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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.33 Rio de Janeiro nov. 2016

 

PSIQUIATRIA NA ATUALIDADE

 

O transtorno bipolar, o discurso capitalista e suas implicações na clínica psicanalítica1

 

Bipolar disorder, the capitalist discourse and its implications in the psychoanalytical practice

 

 

Jamile Luz Morais*

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social (linha pesquisa "Psicanálise e Sociedade")

Endereço para correspondência

 


RESUMO

Propõe-se discutir, a partir de um breve relato clínico, as implicações do discurso capitalista na clínica psicanalítica, tomando como referência o fenômeno da proliferação de sujeitos diagnosticados com Transtorno Bipolar, de acordo com os critérios apontados pelo Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM), desenvolvido pela Associação de Psiquiatria Americana (APA). Reflete-se sobre a expansão diagnóstica da referida categoria e seus efeitos tanto no campo do social, quanto no que concerne ao sujeito do desejo visado pela psicanálise, o qual, como veremos, mantém intrínseca relação com este campo.

Palavras-chave: Transtorno bipolar, Discurso capitalista, Clínica psicanalítica, Sujeito do desejo.


ABSTRACT

It is proposed to discuss, from a brief clinical report, the implications of capitalist discourse in psychoanalytical practice, with reference to the proliferation phenomenon patients diagnosed with Bipolar Disorder, according to the criteria set forth by the Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), developed by the American Psychiatric Association (APA). It is posed a reflection upon the diagnostic expansion of the referred category and its effects both in the social field and in what concerns the subject of desire targeted by psychoanalysis, which, as we shall see, keeps and intrinsic relationship with such a field.

Keywords: Bipolar disorder, Capitalist discourse, Psychoanalytical clinic, Subject of desire.


 

 

O presente trabalho tem como objetivo discutir as implicações do fenômeno da expansão diagnóstica, no campo da psiquiatria, para a clínica psicanalítica, destacando alguns obstáculos na direção do tratamento. Para tanto, tomaremos como referência fragmentos de um caso clínico, no contexto do consultório particular, para assim apresentar como a psiquiatria moderna, aqui representada pelo Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM), acaba forjando um aparelhamento de laço social que suprime o sujeito em sua particularidade, expropriando-o, deste modo, da possibilidade de construir um saber acerca do seu próprio mal-estar. Nesse contexto, aludimos à proliferação de sujeitos que, cada vez mais, passam a ser enquadrados em algum tipo de transtorno, o qual desde o DSM-III, passou a simbolizar um significante que domina o discurso psiquiátrico moderno.

No terreno de uma diagnóstica restrita ao DSM, estamos na era dos transtornos. Tudo é transtorno! Transtornos somatoformes e dissociativos, transtorno obsessivo compulsivo (TOC), transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtornos de ansiedade generalizada (TAG), transtornos alimentares, transtornos psicóticos, pós-traumáticos, transtornos do humor e por aí vai. Com relação aos transtornos do humor, um em especial chama atenção: o transtorno bipolar (TB).

Em um artigo publicado na revista Piauí, em 2011, denominado A Epidemia da doença mental, Márcia Angell afirma que um estudo patrocinado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental entre 2001 e 2003 mostrou que um percentual surpreendente de adultos (em torno de 46%) encaixava-se nos critérios estabelecidos pelo DSM, confeccionado pela então Associação de Psiquiatria Americana (APA). Esse estudo demonstrou que a referida porcentagem de adultos foi acometida, em algum momento de suas vidas, por pelo menos uma doença mental, destacando quatro categorias. Entre essas categorias, estavam os "transtornos de ansiedade", que englobam as fobias e o estresse pós-traumático; os "transtornos de controle dos impulsos", referentes aos problemas de comportamento e de déficit de atenção/hiperatividade; os "transtornos causados pelo uso de substâncias", como o abuso de álcool e drogas, e os "transtornos de humor", como a depressão e o transtorno bipolar. Para a autora, a maioria dos pesquisados enquadrava-se em mais de um diagnóstico.

