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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.33 Rio de Janeiro nov. 2016

 

ESPAÇO ESCOLA

 

Dos confins de uma análise

 

From the confines of an analysis

 

 

Vera Iaconelli*

Forum do Campo Lacaniano São Paulo
Analista de Escola
Instituto de Psicanálise, Perinatalidade e Parentalidade Gerar

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto trata do percurso de uma análise até o momento de sua conclusão. Considera o fato de que uma decepção é necessária no processo que leva dos infindáveis ditos à sustentação de um dizer como ato, incontornável, condição do falasser. Do acontecimento contingencial de uma análise, enquanto atravessamento de seu confim em direção ao fim, emerge um outro ato que aponta para a transmissão e para o laço. Desta aposta surge o desejo de testemunhar o passe perante a Escola. Aposta cujos efeitos, como de todo ato, só se fará confirmar no só depois.

Palavras-chave: Final de análise, Passe, Analista de escola, Nomeação.


ABSTRACT

The text explores the course of an analysis up to its conclusion. It considers the fact that a disappointment is required in the process, which takes from the endless sayings to the support of a "say" as an act, uncontrolled, condition of the parlêtre. From the contingent event of an analysis, while crossing its confine toward the end, another act emerges and it points to the transmission and to the bond. From this bet comes the desire to witness the pass before the School. A bet whose effects, as any act, will be confirmed only in the afterwards.

Keywords: Final of analysis, Pass, School analyst, Appointment.


 

 

A primeira formulação de meu sofrimento me levou a iniciar uma "análise" que se mostrou desastrosa. Foi aos 17 anos, três anos após a morte trágica de meu irmão mais velho, peça-chave em minha história. Levaria mais alguns anos, de fato dezesseis, para que passasse de uma sequência de psicoterapias (junguiana, psicodramática, reichiana...) para uma análise, passagem que se deu em virtude do nascimento da minha primeira filha. A partir daí, já com 33 anos, seguiram-se sete anos de análise com um excelente profissional winnicottiano. Nestas quase duas décadas e meia, entre psicoterapia e psicanálise, eu contava com uma coisa: que a análise fosse interminável, que eu seguiria dizendo e dizendo, sobre esta morte, sobre meu pai e mais "algumas coisinhas sobre minha mãe", homônima a mim, Vera Iaconelli como eu. Dizendo de forma cada vez mais elaborada, mais acurada, mais inteligente e, claro, sofrida.

O fim da análise não era uma questão assumida como tal, embora a questão dos fins, tanto o fim dado pela morte, quanto a finalidade de uma análise, sempre estivessem lá.

Passei por um divórcio muito sofrido, minha segunda filha tinha apenas nove meses. Considero esse um dos efeitos da minha neurose. E seguia dizendo em análise de forma cada vez mais elaborada, mais acurada, mais inteligente e sofrida.

Ainda levaria muitos anos, para eu ler em Televisão: "O bom senso representa a sugestão, a comédia, o riso. Quer dizer que isto basta, além do fato de serem pouco compatíveis? É aí que a psicoterapia, qualquer que seja, estanca, não que ela não faça algum bem, mas ela conduz ao pior" (LACAN, 1973/1993, p. 21).

No entanto, devo ter melhorado, pois "apenas" um quarto de século depois, começo a me cansar de dizer inúmeras versões sobre os ocorridos de minha vida.

Duas vezes por semana, 50 minutos, entra ano, sai ano, um dia escuto de meu analista: "Winnicott levava um baile das histéricas". Acho que ele também estava cansado de nossa patinação. Eu disse a vocês que ele é um excelente analista e não estava sendo irônica.

Tendo escutado a fala de meu analista, formulo outra aposta analítica: passar da escola inglesa para a lacaniana. Medo e, claro, frisson inconfesso de imaginar "o corte" da sessão, de um fim inesperado. Uma grande amiga me indica uma analista francesa. Duplo frisson, o estrangeiro. O Fórum, o movimento lacaniano, o "quem é quem" institucional não faziam parte da minha vida. Tripla estrangeirice. Detalhe: meu nome em francês soa Verra. Recuperarei este "detalhe" depois.

