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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.33 Rio de Janeiro nov. 2016

 

ATUALIDADE E SEXO

 

Transexualidade e transgêneros: o gozo sexual da falante

 

Transsexuality and transgender: the sexual enjoyment of talking being

 

 

Vera Pollo*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano da Internacional dos Fóruns - IF-EPFCL
Universidade Veiga de Almeida. Programa de Pós-graduação stricto sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Psicologia Clínica

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente texto discorre sobre o gozo sexual dos seres falantes, com ênfase na transexualidade e nos transgêneros. A primeira parte procura localizar historicamente a questão, a partir do primeiro registro de um caso de transexualidade e dos primeiros autores que estudaram o assunto. A segunda parte introduz quatro conceitos psicanalíticos produzidos por Freud e Lacan com vistas a circunscrever este tipo de gozo: a pulsão, o falo, a sexualidade e a sexuação. Na terceira parte, o texto elabora alguns encontros e divergências entre os dois últimos conceitos. A quarta parte está centrada no livro de João W. Nery, Viagem solitária – Memórias de um transexual trinta anos depois. A parte final produz o levantamento de algumas respostas da psicanálise, sobretudo, ao tema da transexualidade.

Palavras-chave: Transexualidade, Transgêneros, Falo, Sexualidade, Sexuação.


ABSTRACT

This paper discusses the sexual jouissance of speaking beings, with an emphasis on transsexuality and the transgender. The first part aims to place the question historically, departing from the first register of a transsexuality case and the First authors who studied the topic. The second part introduces four psychoanalytical concepts conceived by Freud and Lacan in order to circumscribe this type of jouissance: impetus, phallus, sexuality and sexation. In the third part, the text works on some encounters and divergences between the two last concepts. The fourth part focuses on João W. Nery' book Solitary trip – The memoirs of a transsexual 30 years later. The final part then brings the results of some psychoanalytical answers mainly related to transsexuality.

Keywords: Transexuality, Transgender, Phallus, Sexuality, Sexaction.


 

 

Transexualismo, transexualidade, transgênero, trans-homens e trans-mulheres, os significantes deslizam, incidem no real e interrogam a psicanálise. Vivemos numa época em que já não é impossível mudar cirurgicamente o sexo anatômico. Cirurgias de construção de próteses e de ablação de órgãos são realizadas até mesmo em hospitais públicos, e a medicina, mais do que nunca, procura responder à demanda de alguns sujeitos por uma nova genitália, por diferentes caracteres sexuais secundários, e por um novo registro civil. Em busca de possíveis respostas da psicanálise a este tema, que ganha a cada dia mais espaço em nossos veículos de comunicação de massa, façamos primeiramente um breve recorrido histórico.

 

De onde parte a questão

Autores que se debruçam sobre o tema ressaltam que se deve a Jean Étienne Esquirol (1772-1840) o primeiro registro de um caso de transexualidade, e a Richard von KraF-Ebing (1840-1902) o estabelecimento de uma escala de inversões sexuais que vai do "hermafroditismo psicossexual" à "metamorfose sexual paranoica", esta bem conhecida dos psicanalistas por meio do texto freudiano, de 1911, "Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoide)", o famoso Caso Schreber. Daniel Paul Schreber (1842-1911), importante jurista alemão, ao ser nomeado presidente da Corte Suprema de Dresden, construiu um longo sistema delirante em torno da ideia de que Deus, contrariando a ordem do universo, enviava intermitentemente para seu corpo nervos da volúpia feminina, que alteravam sua voz e lhe faziam crescer seios, feminizando sua silhueta. Internado em hospital psiquiátrico, redigiu o seu sistema delirante em forma de livro, posteriormente publicado sob o título de "Memórias de um doente dos nervos".1

O termo "transexual" foi cunhado pelo endocrinologista norte-americano, nascido em Berlim, Harry Benjamim (1885-1986),2 em consonância com a proposta de um tratamento hormonal e uma experiência de vida social segundo o sexo desejado pelo período de seis meses, para que, só depois, fosse concluída a indicação ou a contraindicação cirúrgica. Robert Stoller (1924-1991), professor de psiquiatria na Universidade Columbia, cuja obra mais conhecida é Sex and gender: On the development of masculinity and femininity, define o transexual como a "pessoa anatomicamente normal, mas que tem o sentimento de pertencer ao sexo oposto e deseja mudar de sexo, porém ciente de seu sexo biológico, sem a manifestação de distúrbios delirantes" (STOLLER apud MIRANDA, 2015, p. 53).