Sobre o transtorno bipolar, Darian Leader (2015, p. 7) afirma: "Se o período pós-guerra foi chamado de 'a era da ansiedade', e as décadas de 1980 e 1990 de 'a era dos antidepressivos', vivemos agora em tempos bipolares". O TB, antes aplicado a menos de 1% da população, teve um aumento drástico. Nos Estados Unidos, estima-se que quase 25% dos norte-americanos sofram de algum tipo de bipolaridade. O resultado disso é um aumento progressivo da prescrição de estabilizadores de humor, tanto para adultos como para crianças, que também já estão entrando no rol dos bipolares: "As receitas para crianças aumentaram 400% desde meados dos anos 1990, enquanto diagnósticos globais tiveram alta de 4.000%" (LEADER, 2015, p. 7).

Na era do significante transtorno, ambiciona-se que o TB, de alguma forma, remeta à então Psicose maníaco-depressiva (PMD), proposta pelo psiquiatra alemão Emil Kreapelin. No DSM-V, pretende-se que a PMD esteja alocada na categoria Transtorno bipolar, especificamente no TB tipo I, representando justamente a concepção moderna kraepeliniana. O TB tipo I, de acordo com o manual, diferencia-se do transtorno depressivo maior pela presença de episódios maníacos, os quais não precisam, obrigatoriamente, ser acompanhados de critérios para sintomas psicóticos.

Conforme o DSM-V, o TB manifesta-se de várias formas, considerando sua gravidade. Neste contexto, vale ressaltar que o conceito de hipomania também foi crucial para o atual entendimento do transtorno, na medida em que o sujeito não precisa manifestar sintomas da mania clássica para ser diagnosticado como bipolar.

No mesmo caminho da racionalidade diagnóstica do DSM, destaca-se a existência de um movimento dentro da psiquiatria, liderado especialmente pelo psiquiatra americano Hagop Akiskal, de expansão do diagnóstico de bipolaridade. Este movimento defende o pressuposto segundo o qual o TB é concebido ao longo de um espectro de sintomas, que varia ao longo de um continuum, a considerar principalmente o aspecto quantitativo e epidemiológico, em vez de uma abordagem categórica. Neste sentido, a noção de hipomania ganha destaque, principalmente, porque, vista como uma mania "controlável", mais sujeitos podem cair na régua do espectro bipolar.

Alcântara e outros (2003) localizam que o aumento da prevalência do TB seja consequência de uma mudança de abordagem dentro da própria psiquiatria e encontram na noção de espectro tal mudança. Salientam que a introdução desta noção baseia-se na perspectiva dimensional, a qual concebe a doença mental como uma disfunção única, expressando-se de maneira variada, a depender da gravidade. A própria expressão spectrum, usada pelos psiquiatras para definir uma disfunção única do transtorno, traduz a metáfora do fenômeno físico de decomposição da luz que, ao passar por um prisma, assume cores diversificadas (MATOS; MATOS; MATOS, 2005).

Nessa linha de pensamento, a antiga psicose maníaco-depressiva de Kraepelin se colore, não podendo mais acontecer de forma categórica: "ou preto, ou branco". Decerto, considerando ou não a ideia do espectro, não se trata mais de saber se é ou não é, tendo em vista que a facilidade de ser diagnosticado como bipolar hoje é bem maior do que na época de Kraepelin, quando, categoricamente, ou se era psicótico maníaco-depressivo ou não se era. Esta transformação na abordagem para definir o TB, por sua vez, faz com que a prevalência do transtorno aumente de 1% para 5% na população geral. Além disso, verifica-se a predominância da prescrição dos estabilizadores de humor em detrimento da prescrição de antidepressivos, entre outros fármacos (ALCÂNTARA et al, 2003).

Atualmente, fala-se em temperamento bipolar para se referir ao sujeito que possui um temperamento forte. Muito em breve, poucos escaparão de ser enquadrados como tendo alguma forma de transtorno bipolar. No senso comum, o adjetivo "bipolar" parece "cair como uma luva" na linguagem popular, servindo geralmente de adjetivo pessoal. Sobre isso, Bogochvol (2014) salienta que o adjetivo bipolar entrou na série dos significantes da moda e a sua vulgarização acabou estabelecendo uma concepção de homem sobre si mesmo, figurando como um modo privilegiado de nomear seu mal-estar na civilização. Diante disso, cabe interrogar: estaríamos, portanto, diante de uma sociedade de "sujeitos bipolares"? E mais: de que maneira esta suposta proliferação ocasiona implicações na clínica psicanalítica?

