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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.33 Rio de Janeiro Nov. 2016

 

RESENHAS

 

Mal-estar, sofrimento e sintoma, de Christian Dunker

 

Mal estar, sofrimento e sintoma, from Christian Dunker

 

 

Mayla Di Martino*

Universidade de São Paulo. Programa de Pós-Doutorado no Instituto de Psicologia
Formações Clínicas do Campo Lacaniano-RJ

Endereço para correspondência

 

 

Uma das consequências da popularização da teoria psicanalítica pode ser justamente a perda de terreno para a... prática da psicanálise. Palavras de Freud (1912/1993), ao relatar o caso da paciente vítima da "interpretação selvagem" feita por um médico (leitor de Freud) em nome da psicanálise, mas não por meio da prática psicanalítica. Também o Brasil foi alvo de um sincretismo diagnóstico que deixou marcas permanentes: "complexo de vira-lata", "jeitinho brasileiro" e "cordialidade" são sintomas popularizados, diagnosticados por sociólogos e escritores (leitores de Freud) e aceitos como parte da nossa cultura e do nosso caráter. Se é mesmo tão difundida por aqui a tese freudiana de que a forma de vida que adotamos pode se tornar uma patologia social que afeta cada um de nós, em nossa subjetividade, por que os psicanalistas deixaram para outros a produção de diagnósticos sobre o Brasil?1

É o questionamento que Christian Dunker faz em seu livro mais recente: Mal-estar, sofrimento e sintoma: Uma psicopatologia do Brasil entre muros. Essa releitura diagnóstica do Brasil da modernidade é desconcertante em qualquer gênero: como obra de psicanálise, interroga os ditos "novos sintomas" da contemporaneidade e procura reposicionar a prática clínica em "prática social clínica"; como livro político, faz uma reconstrução da experiência psicanalítica brasileira e almeja ampliar a influência do discurso psicanalítico na pólis; como ensaio social, analisa a forma de vida no neoliberalismo à brasileira na tradição da teoria crítica e do pós-lacanismo de Slavoj Zizek. O resultado é complexo, porém, à la Zizek, Dunker dá uma colher de chá aos seus leitores e, num tour-de-force estilístico, vai alinhavando canções, livros e filmes que conhecemos tão bem às obras e autores que não conhecemos tanto assim. O "síndico" Tim Maia ganha status teórico da mesma forma que o carioca Viveiros de Castro – alguém que, se os antropólogos fossem tão populares quanto os músicos, seria o nosso Tom Jobim. E a metáfora do "encontro na mata", com a qual Viveiros de Castro chacoalhou as teses da antropologia estrutural, seria a nossa "Garota de Ipanema", que desencaminhou os ouvidos do mundo acostumando-os à dissonância de uma nova lógica musical. Mas o desconforto sobrevém, inevitavelmente, quando Dunker coloca Freud e Lacan nessa dança, ou melhor, nessa mata.

Para começar, Dunker propõe tirar a psicanálise (e os psicanalistas ) das quatro paredes dos condomínios institucionais – formados, como ele argumenta, para preservar a "pureza" da prática freudiana do sincretismo diagnóstico brasileiro. Esse último, efeito colateral da enorme disseminação da psicanálise na nossa cultura, pela porta de entrada da Semana de Arte Moderna de 1922. À maneira das ideologias políticas europeias, a psicanálise chegou ao Brasil como ideia fora do lugar, como psicanálise sem psicanalistas, incorporada por Mario de Andrade e Oswald de Andrade como fonte de reação crítica às teses positivistas. Desse caráter marginal decorreria o nosso "complexo de impostura", e nossa obsessão pela "verdadeira psicanálise e pelos verdadeiros psicanalistas" (p. 125). Outra pauta é derrubar os muros que separam as diversas escolas de psicanálise entre si. O atualíssimo conceito de "narcisismo das pequenas diferenças", que ocupa apenas uma linha em toda a obra de Freud, encontrou um desenvolvimento teórico apurado nas páginas de Dunker sobre o modo de vida condominial. Por último, Dunker aponta um caminho que pretende levar os psicanalistas do condomínio para a mata. A terceira abordagem do mal-estar na psicanálise brasileira sugere que a radicalidade das teses lacanianas sobre as fórmulas da sexuação seja incorporada ao edifício edípico da teoria freudiana, abrindo passagem, através dos muros, para a floresta ao redor, povoada por novas tribos cujo sexo (posição sexuada) pode até ser indefinido: vai depender da contingência do "encontro imprevisível na mata", conforme a inquietante revelação de Eduardo Viveiros de Castro sobre a tribo dos awaretés, localizada no alto Xingu (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). Trata-se de uma metáfora para descrever que, nesta forma de vida: a cultura é "dada", é "universal" enquanto a natureza é "construída" e muda conforme o ponto de vista – o inverso dos postulados universalistas do mundo ocidental. Fora dos limites da tribo, um awareté, toda vez que se deparar com um ser, não saberá se ele é animal ou humano, vivente ou espírito, e terá apenas uma certeza: o outro (ou outra) vê a si mesmo(a) como homem. A decisão, fugir ou lutar, casar ou devorar, tem que ser feita no ato. Tal grau de indeterminação, descrito pelo antropólogo Viveiros de Castro no "perspectivismo ameríndio", encontra ecos na teoria lacaniana, como aponta Dunker:

O animismo perspectivista contém uma concepção de reconhecimento, de linguagem e de nomeação cujo correlato no texto lacaniano talvez sejam suas observações erráticas sobre o inconsciente no Oriente, sobre o gozo das santas místicas ou a errância indeterminada do sentido em Joyce ou Lol Von Stein. Nesses povos, a função da dêixis é absolutamente idiossincrática, assim como a função social da nomeação. Sua regra parece ser a indeterminação, e a não identidade pelo semblante. Sua estrutura de circulação fálica é pensada através do encontro imprevisível na mata, não pela troca regrada entre " nós" e " eles", de mulheres e palavras (p. 316).

Se o Édipo é a moeda corrente da psicanálise, que assinala o valor do objeto, feminino ou masculino, e marca a escolha sexuada do sujeito, homem ou mulher, Dunker propõe o paradigma do "encontro na mata" como moeda paralela na economia psicanalítica. Uma convocação a (contra)balançar o totemismo, que a psicanálise absorveu da antropologia, com o animismo perspectivista, por meio do qual Viveiros de Castro provocou uma releitura das teses do próprio Lévi-Strauss. A proposta de Dunker é reformular, de forma complexa, a noção de universal em psicanálise sem cair em oposições e dualismos – nos moldes de uma lógica das relações que inclua a não relação, ou seja, que dê lugar para o não todo fálico. Apesar da sagacidade e da novidade trazidas por Lacan por meio das fórmulas da sexuação, argumenta Dunker, ainda está por se fazer a releitura da diagnóstica lacaniana, que permanece orientada por uma supervalorização das "experiências improdutivas de determinação" vis-à-vis as "experiências produtivas de indeterminação", como se elas fossem categorias excludentes, o que não são:

Um sujeito, para além da redução egológica ao indivíduo, da analítica da finitude, da limitação antropológica, das instituições disciplinares pode ser, então, redefinido como um sujeito capaz tanto de experiências produtivas de indeterminação quanto de experiências produtivas de determinação, ou seja, tanto de proceder discursivamente como um homem quanto de experimentar o gozo infinito da feminilidade (p. 318).

 