As entrevistas em análise lacaniana dão uma amostra nada grátis do que se trata esta opção. O dizer sem fim, ou seja, sem se escutar, começa a ser desmascarado logo de cara. Que se diga não fica esquecido por trás do que se diz no que se ouve, pelo menos não pelo analista.

Então, vamos a uma versão de minha história:

Meu pai era alcoolista e um tanto louco, e minha mãe submetida a ele. Eram apaixonados, humildes, mas com o tempo construíram um grande patrimônio. Depois de alguns anos de casados e com três filhos, tentando recuperar um casamento já abalado, tiveram mais três filhos temporãos, seis no total.

Claro que esses nascimentos não ajudaram a questão do alcoolismo, da violência, e a família dostoievskiana mostrava todo seu espectro de horrores. Fui a quinta filha deste casal sofrido e desajustado. Mas havia meu irmão mais velho, dócil e presente. Nós o adorávamos. Quando eu tinha 13 anos, ele sofreu um infarto e morreu, tendo apenas 24 anos na ocasião. Minha mãe e meu pai colapsaram, perderam os bens, fomos morar de favor no apartamento desocupado de uma tia no centro de São Paulo. A ruptura me emancipou precocemente. Aos 15 anos comecei a trabalhar, aos 17 podia pagar minha "análise". A interminável. A família chafurdava num trabalho de luto impossível. A tragédia contingente veio se alocar num drama familiar que a precedia e que transformava o luto em melancolia. A busca por tratamento vinha da esperança de dizer para sempre sobre estes irmãos, sobre este pai e "algumas coisinhas sobre minha mãe".

Mas havia a possibilidade de perder a esperança. Possibilidade sem a qual não estaria aqui hoje. Há uma decepção necessária, há uma desesperança necessária, pois não há o que esperar.

Desta busca que se inicia num luto impossível emergem alguns pontos centrais de giro nesta análise, que não haviam sido possíveis até então. Elenco alguns, entre outros, por entender que foram momentos cruciais. Vamos a eles:

A primeira memória que conta de mim é referida ao reconhecimento da existência de minha irmã, dezoito meses mais nova, como rival absoluto. Trata-se de uma cena construída em análise, na qual dou-me conta de que ela já sabia escrever o próprio nome, antes de sermos formalmente alfabetizadas. O mesmo momento é de reconhecimento de que antes disso, eu habitava a mãe-nuvem. Uma entidade com quem compartilhava algo de não existir completamente, ainda, de completadamente não existir. Desta luta de vida e morte, enquanto alienação e separação, formularam-se como sintomas: uma dificuldade excruciante de aprender a ler, a impossibilidade de decorar palavras e usá-las corretamente, a convicção na minha absoluta falta de inteligência, momentos de ausência, isolamento, medo constante, crises de angústia. Por sorte, não eram os tempos dos diagnósticos fáceis de dislexia ou déficit de atenção. Porém, tampouco eram os da escuta do sintoma como forma de subjetivação.

Supus dar conta do desejo de meu pai e de meu tio, irmãos rivais, ora errando, ora aprendendo. Demorou para que me desse conta de que supunha, acima de tudo, saber o desejo do Outro. E ainda, de supor o Outro. Enquanto pulava para alcançar a linha do olhar destes homens com meus feitos e defeitos, não admitia que olhavam alhures. Bela decepção, quando pude reconhecê-la. O Outro é enigma, pois não existe, e não poderia, portanto, saber de si mesmo. Tampouco minhas ações poderiam dar conta do que emerge do inconsciente, trabalhador incansável em sua produção de efeitos.