Ora, não podemos esquecer o quanto a clínica não pode ser vista separada do social, ou seja, o quanto existe entre esses dois campos uma continuidade moebiana de tal modo que é impossível delimitar o que é interno e externo ao sujeito. Como ressaltou Freud (1921/1996) em Psicologia de grupo e análise do Ego, toda psicologia social é também individual, porque nenhum sujeito se constitui sozinho, mas sim se apoiando em uma estrutura social, estando, portanto, assujeitado a ela. Ao entender que o sujeito estrutura-se no campo do Outro social, compreendemos o sujeito como trans-histórico e, portanto, não somos partidários da ideia de que nos deparamos na contemporaneidade com um "novo sujeito", mas sim que, uma vez se estruturando no campo do Outro da linguagem, ele está submetido às mudanças deste campo que, por conseguinte, obedecem um determinado enquadramento de laço social (ASKOFARÉ, 2009). Dessa maneira, podemos dizer que existe uma conexão entre o aspecto estrutural do sujeito e a dimensão histórica onde ele se encontra inserido e, nesta medida, falamos, novamente, de uma relação moebiana entre o sujeito e Outro do discurso, de tal maneira que o sujeito que nos chega à clínica não pode ser concebido senão articulado à estrutura social.

No cenário atual, governado pelo discurso capitalista, convém nos debruçarmos e pensarmos nos efeitos que este tem sobre o sujeito que chega a nossos consultórios, dado que a psicanálise em intensão possui estreita relação com a psicanálise em extensão. Como se falou anteriormente, o sujeito não está separado da dimensão do social, e por isso concordamos com Soler (2011) quando afirma que a psicanálise "não se limita, como normalmente se acredita, a ocupar-se dos indivíduos somente um a um" (Ibid., p. 57), ou seja, na intensão mesma da psicanálise, mas também com o que acontece ao redor dela. Sob este prisma, veremos, a partir de uma breve vinheta clínica, como os dois campos estão relacionados, analisando como a dimensão do social acarreta efeitos no sujeito do desejo e, assim, na clínica psicanalítica. Assistiremos, por um momento, a identificação do sujeito ao significante mestre universal tomado do campo do Outro, a saber: o significante "bipolar".

 

Um breve relato

Melissa chega ao atendimento dizendo que era, em suas palavras, portadora de transtorno bipolar, mostrando-me a receita prescrita pelo seu psiquiatra. O então profissional tinha receitado o medicamento Escitalopram, conhecido comercialmente como Lexapro, antidepressivo que, segundo o médico, também era receitado nos casos de pacientes que apresentassem sintomas que aplacavam o complexo do espectro bipolar. Pronto! A informação repassada pelo psiquiatra parecia ter sido suficiente para que Melissa se identificasse ao significante "bipolar". Curiosamente, Melissa disse que antes da consulta psiquiátrica já desconfiava que fosse receber tal diagnóstico, pois vira uma reportagem em um noticiário televisivo mostrando que um dos indicativos de bipolaridade dizia respeito a pessoas que compravam demais e se mostravam compulsivas por compras. Melissa disse: "estou atolada em dívidas, estou devendo ao banco um valor que não gosto nem de pronunciar". Entretanto, apesar de aparentemente estar convencida do referido diagnóstico, disse que ainda não havia comprado o medicamento, dizendo que estava "receosa", pois pesquisara sobre o medicamento na internet e estava com medo de ter efeitos colaterais indesejáveis.

A questão que se colocou desde então para Melissa não era necessariamente tomar ou não tomar o medicamento prescrito, mas sim saber se era ou não "bipolar". Na primeira sessão, interrogou-se, dirigindo a pergunta à analista: "Será mesmo que sou bipolar?". Disse-lhe, então: "Fazer essa questão pode ser um bom começo". A partir daí, Melissa começou a descrever os sintomas que, às vezes, a levavam pensar sobre isso: "Sabe, além das compras e das dívidas, sou muito ansiosa, faz semanas que não consigo dormir direito, tenho me irritado com facilidade e minha convivência com outros tem se tornado quase impossível. Não gosto quando sou contrariada. Têm dias que não quero fazer nada, mas têm outros que eu saio e, se depender de mim, fico mais de um dia fora de casa, na balada".

