou seja, o que interessa o psicanalista –, é aquela que "permite distinguir, entre outros, o código da mensagem" (LACAN, 1971-1972/2000, p. 18), o que não é outra coisa senão a maneira como o sujeito recebe do Outro a sua própria mensagem de forma invertida, levando-o, a ele próprio, desejar. Se o discurso, produção de gozo e sem palavras, sugere a heteronormalidade ou a homossexualidade, isso não muda em nada o analisante que vem falar de seu sofrimento diante do fato de que entre o homem e a mulher há um muro. A psicanálise é uma clínica e não uma proposta de mudar o mundo, muito menos ainda, de resistir a qualquer uma de suas mudanças, até porque o saber do psicanalista o leva a constatar que as revoluções acabam por nos fazerem girar sempre no mesmo lugar (LACAN, 1970/2001), ali onde cada um busca seu mais-de-gozar enquanto há vida, mais-de-gozar com o qual cada um faz seus enlaces e que Colette Soler (2013) situa como "o verdadeiro parceiro da repetição" (p. 122). Sendo assim, reivindicações sociais em prol da tentativa de garantir direitos iguais a homens e mulheres não só são válidos, mas necessários, pois sem eles não teríamos tido avanços históricos importantes. No entanto, esperar que o homem e a mulher sejam iguais, no que tange à subjetividade, é abdicar da alteridade necessária para defini-los. Concordamos com a afirmação de Quinet (2013) que "para haver sexo, é necessário a diferença do outro – não se faz sexo com o mesmo" (QUINET, 2013, p. 139). Aquilo que diz respeito à sexualidade do ser falante é da ordem do Heteros, já que a posição sexuada está para além da sustentação do imaginário da anatomia, sendo necessários os dois sexos, para que possa haver sexo. Então, sim, Habemus Gender!

 

Referências

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Fontes eletrônicas

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Endereço para correspondência
Sonia Alberti
Rua João Afonso, 60 casa 22
CEP 22261040 – Rio de Janeiro (RJ)
Tel. 21 25273154
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Barbara Zenicola
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E-mail: barbarazenicola@hotmail.com

Recebido: 15/08/2016
Aprovado: 12/09/2016

 

 

* Professora Associada do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisadora do CNPq. Psicanalista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano.
** Psicóloga graduada pelo IBMR. Especialista em Psicologia Clínica, pela PUC-Rio. Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ e atual Doutoranda no mesmo Programa. Psicanalista participante dos Fóruns do Campo Lacaniano-RJ.
1 "Quem somos" <//www.campolacaniano.com.br/#!apresentao/c1rj3>.
2 Portaria no 2.803, de 19 de novembro de 2013.

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