Não acredito na minha histérica, é uma frase que ouvi sair da minha boca em análise, fruto do duro reconhecimento de que defendia sempre uma versão melhor, em busca d"A" versão, que explicaria a morte, o sexo, a mãe, a mulher. A operação fundamental que se dava nestas sessões era o corte preciso, palavra que em português conjuga as ideias de acurado e necessário. Não há lembrança de interpretações perspicazes ou retumbantes da analista, apenas um ato que apontava para o dizer, para a repetição. Que se sustente, diante de tamanho sofrimento, o vazio de sentido que a profusão de sentidos das versões busca cerzir; que se sustente em ato, desde o primeiro momento que inaugura o dispositivo analítico (e certamente desde antes, posto que advém do desejo de analista que o antecede) é crucial. Sustentação sem garantias, que implica risco considerável, mas sem o qual a espera(nça) desnecessária não cede. É neste giro ético que entendo que minha análise saiu do eixo infernal da demanda. Demanda de cerzido, que significa "disfarçar o tecido puído", cujo ideal é o cerzido invisível, aquele que não deixaria rastro do furo. Se o sentido da volta no Grafo do Desejo/Sujeito já está dado de saída, só cabe ao analista propor a mudança de direção. Apontar para o mais além do sentido enfrentando os confins da análise. Lugar de confinamento e borda que poderá ser preterido em direção ao que aponta para o real. D"A" versão passei à Aversão, por meio da subversão e por fim, passei ao reconhecimento das diversas versões. Diversões não reconhecidas como tais em 25 anos de psicoterapia.

Próximo ao fim, uma urgência não me permitia ir às sessões nos mesmos horários pré-estabelecidos. Algo se impunha e eu aparecia no consultório de minha analista a qualquer momento. Não esperava ouvir nada, mas ainda precisava testemunhar o que acontecia. Um dia, não mais precisei voltar. Saí avisando que não viria mais e dizendo thank you very much. Depois ri, por encerrar anos de análise com uma frase tão fora de contexto. Obrigada ou merci beaucoup não seria mais apropriado? Mas talvez o very me concernisse. Chego em casa e me dou conta de que deixei de pagar uma parte do dinheiro da última sessão. Nada mal para minha obsessividade. Constrangimento e riso. No fim, o último ato foi falho, como sempre o foi. Voltei para pagar o resto e compartilhar que no fim é isso que fica, ou melhor, é o Isso. Não me dei ao trabalho de interpretar este ato falho, pois se tratava justamente de assumir o que estava para além da interpretação de mais um ato falho, ou seja, mais de assumir o que advinha do ato analítico, como desejo de analista. Não nos curamos de nosso inconsciente, com sorte, o desfrutamos.

 

No só depois

Depois da queda da transferência e do fim da análise, passei por um período de grande entusiasmo, mas que desembocou num vazio tremendo. Descubro inesperadamente que não poderia me valer do entusiasmo do fim da análise, nem do fato de já trabalhar como analista, não de forma inercial. Afinal, se escolho, não poderia escolher outras coisas na minha vida, em outro lugar, com outras relações? Mandar minhas filhas viverem com o pai, morar em outro país, trabalhar com outra coisa e ter outro marido? Ou ainda, nenhum lugar, nenhum trabalho, nenhuma relação. Poderia? Em nenhum momento desse período desejei voltar para análise, não havia por que voltar e ainda por cima havia uma estranha convicção na minha desolação. Continuei pela via dos sonhos. Gravava-os de madrugada e os escutava de manhã.

Aos poucos fui escolhendo cada coisa de novo. De novo, ou seja, pela primeira vez. Fui descobrindo um entusiasmo diferente, sem garantias. Mesmo as que seriam supostamente dadas pelo fim da análise. Decepção necessária, não sem luto.

Na minha clínica houve um ponto de virada. Ainda temia assumir todas as consequências de uma mudança de escuta, que evita entender e que aponta para o real. Mas, num dado momento, dei-me conta que só poderia escutar meus pacientes se pudesse perdê-los, todos, sem exceção, pois esta é a condição. Então, que fosse. Porque a concessão em nome do "bem" aponta para o pior. O resultado de assumir este lugar, sustentando o discurso analítico foi que os pacientes passaram a vir mais vezes, e vieram muito mais pacientes. E o meu desejo de escutar para além do entendimento subverteu o caráter aversivo da minha clínica, ou seja, de versões infindáveis. Hoje há muito mais diversão, ou seja, mudança de direção, ainda que não sem sofrimento. Pois é o melhor que podemos oferecer. E esta é a aposta que me anima.