Melissa tinha 38 anos, nunca casara e nem tivera filhos, morava com a mãe, viúva, e era filha única. Trabalhava em um banco e dizia ganhar bem, mas não o suficiente para pagar suas dívidas. Em suas palavras: "Olha que ironia, trabalho com dinheiro, mas não consigo administrar meu próprio dinheiro, não consigo dar conta da minha vida". Teve vários namorados, mas até o momento não conseguira sustentar nenhum relacionamento ao ponto de casar. Falou de um último namorado, o qual, segundo ela, "era pra casar", porém, disse ter conseguido afastá-lo dela. Quando ele terminou o relacionamento, Melissa caiu em um estado depressivo. Ficou profundamente triste, sentindo-se fracassada, desmotivada para ir ao trabalho, começando a faltar bastante, ora porque era levada pela preguiça, ora porque começara a sair à noite e chegar muito tarde. "Não posso perder meu emprego, preciso dele e gosto de trabalhar no banco, gosto do dinamismo desse ambiente, mas agora parece que não gosto mais de nada". Este fato, segundo ela, foi o que mais motivou para que procurasse ajuda.

Depois desse breve relato, cabe perguntar: como a psicanálise se posiciona diante de uma situação como essa, em que o sujeito chega, decerto, identificado a um significante, neste caso, ao significante bipolar? Interrogar-nos sobre isso convoca-nos a pensar sobre como se dá o diagnóstico em psicanálise, considerando a particularidade de cada sujeito que aparece em nossos consultórios.

Em primeiro lugar, vale ressaltar que a nosografia psicanalítica vai na contramão da atual nosografia dos manuais psiquiátricos. Em vez de se comprometer com uma abordagem meramente descritiva, massificadora e ateórica, a psicanálise realiza seu diagnóstico de forma estrutural, considerando a realidade psíquica de cada sujeito, sob transferência, a partir da fala dirigida ao analista. Para a psicanálise, o importante é o que o sujeito tem a dizer sobre o sintoma de que se queixa, independentemente se ele chega com um diagnóstico médico determinado. Não importa se o sujeito já vem nomeado. Isso, para a psicanálise, não entra em questão, na medida em que é ele mesmo, com sua fala dirigida ao analista em transferência, quem vai construir um saber sobre o seu sintoma, saber este que nos leva à Outra cena, a uma realidade própria ao inconsciente. Nessa direção, podemos dizer que é por meio do discurso do sujeito que se pode identificar o lugar que ele ocupa no campo do Outro, estruturado por uma linguagem e lógica próprias.

Para Lacan, seguindo Freud, o sintoma reflete o mal-estar do sujeito em ser alienado pela linguagem, pelo discurso social compartilhado a que está submetido. Ao se alienar na linguagem, o sujeito é lançado em um malogro, estando condenado a "ex-sistir", porque uma vez imerso neste universo, ele também se vê castrado em tudo dizer e representar, inclusive a si mesmo.

A entrada no universo da linguagem castra este sujeito, porque no momento em que se torna falante, um falasser, ele deixa para trás a possibilidade de se obter uma satisfação pulsional plena. Esta alienação à linguagem impõe uma falta ao sujeito que, a partir de então, só poderá satisfazer-se parcialmente. Neste sentido, entrar na linguagem implica perder gozo, separar-se de uma parte do seu corpo. Esta perda produz um resto, o objeto a, objeto para sempre perdido, cujo acesso direto torna-se impossível: o sujeito só será capaz de ter algum acesso a ele, indiretamente, pela via dos significantes e da pulsão, meios pelos quais pode recuperar uma parcela de gozo perdido na castração.