Na verdade, Stoller pretendia ter descoberto uma protofeminilidade comum a todas as crianças, independentemente do sexo biológico, a qual funcionaria como "uma identidade de gênero feminino no coração da sexualidade humana" (STOLLER, 1993, p. 35), descoberta esta que, segundo ele, o posicionava mais além de Freud. Acreditando em um contato simbiótico mãe-bebê, postulou a existência de um imprinting de feminilidade primeva e atribuiu as distorções da imagem dos transexuais masculinos à fixação na protofeminilidade. Em suas palavras,

[...] sentir-se a si mesmo como parte da mãe – uma parte da estrutura de caráter primeva e, portanto, profunda (core gender identity, identidade de gênero nuclear) – estabelece o fundamento para o sentimento de feminilidade de um bebê. Isso coloca a menina firmemente no caminho para a feminilidade, na idade adulta, mas põe o menino em risco de ter, em sua identidade de gênero nuclear, um sentido de unidade com a mãe (um sentido da qualidade de ser mulher). Dependendo de como e com qual intensidade a mãe permite ao filho separar-se, essa fase de fusão com ela deixará efeitos residuais que podem ser expressos como distúrbios da masculinidade (STOLLER, 1982, p. 35).

Na França, a psicanalista Catherine Millot publica, em 1983, um livro intitulado Hors-sexe,3 em que discute as conclusões de Stoller e relata algumas entrevistas realizadas com transexuais operados e não operados. Em suas palavras, Stoller propõe que "na verdade, a essência do transexual é sua mãe", no entanto, "dizer que o transexualismo se baseia sobre o sentimento íntimo de ser mulher ou homem é uma das falsas certezas que os testemunhos dos transexuais vêm abalar" (MILLOT, 1992, p. 121).

De acordo com a doutrina lacaniana, Millot afirma que a principal característica da transexual, diferentemente da homossexual, é a confusão entre o órgão (pênis) e o significante (falo). Uma das transexuais que ela entrevistou, ao tomar conhecimento de que a consanguinidade aumenta as chances de sucesso em cirurgias de transplante, fez o irmão prometer que lhe cederia o pênis se morresse antes dela.

Curiosamente, sua pesquisa a levou também ao estudo dos cultos metroacas, em que o casal clássico não é formado por sujeitos da mesma geração, mas pela mãe e seu filho-amante, normalmente castrado. Além destes, ela ainda descobre as assim chamadas "comunidades skoptzy",4 seita religiosa que praticava a castração ritual, por acreditar que a alma precisa se libertar da matéria para progredir. São comunidades que existiram na Rússia, na Romênia e na Finlândia, entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do século XX.

Por fim, ela observa que, se muitos transexuais sentiram necessidade de escrever uma autobiografia após serem operados, este ato denuncia claramente que a cirurgia não lhes proporcionou tudo que esperavam, ou seja, não lhes respondeu satisfatoriamente sobre suas indagações acerca de sexo próprio. Logo, "se a operação não é uma solução, ela é imposta pela sociedade" (MILLOT, 1992, p. 115). Voltaremos a esse ponto na parte final do texto.

 

A pulsão e o falo; sexualidade e sexuação

O advento da psicanálise, na aurora do século que passou, trouxe consigo uma concepção até então inédita da vida sexual dos seres falantes. O conceito de pulsão cujas características o diferenciam do instinto animal – pressão constante e não cíclica; variabilidade imensa do objeto – rompeu definitivamente com as ilusões românticas acerca do ato sexual como o encontro complementar que resultaria, para cada um dos parceiros, na confirmação de uma, e só uma, identidade sexual: homem ou mulher, nesse caso separados pela partícula excludente.