Entre os sonhos que tive, há um que me trouxe aqui hoje. Na véspera de tê-lo, conversava com uma colega durante uma aula do Fórum e ela me perguntava por que eu não era membro, ao que respondi que começara a estudar Lacan havia bem pouco tempo e que me dedicava intensamente a outra instituição, não achando possível nesse momento contribuir como membro. Naquela noite, tive o sonho a seguir:

Saio de uma aula do Fórum conversando com minha analista e buscamos uma palavra para explicar algo. Ela me diz uma palavra em alemão e eu respondo que temos uma palavra para isto em português: ERRÁTICO. Ela repete a palavra em alemão e eu insisto, im-paciente, pois é, RANDÔMICO.

Acordo curiosa e me ponho a escrever estas palavras:

ERRÁTICO à ERRAICO à ERRA IACO àVERA IACO.

ERRA meu sintoma desde a infância.

VERA IACO meu apelido para os amigos, que me diferencia de minha mãe que também se chama Vera Iaconelli.

VERRA meu nome pronunciado com o sotaque da minha analista.

VERA ERRA: motivo de vergonha fora de casa, mas de graça para meu pai, que ria de meus erros, ainda que sobre o preço de negar meu sofrimento na vida escolar e, posteriormente, na vida acadêmica.

TIO: irmão de meu pai que me incentivava fortemente a estudar e com quem meu pai tinha brigas homéricas.

Ao pensar neste sonho na ocasião, imediatamente lembro, com forte emoção, que Lacan me capturou com sua ênfase, recuperada de Freud, na relação entre ERRO e VERDADE, esta última palavra sendo o sentido do nome VERA. Daí depreendeu-se o reconhecimento do desejo de analista. De não recuar diante do erro, mas de escutá-lo, de alçá-lo à dignidade de ato. Desejo que renovo depois do período inercial do fim da análise e que o sonho vem nomear.

RANDÔMICO à de onde se pode extrair: o nome de minha analista DOMINIC, de meu primeiro irmão morto RICARDO, e de meu segundo irmão morto NIC (começo esta última análise, me referindo a este segundo luto impossível, de um irmão que morre em decorrência de uma cirurgia com 45 anos). Em uma palavra, RANDÔMICO, o "arco" que fecha os lutos, incluindo o do final de análise. Randômico também tem o sentido de errático em português. A morte é inescapável e aleatória. Não há versão possível da morte. A morte é erro verdadeiro.

Recolhi deste sonho: o nome com o qual fiz a marca da minha identificação sinthomática; o destino dado ao desejo de analista como permanente busca por escutar o erro/verdade do inconsciente e o investimento em novos laços, só possível a partir da realização dos lutos. Recolhi deste sonho também a aposta de que valia a pena tentar transmitir esta experiência. Não o fiz sozinha, uma vez que o passe, como diz Glaucia Nagem em seu prelúdio a este encontro, é telefone sem fio, jogo infantil de soprar no ouvido do outro uma mensagem e descobrir o que chega no final. Neste final, não foi sem surpresa que me dei conta de que a escola transmite algo ao A.E., quando de sua nomeação. Algo muito desafiador e que causa.

Este sonho também me colocou diante do desejo de testemunho do passe, ou seja, ao laço a que me disponho fazer no espaço da Escola e que responde ao desejo de contribuir com a transmissão. Quanto a isso, veremos.

 

Referências

LACAN, J. (1973). Televisão, Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1993.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Natingui, 314
CEP 05469-000 - Vila Madalena (SP)
Tel. (11) 30326905 / (11) 999421912
E-mail: vera.iaco@hotmail.com

Recebido: 25/08/2016
Aprovado: 12/09/2016

 

 

* Psicanalista, mestre e doutora em Psicologia pela USP, membro do Forum do Campo Lacaniano SP, Analista de Escola, Diretora do Instituto de Psicanálise, Perinatalidade e Parentalidade Gerar.

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