É por meio da castração operada pela imersão na linguagem e separação do objeto que o sujeito passa a ser desejante. Estruturado no campo do Outro, o sujeito se ampara em um modo particular de se obter satisfação com este objeto, ou seja, opera-se uma modalidade de gozo própria deste sujeito. A partir disso, realiza-se um diagnóstico estrutural com a finalidade de dirigir o tratamento analítico. Em psicanálise, fala-se somente em três estruturas ou tipos clínicos, propostos por Lacan em sua releitura a Freud, a saber: neurose (histérica, obsessiva ou fóbica) psicose e perversão.

Melissa não era nem psicótica, nem perversa. Tratava-se de uma estrutura neurótica histérica. Depois de muitos relacionamentos fracassados, Melissa passou a se perguntar por que era tão difícil para ela sustentar uma relação duradoura e o motivo pelo qual ainda não fora morar sozinha, afinal, tinha condições para isso, corrigindo-se em seguida, dizendo: "quer dizer, se não me endividasse tanto, teria condições. Parece que eu acabo criando situações para me sentir fracassada". Esse momento marca a entrada de Melissa no processo de análise, pois ser ou não bipolar não era mais questão para ela. A questão era outra: por que não conseguia se desligar da mãe e constituir uma vida separada dela?

Depois de aproximadamente um mês desde a primeira sessão, Melissa decidiu começar a tomar o medicamento, porque não queria causar sua demissão. Nesse sentido, dar início ao tratamento medicamentoso foi um ato que serviu não para aliená-la ainda mais em seus sintomas, mas sim para ajudá-la, inicialmente, a realizar atividades cotidianas que até então eram um sacrifício para ela. Dizia: "Não me importo mais em saber se sou X, Y ou Z, quero ficar bem. Tomar remédio ou não tomar não diz nada sobre mim". Melissa responsabilizou-se por este ato, que lhe implicava renúncias, mas sabia que, pelo menos por um tempo, precisava sustentá-lo. Isso, por outro lado, não impediu que Melissa continuasse a trabalhar em análise. Falou que seu pai sempre vivera atolado em dívidas e que era a sua mãe que, no final, "segurava as pontas da casa". De fato, era sua mãe que ainda pagava sozinha as contas da casa. Apesar de nunca ter sido cobrada por sua mãe a ajudar nas despesas, Melissa nunca tinha parado para pensar que poderia ajudá-la mesmo assim. Falava: "afinal, não sou mais criança. Sou uma mulher, trabalho, ganho meu dinheiro e posso me organizar".

Sua identificação com um traço do pai, somada à parceria de gozo com a mãe, impedia que Melissa pudesse se posicionar no lugar de mulher para um homem, permanecendo no lugar daquela filha "bancada" pela mãe e que, no entanto, não conseguia sustentar seu desejo. Identificar-se com o significante "bipolar", por um momento, fechou as portas para a construção de um saber inconsciente. No entanto, por outro lado, permitiu, mesmo que pela via do saber psiquiátrico, uma possibilidade de sair desse lugar, na medida em que colocou em xeque, no processo analítico, o diagnóstico que até então havia recebido. Verificou-se, nesse sentido, um deslizamento de significantes. Antes fixada ao significante "bipolar", Melissa, ao construir um enigma sobre o diagnóstico que recebera, passou a dar outros sentidos aos seus sintomas, os quais estavam "emparedados", engessados aos significantes do Outro. Construir um enigma sobre isso provocou um furo no discurso vindo do Outro universal, fato que promoveu um giro discursivo no processo analítico, por meio da histericização do discurso.

Sob este prisma, podemos afirmar que estabelecer um diagnóstico em psicanálise é um ato que abre portas ao sujeito, no sentido de que possibilita tocar no ponto de sua singularidade, nos modos de satisfação pulsional que ele escolheu para lidar com a impossibilidade da linguagem de tudo recobrir, bem como no fato de que nem tudo ele pode ter. Em outras palavras, embora a psicanálise parta de um caráter universal de estrutura para fazer o diagnóstico de um determinado sujeito (seja de neurose, psicose ou perversão), no final, é a particularidade do sujeito diante de sua estrutura que importa, ou seja, o que será resgatado é justamente aquilo que o marca como desejante. A realidade psíquica é singular e só pode ser construída em análise. Mesmo quando o analista se veja com dois pacientes histéricos, por exemplo, ele será um analista diferente com cada um deles, a considerar que a realidade psíquica é particular, pois envolve sujeitos diferentes e histórias distintas, as quais só poderão ser construídas em análise.