Freud não tardou a concluir que o feminino e o masculino puros não passam de construções hipotéticas, construtos vazios distantes da realidade empírica. E mais: concluiu também que a tão propalada atração entre os sexos está certamente mais próxima da poesia do que da vida. Inclusive, entre as suas primeiras conclusões se pode ler que "os sintomas neuróticos nada mais são do que a atividade sexual do paciente" (FREUD, 1905/1972, p. 25). Nesse caso, uma atividade da ordem da fantasia inconsciente e dos devaneios mais ou menos conscientes que dela decorrem.

Afirmamos, com Lacan, que o escândalo freudiano não foi tanto o reconhecimento de que há gozo sexual na primeira infância – o que já se sabia, ao menos desde a Idade Média, em que tratados médicos mencionavam os apetites carnais das crianças –, mas a demonstração, anteriormente denegada, de que a sexualidade humana é intelectual, ou seja, de que o impulso sexual do ser falante se deixa apreender no desfile dos significantes, desnaturalizando-se.

E a consequência imediata da desnaturalização do sexo e do sexual nos seres de linguagem concentra-se exatamente na assim chamada relação homem-mulher, tornando-a inexistente do ponto de vista subjetivo – o ato sexual, quando tem lugar, não relaciona um sujeito-homem a um sujeito-mulher e vice-versa, mas, sim, um sujeito dividido e alguém que encarna o objeto da fantasia deste mesmo sujeito – e enigmática do ponto de vista da ciência médica que, embora divida os humanos em duas classes – designando como "homem" ou "sexo masculino" aquele que apresenta cromossomas XY, testículos, testosterona, pênis e bolsa escrotal e como "mulher" ou "sexo feminino" quem apresenta cromossomas XX, ovários, estrogênio, vagina e útero –, não consegue explicar os jogos de atração e/ou de repulsa entre os dois, não explica, portanto, o que se chama "conduta sexual". Pode-se, então, falar em "falha epistemo-somática" (LACAN, 1966/2001, p. 8-14) ou "resíduo de não saber" (TEIXEIRA, 2006), indicando uma falha do saber médico sobre o corpo dos falantes.

A classificação segundo critérios genéticos, hormonais e anatômicos permite apenas cálculos estatísticos, como aquele que afirma a existência de cerca de 50% de certidões civis de nascimento onde se lê o significante "sexo masculino" e de cerca de 50% com a inscrição "sexo feminino". "Cerca de", nesse caso, significa um cálculo aproximado, pois a esta sex ratio se devem acrescentar ainda os casos das assim chamadas "Desordens da Diferenciação Sexual", as DDS, que englobam hermafroditismo, genitália ambígua ou "intersexo". Quanto às diferenças de conduta, ditas também "masculinas" ou "femininas", cuja variabilidade cultural é enorme, a ciência médica nada tem a dizer, pois estas são bem mais da ordem dos ideais de uma determinada época e de um determinado lugar, e estes são privilegiadamente imaginários e/ou simbólicos.

Ao seguir na trilha freudiana, Lacan (1958) demonstrou primeiramente que as identificações sexuais estão diretamente ligadas ao significante falo, o qual "irrealiza" a relação entre os sexos, pois, se o que importa no jogo de sedução é apresentar-se ao parceiro como "tendo o falo" ou como "sendo o falo", já não se trata de apresentar-se como portador de um pênis ou de uma vagina. O jogo de sedução torna-se, assim, jogo de semblantes: um "parecer ser" e um "parecer ter", para os homens. A falta fálica é o verdadeiro nome da castração, porque, a rigor, não se pode ter ou ser um significante de forma absoluta. A função do falo é determinar as estruturas – ritos, gestos e falas – que serão submetidas às relações entre os parceiros. Ao substituir o significante freudiano "sexualidade" por "sexuação", Lacan (1972-73/2012) escreve – ou matemiza, se preferirmos – a divisão homem/mulher em uma forma que, evidentemente, nada tem a ver com o sexo dito cromossômico, mas com dois diferentes modos de gozo, mais além do princípio de prazer.