Mal-estar, sofrimento e sintoma: a "diagnóstica" psicanalítica

Unbehagen, "o estado de ser ou estar", é um conceito que já deu muito pano para manga – desde quando foi escolhido por Freud para nomear a obra em que ampliava os limites do campo psicanalítico para a análise dos fenômenos coletivos. Referia-se, naquela ocasião, à condição inerente à experiência humana, isto é, à condição de impossibilidade diante do poder supremo da natureza; da decadência inevitável dos corpos e da necessidade de estabelecer um contrato, sempre insatisfatório, para a vida em sociedade (FREUD, 1929/1993, p. 274). Das Unbehagen in der Kultur, o "Mal-estar na civilização", é, contudo, mais do que uma obra cujo título é de difícil tradução: é uma mudança no paradigma etiológico em Freud. Partindo desse argumento de Nelson da Silva Júnior (METZGER; SILVA JÚNIOR., 2010), Dunker propõe uma diagnóstica psicanalítica que seja capaz de evitar os temores de Freud acerca da psicanálise transformada em "psicanálise aplicada" ou "terapia coletiva". Como se sabe, na obra de 1930 Freud alerta que as inúmeras analogias entre a formação libidinal do indivíduo e o desenvolvimento das sociedades são de ordem teórica – e não de ordem terapêutica. Por mais correto que pudesse ser um determinado diagnóstico de "neurose social", o criador da psicanálise questionava sobre como lidar com questões relativas à prática, uma vez que "ninguém tem autoridade para impor esse tipo de terapia sobre o grupo [a sociedade]" (FREUD, 1929/1993, p. 338). Orientando-se pela complexidade da noção de mal-estar, Dunker argumenta que Freud, neste texto, estaria dando status conceitual ao próprio mal-estar e também à noção de sofrimento:

Não se trata mais de pensar apenas a formação de sintomas pelo recalcamento e o retorno da angústia como seu fracasso, mas de pensar uma dinâmica maior de fusões e defusões das pulsões, no interior das quais séries inteiras de sintomas, repetições e sofrimentos são articulados com processos culturais. Daí o esforço sintético de Freud em introduzir uma teoria que contemple os sintomas, mas também outras formas de sofrimento, sob a égide da noção de mal-estar (p. 201).

Conforme as proposições feitas em 1930, se para Freud o mal-estar é irremediável – em virtude da insatisfação inerente aos diversos contratos sociais, repressores, todos eles, de moções internas libidinais ou agressivas – pressupõe-se que todo sofrimento seja curável, em virtude da dimensão essencialmente política de todo arranjo social. Assim, o sofrimento, que tem raízes no mal-estar experimentado de forma universal e, sobretudo, coletiva, distingue-se do sintoma, que tem valência clínica e caráter singular. Difere também do próprio mal-estar (Unbehagen), que caracteriza-se pelo seu aspecto genérico e pela dificuldade de nomeação.

A distinção entre mal-estar, sofrimento e sintoma torna-se, assim, a base conceitual que permitiria aos psicanalistas analisar os fenômenos da pólis sem conspurcar a prática ou a teoria psicanalíticas. Mas é preciso estar atento às fronteiras entre os conceitos, já que "o que chamo de razão diagnóstica procura definir, a cada momento, a fronteira, o litoral e os muros que separam e unem mal-estar, sofrimento e sintoma" (p. 40). Ainda conforme Dunker, se o sintoma pede, por definição, um endereçamento ao analista, via transferência, essa pode ser relida, na análise dos fenômenos coletivos, por reconhecimento, nos moldes dos desdobramentos teóricos trazidos por Axel Honneth (2003) no campo da teoria crítica e que remontam ao conceito dialético de reconhecimento em Hegel. Assim, a diagnóstica psicanalítica irá entender o sofrimento como uma categoria pré-patológica, como uma forma de invenção e resposta ao mal-estar advindo das transformações no horizonte de uma época. Assume que o sofrimento, para se expressar, vale-se de uma narrativa e que esta, por sua vez, pode ou não estar inscrita em um determinado discurso em um dado momento histórico. Dessa forma, o tratamento de uma forma de sofrimento requereria a sua inclusão em um dos discursos constituídos:

A inclusão discursiva de uma forma de sofrimento é o que permite que ela seja reconhecida, tratada e localizada em um registro moral ou jurídico, clínico ou político, literário ou religioso. Sofrimentos que não se enquadram nos discursos constituídos são frequentemente tornados invisíveis, derrogados de sua verdade, como uma palavra amordaçada (p. 34).

Compreendida desde este ponto de vista, a cura psicanalítica não é a volta a um estágio anterior de saúde ou "normalidade". Torna-se uma nova relação de poder, "uma relação propriamente política em relação ao lugar e à posição que cabe a cada um diante do mundo e de seu destino" (DUNKER, 2011, p. 211). Curar significaria incluir a forma de sofrimento no discurso, seja este diagnóstico, analítico ou crítica social, de modo que ele possa ser tratado, o que equivale a ser reconhecido em outro registro que não aquele da "linguagem individual" do sintoma. Nas palavras do autor: "boa clínica é crítica social feita por outros meios" (p. 46).