 

O discurso capitalista e o sujeito expropriado do saber

Na conferência O lugar da psicanálise na medicina, Lacan (1966/2001) denominou de falha "epistemo-somática" a separação entre o corpo (pulsão) e o sujeito (desejo), promovida pelo discurso médico-científico, o qual, conectado ao capital, agencia um aparelhamento de gozo capaz de deixar este sujeito ignorante com relação à sua história subjetiva e inconsciente. Uma vez cindido do saber inconsciente que o constituiu como sujeito do desejo, o sujeito fica alienado a um saber que pretende ser totalitário e sem furos, sustentado pela ideia de que pode aparar todas as suas arestas e imperfeições, mascarando uma contradição que lhe é própria, oferecendo diagnósticos e remédios que, supostamente, dariam conta de suprimir o seu malestar fundamental, o qual, sabemos, é impossível eliminar.

Prates Pacheco (2009) afirma que "com a aliança cada vez mais forte entre a ciência e o capitalismo, o corpo passou a ocupar um lugar central" (p. 240), localizando a biologia no topo da hierarquia científica. Da mesma maneira, ao discorrer acerca dos efeitos do discurso da ciência sobre o sujeito, Alberti (2008) salienta que a perpetuação da noção de um indivíduo cerebral, determinado plenamente por reações neurais e cerebrais, leva-nos "a crer que é o cérebro que produz o que há de mais genuíno, independentemente do corpo e do sujeito enquanto efeito de linguagem" (pp. 153-154). Sobre esse aspecto, aponta Quinet (2006) que o entendimento de um sujeito neuronal, marcado por condições neuroquímicas e biológicas, especialmente no campo da psiquiatria, traz consigo não só a produção de psicofármacos cada vez mais variados, mas também de categorias diagnósticas que os justifiquem.

Verifica-se, desse modo, uma ciência médica em parceria perfeita com o capital, que se apropria do conhecimento produzido por ela para agenciar um enquadramento de laço social onde o sujeito do desejo é achatado em sua particularidade. Ao receber um diagnóstico qualquer e se identificar com ele, o sujeito permite que um conhecimento pretensamente científico se sobreponha ao saber que o constitui como um sujeito do desejo. A consequência disso é a negligência do sujeito com relação à sua própria história. Ao classificar o sofrimento do sujeito, o discurso científico produz generalizações, massifica e objetiva o que é mais subjetivo. Ora, para este discurso pseudocientífico e totalitário não importa se o sujeito tem um nome ou algo a dizer sobre o sintoma que sofre. O importante é que ele tem uma patologia que precisa ser tratada e eliminada. Ansioso, depressivo, hiperativo, doente psicossomático, bipolar, não importa o diagnóstico que ele receba do Outro dominante do discurso, o relevante é que sempre existirá uma tecnologia que vai nomear e tratar esse sujeito.

Acontece que apesar do efeito de objetivação do sujeito pelo discurso pseudocientífico, algo desse sujeito sempre escapa, na medida em que ele é irredutível a qualquer forma de massificação e normatização mediana, que intenta equivaler à normalização. Um nome, um diagnóstico não dá conta do que ele tem de estrutural: ser desejante, faltante e só aparecer nas hiâncias do discurso.

Para a psiquiatria moderna, o diagnóstico é normativo e se pauta em uma generalização que parte mais da fisiologia propriamente dita (das disfunções neuronais), do que do pathos que o sujeito carrega. Por causa disso, muito da clínica psiquiátrica se perde por nem sempre escutar aquilo que o sujeito tem a dizer. Trata-se de um diagnóstico que tende a fechar possibilidades ao sujeito, colocando-o em um conjunto de classe, apenas generalizando-o a partir do que é manifestamente visível, em vez de singularizá-lo.