A clínica psicanalítica contemporânea tem confirmado a previsão feita por Lacan, em 1971, de que os sujeitos que se autodesignam "homossexuais" lotariam os consultórios dos psicanalistas com as mesmas questões daqueles que se autodesignam "heterossexuais", quais sejam: o que me impede de gozar? Por que não consigo uma relação amorosa estável? Por que sou diferente de todas as mulheres? Será que sou suficientemente homem? Vale dizer, portanto, que as questões subjetivas não divergem em função das escolhas de objeto. Elas o fazem, privilegiadamente, em função do que Freud chamou de "caráter sexual do eu" e Lacan chamou de "posição sexuada".

 

Sexualidade e sexuação: encontros e divergências

O texto freudiano nos ensina que a vida sexual dos falantes comporta uma maldição, a qual resulta dos seguintes fatos e características:

1. A sexualidade do falante é bem mais ampla do que o ato genital, e pode inclusive dispensá-lo.

2. O tabu do órgão genital feminino é encontrado em homens e mulheres, e tende a estender-se ao corpo da mulher como um todo.

3. A renúncia à satisfação direta da pulsão é necessária ao processo civilizatório da comunidade e de cada um de seus participantes.

4. Independentemente da repressão familiar e social, há, na própria natureza da pulsão, algo que impede sua satisfação completa. Caso contrário, ela se extinguiria.

5. O primeiro objeto sexual, para as crianças de ambos os sexos, é a pessoa que desempenha a função materna, a quem será atribuído um falo imaginário, constituindo-a como a Mãe fálica. A Medusa é um de seus símbolos.

6. Como o bebê humano é um prematuro, ele experimenta ao nascer um desamparo físico e psíquico, motivo pelo qual a pulsão se apoia na satisfação da necessidade e engendra a demanda de amor.

7. Uma certa dose de sadismo é necessária à realização do ato sexual, chamado posteriormente por Lacan de "perversão polimorfa do macho".

8. Existe um masoquismo originário que consiste em obter prazer na dor, o que equivale a dizer que a pulsão de morte é primária, e deverá ser "amansada" pela pulsão de vida.

9. Há uma diferença entre o "caráter sexual do eu" e a "escolha de objeto"; o primeiro é aquilo pelo qual um determinado sujeito se diz "homem" ou "mulher"; a escolha de objeto pode ser dita hetero ou homo, mas é sempre possível alterná-la.

10. Um sujeito que alterna entre uma escolha hetero e homo costuma declarar-se um "bissexual". Há uma bissexualidade originária, não propriamente orgânica, mas essencialmente psíquica, a qual faz de toda criança um "pequeno perverso polimorfo", quanto ao seu modo de gozar.

11. O caráter sexual do eu resulta das identificações masculinas e femininas, que correspondem ao declínio do complexo de Édipo. Um sujeito, então, se dirá homem ou mulher conforme a predominância de um ou outro tipo de identificações. Logo, considerando-se também o sexo das identificações recalcadas em seu inconsciente, todo sujeito é, em algum nível, um ser bissexual.

Não pretendemos fazer uma listagem detalhada das elaborações de Lacan sobre a vida sexual dos falantes, mas queremos observar que, a princípio, isto é, ao longo dos primeiros nove anos de seu seminário, ele subscrevia, literalmente ou quase, as principais conclusões de Freud, reescrevendo-as, é claro, com seus próprios termos. Por exemplo, ao afirmar que a desarmonia homem/mulher subjaz "à falta preparada no sujeito pela linguagem, para que nisso se exercitem como rivais os partidários do desejo (leia-se: os homens) e as recorrentes do sexo (leia-se: as mulheres)" (LACAN, 1958/1998, p. 745). Ora, designar os homens como "partidários do desejo" e as mulheres como "recorrentes do sexo" parece-nos em consonância com as observações mais tardias de Freud (1932) acerca da sexualidade feminina, segundo as quais as mulheres permaneceriam mais ligadas à satisfação direta da pulsão e menos propensas à sublimação, em consequência do repouso encontrado na ligação edipiana com o pai e apresentarem, consequentemente, um funcionamento superegoico menos inexorável que o masculino.