O DSM eliminou as psicopatologias a favor de uma linguagem universal, que não suporta diferenças e que mais facilmente pode captar possíveis consumidores. O DSM é um manual estritamente diagnóstico, mas não de psiquiatria, como salienta Quinet (2006):

Temos que recordar que o DSM e o CID são manuais diagnósticos e não de psiquiatria. Como dizia René Olivier-Martin, referindo-se ao DSM-III, "observemos que de modo algum é um manual de psiquiatria, que só pretende ser manual de auxílio para o diagnóstico, útil ao prático em suas orientações terapêuticas, para avaliar comparativamente a eficácia das terapêuticas e fazer uma coletânea estatística" (QUINET, 2006, p. 12).

Em concordância com Quinet, Miller e Milner (2006) assinalam que a atitude ateórica e utilitarista dos manuais diagnósticos faz semblante de ser científico, mas que, na verdade, estruturam seu discurso um uma pseudociência, mascarada por dados estatísticos. Ser científico significa ser eficaz, resolver problemas o mais rápido possível (afinal, tempo é dinheiro!). É nesse lema que o DSM, no compasso da Classificação Internacional de Doenças (a CID) se sustenta. Por este viés, o discurso da ciência deve ser distinguido de uma finalidade cientificista. Como falamos ainda há pouco, falar de discurso da ciência na época da psiquiatria clássica tem todo o fundamento. Agora, falamos de uma finalidade cientificista, de uma ideologia do capital que agencia diagnósticos e intensifica o caráter operacional dos manuais que pretendem ser psiquiátricos.

É justamente nesta ideologia científica de estrutura que pretende totalitária e sem furos que o discurso capitalista se apropria para angariar mais sujeitos para o mercado, ofertando cada vez mais objetos (gadgets) ilusoriamente capazes de dar conta plenamente do que é irredutível do sujeito: a pulsão. Nesta direção, ofertar diagnósticos, incitar que é sempre necessário gozar mais e mais, é uma tarefa a que o discurso capitalista se propõe, objetivando uma alienação progressiva do sujeito ao ponto de ele não mais se perguntar e se questionar sobre o seu mal-estar. É dessa visada totalitária que o sujeito fica, muitas vezes, fechado a um discurso que vem do Outro do social. Separar-se dos significantes universais advindos do campo do Outro pode ser um dos efeitos provocados pelo discurso do analista que, desde sempre, parte do pressuposto de uma impossibilidade da relação sexual, de que nem tudo é possível, mas que nem por isso o sujeito estará fadado à infelicidade profunda. Sobre o discurso capitalista, pontua Pacheco Filho (2015):

No avesso do discurso do analista, orientado pela experiência do impossível (experiência do inconsciente e do núcleo do real), nosso sujeito mergulhado no discurso capitalista é aquele que nada quer saber da experiência do impossível. Com seu desejo governado-ordenado-causado pelos objetos/mercadorias – pelas latusas cuja construção é viabilizada pela ciência –, ele é aquele para quem não existe nem real nem o inconsciente; aquele que 'não quer saber disso'; aquele que constrói ao redor disso a barreira de sua paixão da ignorância: 'um potente Napoleão' que tapa seus ouvidos e fecha os olhos (PACHECO FILHO, 2015, p. 37).

De fato, o discurso capitalista se aproveita da paixão da ignorância do sujeito de "não querer saber nada disso" para ofertar objetos-mercadorias, deixando-o cada vez mais distante de se deparar com um saber furado do Outro, mas que, mesmo assim, diz mais sobre ele do que um diagnóstico vindo do discurso pretensamente médico e pseudocientífico. Melissa, quando pôde criar um enigma acerca do significante que até então a tinha engessado em um determinado lugar, foi capaz de construir um saber sobre uma certa modalidade de gozo sua, particular, ancorada em sua história de vida, pertencente a ela e a mais ninguém.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Avenida Francisco Matarazzo, no 43, apto. 95
CEP 05001-000 – Água Branca – São Paulo (SP)
E-mail: jamile.luz.morais@gmail.com

Recebido: 23/08/2016
Aprovado: 12/09/2016

 

 

* Psicóloga e Psicanalista. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Atualmente, doutoranda no Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social (linha pesquisa "Psicanálise e Sociedade") na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
1 Parte deste artigo refere-se a um recorte da pesquisa de doutorado em desenvolvimento no Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), no núcleo de Pesquisa "Psicanálise e Sociedade".

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