Porém, nesse mesmo texto, escrito em 1958 e intitulado "Diretrizes para um congresso sobre sexualidade feminina", Lacan observa que os grupos de mulheres homossexuais não apresentam as mesmas características identificadas por Freud (1921) nos grupos de homossexuais masculinos, uma vez que elas não apresentam uma maior propensão às práticas intempestivas e violentas. Pelo contrário, demonstram grande interesse pela cultura, em particular, a literatura. O que o levará a concluir, alguns anos depois, que somente as homossexuais sustentam o discurso sexual com segurança, porque sentem-se confortáveis nas "coisas do amor" e "não correm o risco de tomar o falo por um significante" (LACAN, 1971-72/2012, p. 17).

Freud (1912) esclareceu "Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor" dos homens incapazes de fazer convergir amor e desejo numa só mulher, mencionando a existência de duas correntes em suas vidas amorosas: uma que toma a mulher/mãe como objeto de amor; outra que toma a mulher/puta como objeto de desejo. E, embora tenha observado que algumas mulheres podem adotar o "tipo masculino de amor" (FREUD, 1920/1976, p. 199), o qual se caracteriza pela sublimação da pulsão e pela idealização do objeto, como no caso que hoje conhecemos como a "Jovem homossexual", Freud deu indícios de acreditar em uma convergência do amor e do desejo na vida amorosa das mulheres em geral. Mas Lacan não subscreve esta observação de Freud. Segundo ele, na vida amorosa das mulheres há uma divergência de correntes apenas menos evidente, pois, enquanto o objeto de desejo é o parceiro portador do pênis, o objeto de amor encontra-se velado no inconsciente. Este tanto pode ser "um amante castrado ou um homem morto (ou os dois em um) ... um íncubo ideal" (LACAN, 1958/1998, p. 742). Explica-se, assim, por que razão se pode dizer que "o extremo do erotismo feminino é a fantasia de matar o homem" (LACAN, 1975-76/2007, p. 122), magistralmente ilustrada no filme "O império dos sentidos".

Outra observação de Lacan assinala que as mulheres não se caracterizam, como Freud chegou a pensar em determinado momento, pela aceitação imediata da castração, o que as conduziria rapidamente ao complexo de Édipo e, portanto, ao pai. Em "O aturdito", Lacan (1972/2003, p. 465) declara que tal ideia "contrasta dolorosamente com a realidade de devastação que constitui na mulher em sua maioria a relação com a mãe de quem como mulher ela parece esperar mais substância que do pai – o que não combina com ele ser segundo, nessa devastação".

Buscando esclarecer as posições sexuadas homem/mulher para além dos significantes da identificação, Lacan (1972-73/1985) produz, na sétima lição do Seminário 20: Mais, ainda, um quadrante lógico, que corresponde a uma nova maneira de se pensar a sex ratio, enigmática distribuição dos seres falantes em apenas duas metades, a que nos referimos acima. Trata-se de escrever as duas maneiras de um falante se dizer "homem" ou "mulher", conforme dois modos distintos de gozo: "todo fálico", no primeiro caso; e "não todo fálico", no segundo.

Esta divisão dos seres falantes entre uma metade que tem um gozo "todo fálico" e outra metade que tem um gozo "não todo fálico", porém que tem também um suplemento de gozo dito "feminino", não significa de modo algum que outros gozos não sejam experimentados, nem que estejam aí englobados todos os falantes, sem possíveis exceções. Tampouco significa que os sujeitos não possam experimentar-se nos dois lados alternadamente. Significa, apenas, que o gozo fálico é o que substitui no falante o que seria um gozo da ordem da natureza – ou puramente animal, se preferirmos – e que "o Falo é a objeção de consciência, feita por um dos dois seres sexuados, ao serviço a ser prestado ao outro" (LACAN, 1972-73/1985, p. 15).

Mas foi exatamente no ano anterior, em O Seminário, livro 19: ... ou pior, e referindo-se explicitamente ao transexual, que Lacan (1971-72/2012) criou o sintagma "o erro comum" do discurso sexual que confunde o órgão dito "macho" com o significante falo. O órgão se torna instrumento de gozo e o falo, seu significado. "Nessas condições, para ter acesso ao outro sexo, realmente é preciso pagar o preço, o da pequena diferença, que passa enganosamente para o real por intermédio do órgão, justamente no que ele deixa de ser tomado como tal e, ao mesmo tempo, revela o que significa ser órgão" (LACAN, 1971-72/2012, p. 17). Para Lacan, a paixão do transexual "é a loucura de querer livrar-se desse erro, querer forçar pela cirurgia o discurso sexual" (Ibid.). É o caso de João W. Nery que veremos a seguir.

 

A viagem de um trans-homem

O livro de João W. Nery (2011), Viagem solitária – Memórias de um transexual trinta anos depois, inscreve-se dentro da observação de Millot, acima referida, de um ato de escrita que objetiva elaborar a interrogação do sujeito sobre o seu próprio sexo e sobre a distinção simbólica homem/mulher. Primeiro caso de trans-homem de que se teve notícia no Brasil, seu testemunho veio a público em 1984, com a publicação do livro Erro de pessoa, primeira versão reduzida de Viagem solitária.

Por meio de uma certa identificação com o autor do livro, Millos Kaiser escreve na Introdução de Viagem solitária que "João não nasceu mulher e quis virar homem. Nada disso. João nasceu homem, mas preso num corpo de mulher". Ora, este é justamente o enunciado mais frequentemente escutado por quem se dispõe a escutar os sujeitos que se autodesignam transexuais: o corpo é de um sexo e a alma ou temperamento é de outro.

Contudo, no "Prefácio" à primeira versão do livro, Antonio Houaiss recomenda-o enfaticamente, como

[...] um livro imprescindível para todos os que queiram ver melhor o espanto que é o ser humano: a dimensão e a importância do componente sexual como fonte da identidade individual e social são aqui penetradas com a vitalidade de uma vida vivida [...] e o que daí emerge é um real mais forte do que o captado pela ciência e um romance mais pungente que as ficções romanescas [...] provando que o literário (quando irrecorrível) é a própria forma autêntica de dizer o humano: é de tal poder que faz deste livro algo que não é lícito ignorar.

A crermos na assertiva de que uma obra de arte só existe para um outro e por um outro e, consequentemente, de que um livro, qualquer que seja, só se completa no leitor, diremos que João nos quer seus cúmplices e parceiros, de uma vida bem difícil, é claro, mas também do feliz encontro entre o seu desejo decidido e o saber fazer do cirurgião. No tempo que antecede a cirurgia, o sujeito experimentava

Uma dor lancinante, com minha alma alheia ao corpo que vestia. Oprimida por ser sempre a sombra de um vulto que ninguém via [...] Carregava um infecundo viver de esquivas. A sátira pungente de me sentir um homem eunuco, sem a permissão da deformação! (NERY, 2011, p. 73).

"A relação sexual era o ponto mais doloroso", prossegue João, que só obtinha prazer após o "coito perceptivo", neologismo que criou e que definiu como a segurança de que a parceira o percebia "como um homem e estava atraída mais pelo que sentia do que pelo que via no meu corpo" (Ibid., p. 127), pois "viver dois gêneros numa só vida era enlouquecedor" (Ibid., p. 129). João afirmava não conhecer ninguém igual a ele. "Não era hetero, não era homo, era trans. Mas o que é ser trans? Eu não sabia ... eu só era diferente. Precisava me reinventar" (Ibid., p. 204).

Nery prossegue a narrativa de sua vida, passando não apenas pelas cirurgias, mas também por vários amores, encontros e desencontros, e pela alegria da paternidade adotiva de um menino, gerado por uma das mulheres que amou. São descritas diferentes questões com diferentes mulheres, muitos conflitos com parentes, pais, irmãs, cunhados... e o envelhecimento, que é assim narrado:

Há tempos que o peso dos anos me fazia sentir novas barreiras físicas, como se um estranho se apossasse de mim lentamente. Agora, a crise de identidade era diferente, não msais a de gênero, mas aquela que todos temem com a idade, ao constatar a dificuldade do possível fascínio sobre o outro. A face enrugou, os pneus surgiram, os pelos caíram, o pênis não veio.

Hospitaleiro, ele decide promover em sua casa um encontro de transgêneros de diferentes cidades do Brasil, hospeda-os em um longo fim de semana de troca de vivências, e espanta-se ao tomar conhecimento de trans-homens que engravidaram. Então conclui: "Percebi então que, embora fôssemos todos trans, éramos bem diferentes".

O que restou para nós da leitura deste livro do qual emerge, como bem assinalou Houaiss, um real muito forte, o testemunho de um sujeito que, depois de viver situações das quais o mínimo que podemos dizer é que são situações raras, é capaz de surpreender-se e, por isso, intitular um capítulo de "O homem grávido". Um sujeito que conclui pela existência da força da singularidade acima de qualquer afinidade ou semelhança.

 

Algumas respostas da psicanálise

Escrevi há alguns anos um texto intitulado "Não há transexual fora do discurso da ciência",5 no qual sustentei que, embora o enunciado que assevera a discordância entre um corpo e uma alma não tenha esperado o advento da psicanálise para se fazer ouvir, concordo com a conclusão de Millot (1983) de que a ênfase midiática que a transexualidade vem adquirindo em nossos dias permite que a consideremos um sintoma da contemporaneidade, uma das formas mais recentes do mal-estar na civilização. Sintoma de um sujeito que está mal numa civilização em que o discurso da ciência dá as mãos ao discurso do capitalismo, transformando o corpo – desde sempre um objeto de gozo e de consumo – em objeto desse gozo acéfalo que enuncia: "Mude sua forma, seu tamanho, seu peso e, por que não?, sua anatomia! Não o submeta a nenhuma amarra! Invente-lhe, se for possível, novas funções".

Compete-nos, todavia, diferenciar entre o transexual que deseja se fazer operar porque seu corpo não está de acordo com o "mais íntimo sentimento de si", segundo a expressão de Stoller (1982), e o transexual que se considera provido de órgãos masculinos e femininos, ou seja, que se posiciona do lado de fora da partilha dos sexos. As pesquisas têm mostrado que, num caso, como no outro, há diferentes nuances e possíveis gradações de afeto. Ou seja, há transexuais que se satisfazem apenas com tratamentos hormonais e com o transvestimento do próprio corpo segundo o sexo com que se identificam; há sujeitos que desejam se fazer operar para que emerjam os órgãos supostamente inclusos do sexo diferente ao da genitália externa; há também aqueles que, como Schreber, admiram no espelho a transformação do próprio corpo sob a influência de um Outro gozador. Enfim...

Daniel Paul Schreber é, até hoje, paradigma dessa última variante pulsional, em que o sujeito experimenta um gozo transexual, mas não demanda nenhuma intervenção cirúrgica, porque, em seu delírio paranoico, não apenas o mundo estava povoado de "homens feitos às pressas" e reduzidos à função de "cabides", como a diferença entre os sexos se resumia na vestimenta vazia que se pendura nesses cabides. Além disso, como Deus enviava sistematicamente para o seu corpo feixes de "nervos da volúpia feminina", sua transformação em mulher, embora deferida ao infinito, seria inexorável.

Talvez nos seja possível postular, de forma simétrica, que assim como nem todo psicótico demanda intervenção cirúrgica de correção do sexo, nem todo sujeito que demanda tal intervenção é psicótico. Parecem-nos pertinentes as afirmações de que se "o transexual está convicto de que sua identidade não condiz com seu sexo anatômico [...] trata-se de uma disforia de gênero [em face da qual] o discurso da ciência opera em nome de uma conformação ortopédica da demanda" (TEIXEIRA, 2016, p. 3,4). Há, então, um gesto de contrabando, uma sutura da hiância que separa sexo e gênero ou, se preferirmos, identidade sexual e escolha de objeto.

Tanto em algumas mulheres, quanto em algumas trans-mulheres, a preocupação exacerbada com questões de estética assinala o fortalecimento do registro do imaginário, bem como a falta do significante da mulher no inconsciente. Há relatos de entrevistas com transexuais que não apresentam sintomas psicóticos manifestos; há transsexuais, alguns inclusive pais, que referem viver com sua mulher como duas mulheres; há transexuais, algumas inclusive mães, que afirmam viver com o marido como dois homens. Tais afirmações reforçam a descoberta psicanalítica da bissexualidade subjetiva originária e da inexistência de uma identidade sexual unívoca, no sentido de inquestionável e independente das identificações do eu. Não se pode negar que parece haver, em muitos casos, o desejo de apagar as marcas da diferença, na medida em que ela significa obstáculo à identificação fálica (MILLOT, 1992, p. 107).

Todavia, tampouco se pode negar a diferença da posição diante do Outro – e certamente da estrutura que resultou do encontro com a castração – de um sujeito que se diz "homem" ou "mulher", mesmo se ele lamenta, como alguns o fazem a existência de um terceiro sexo, e outro que se diz simultaneamente portador de genitália e características sexuais dos dois sexos. No primeiro caso, o sujeito está inscrito na partilha dos sexos, apesar de confundir sexo e gênero ou, como disse Lacan (1972), confundir o órgão e o significante. Parece-nos que apenas nesse segundo caso se aplicaria mais adequadamente a expressão "extrassexo".

Um psicanalista sabe que certezas subjetivas ou são fantasias inconscientes, frases fantasmáticas subjacentes aos sintomas ou são significações delirantes, mas nem sempre é fácil distinguir entre uma e outra. Distinção, no entanto, fundamental no caso de um sujeito analisante, porquanto, ao decidir o diagnóstico diferencial, decide-se simultaneamente a direção do tratamento.

 

Referências

FREUD, S. (1905). "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud – v. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1976, pp.129-237.

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__________. (1920). "Psicogênese de um caso de homossexualismo em uma mulher" In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud – v. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976, pp. 183-212.

__________. (1933[1932]). "Novas conferências introdutórias sobre psicanálise –Feminilidade" In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud – v. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1976, pp.139-165.

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Endereço para correspondência
Rua Benjamim Batista, 15 / 101
Jardim Botânico – Rio de Janeiro (RJ)
E-mail: verapollo8@gmail.com

Recebido: 15/08/2016
Aprovado: 12/09/2016

 

 

* Psicanalista. Doutora e Mestre em Psicologia pela PUC-RJ; D.E.A. pela Universidade de Paris VIII. Analista membro (AME) da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, da Internacional dos Fóruns (IF-EPFCL). Professora Titular do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida – Rio de Janeiro e da Especialização em Psicologia Clínica da PUC-RJ. Autora de Mulheres histéricas (Contra Capa Livraria, 2003) e de O medo que temos do corpo (Editora 7Letras, 2012).
1 No original Denkwürdigkeiten eines Nervenkranken, 1905.
2 Autor de inúmeras obras sobre o tema, sendo uma das primeiras intitulada Transsexualism and transvestism as psychosomatic and somatopsychic syndromes, publicada em 1954.
3 Traduzido em português como Extrassexo.
4 Que significa "castrado".
5 Que se tornou último capítulo do livro de minha autoria O medo que temos do corpo.

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