 

Sobre condomínios e encontros na mata: os ditos "Novos sintomas" contemporâneos

Após o milagre econômico (1969-73), o país experimentou um crescimento econômico acentuado com o acúmulo da concentração de renda, e uma das formas de converter o mal-estar da desigualdade social extrema em sofrimento foi a proliferação dos muros e condomínios. Alphaville, o megaempreendimento criado nos arredores de São Paulo em 1973 e replicado em diversas cidades – como franquia ou como cópia (como tragédia ou como farsa) – tornou-se o paradigma desse modo de viver onde o sofrimento é tornado invisível pelo fechamento da vida em formas pré-constituídas e superdeterminadas. A tragédia de Alphaville é que ele não seja visto como uma distopia – igual ao filme de Jean-Luc Godard (1965) que, como não cessa de se surpreender Dunker, dá nome ao condomínio originário brasileiro! A farsa é que este modo de vida inclua sujeitos que sofrem sem saber que sofrem enquanto assistem à proliferação das regras e das punições e disputam pelo carro, pela adega ou pelos filhos mais belos. Nos condomínios, "o mal-estar indeterminado é transformado em sofrimento produtivo" (p. 79), onde o que era uma "opção de vida" torna-se uma " obrigação obscena de felicidade" (p. 81). A briga judicial por causa dos dois centímetros a mais do muro do vizinho – conflito que qualquer síndico jamais consegue resolver e que faz parte do dia a dia dos condomínios – exemplifica de que modo essa nova forma de viver está regida por um deslocamento da autoridade, agora indeterminada e impessoal:

O síndico é como um novo sintoma da patologia brasileira da autoridade: envolve conflito entre exigências antagônicas, simbolização do desejo e principalmente um tipo especial de satisfação, chamado gozo. Esse terceiro quesito parece ter sofrido uma inversão. Se antes a autoridade dizia como gozar, agora ela se contenta em gerenciar o gozo perturbador do outro. Se antes o domínio se exercia no território pessoal do latifúndio familiar, agora ele se organiza em torno do espaço impessoal do condomínio (p. 78).

Seguindo a análise de Dunker, o síndico e a condominialização transformaramse em um sintoma à brasileira, porque tornaram-se intrínsecos também à forma de vida no Brasil pós-inflacionário, "marcado pela indeterminação crônica do valor, tanto das mercadorias quanto das experiências". O laço social em forma de condomínio surge como solução, na tentativa de suprimir um dado insuportável da realidade. A consolidação do sistema capitalista neoliberal no país, a partir dos anos 1990, reforçou, ademais, a fantasia ideológica de que os muros demarcariam o território do nascimento de uma nova lei. Fazer um condomínio tornou-se, assim, uma mitologia, um ato fundacional, refletindo uma modificação interessante na incidência da autoridade – e consequentemente da inscrição cultural da imago paterna no Brasil de então. É muito importante observar que a partir do momento em que o texto de Dunker começa a discorrer sobre o declínio da função social da imago paterna no Brasil, põe-se também a destacar a irrupção Real de um novo mito fundador. Na tradição psicanalítica, conforme Lacan (1973, Staferla), o mito funciona como um mecanismo do qual a linguagem se serve para expressar aquilo que não pode ser traduzido em palavras: o próprio mal-estar freudiano. Teria sido essa a tentativa de Freud ao criar "Totem e Tabu", a versão psicanalítica de outros mitos contratualistas como o "Leviatã", de Hobbes, e o "Contrato Social", de Rousseau. Paralelamente ao mito totêmico, passamos a conviver com uma nova lógica das relações no laço social, organizadas por uma mitologia que não é mais derivada do contratualismo como forma de justi"cação da autoridade. O totem (representado pelo Pai), o monstro bíblico (representado pelo Rei) ou a "vontade geral" (representada pela Constituição/Contrato Social) são figuras usadas para representar a transformação do poder em autoridade. Podemos nos remeter às fórmulas da sexuação e pensar que o que Dunker denomina de a lógica do condomínio é diversa daquela que, com Lacan, poderíamos chamar de lógica fálica justamente porque não é orientada pelo Um da autoridade. Mas Dunker nos leva a dar um passo adiante e considerar que a lógica do condomínio também se distingue porque obscurece o próprio conceito de representação, entendido como delegação (aparência) de autoridade a outrem – por exemplo, quando elegemos um legislador para nos representar no Parlamento:

A posição do síndico, como segundo tempo na fantasia do condomínio, seduz com a promessa que todos nos tornaremos pequenos legisladores de uma micropolítica escolhida automaticamente pelo ato de compra e ingresso no condomínio. O síndico gerencia a promessa de que esse pedacinho de gozo roubado de nós por nosso vizinho, e que faz a figura fálica da falta, será devolvido "na forma da lei", como uma espécie de excesso benfazejo. Se a autoridade arcaica era pessoalmente impessoal, a autoridade do síndico é impessoalmente pessoal. Ela não discute, não considera exceções nem pondera casos únicos. É fria ou violenta, sem dois pesos nem duas medidas (p. 81).

É fácil reconhecer de que maneira a lógica do condomínio está impregnada na forma de vida do brasileiro, rico ou pobre, por meio da maneira como são geridas a saúde, as escolas, os bancos, o mundo do trabalho, o ambiente organizacional e os shopping centers:

Há condomínios de luxo e condomínios de pobreza, condomínios institucionais e condomínios de consumo, condomínios de educação e condomínios de saúde. Em todos eles, encontramos traços semelhantes de racionalização: fronteiras, muros, regulamentos e catracas. Assim como um sintoma substituiu um conflito por uma formação simbólica onde não reconhecemos mais o antagonismo inicial, o síndico neutraliza o antagonismo deslocando a falta para uma espécie de zona de excesso (p. 78).

A disseminação do modo de vida orientado pela lógica do condomínio, no Brasil, pode ter levado à confusão entre narrativas do sofrimento e a emergência de novos sintomas. Dunker destaca a existência de inúmeros trabalhos de orientação psicanalítica que, nos últimos 20 anos, "pressentem" a importância das transformações do modo de vida para as modalidades dos sintomas, sem, entretanto, investigar as relações entre o mal-estar, as narrativas do sofrimento e a formação de sintomas. Aponta que o vínculo entre fatos sociais – o declínio da imago paterna; a desorganização da família, o capitalismo globalizado, a feminilização da cultura – e os novos sintomas clínicos – depressão, pânico, anorexia – tem sido feito "de modo direto demais", gerando até mesmo movimentos de reinvenção da própria noção de sintoma em psicanálise, "marcados pelo exagero das noções de sinthome ou de suplência em Lacan" (p. 234). O problema é abordar o sintoma pela via do diagnóstico, isto é, "o reconhecimento de sintoma em unidades regulares, chamadas de doenças, síndromes, quadros ou distúrbios" (p. 21); quando se deveria optar pela diagnóstica, que prevê a articulação do sintoma com as demais categorias psicanalíticas: "o sintoma é, sobretudo, Real e não deve ser dissociado da narrativa do sofrimento na qual se expressa e pode ser reconhecido socialmente, nem do mito por meio do qual sua verdade aparece em estrutura de ficção" (p. 150).

Enfim, o admirável trabalho crítico e de reposicionamento teórico da psicanálise brasileira, apresentado por Christian Dunker, é mais do que excepcionalmente rico e bem fundamentado. Ele tem o senso da urgência. Em tempos violentos e de intensa transformação – nos quais os laços sociais não são integralmente decorrentes da noção de identidade – derroga o papel do psicanalista instalado na função de "tradutor", isto é, de produtor de diagnóstico, e o situa como agente de uma diagnóstica, ou, como quer Christian Dunker, como o "xamã transversal" do perspectivismo ameríndio, alguém que ocupa o papel de diplomata e poliglota, nem homem nem mulher, que atua para estabelecer conexões e paridades entre populações incomunicáveis, entre universos incomensuráveis.

 

Referências

DUNKER, C. Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica. Uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento. São Paulo: AnnaBlume, 2011.         [ Links ]

__________. Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo: Boitempo, 2015.         [ Links ]

FREUD, S. (1912). "Wild Psycoanalysis" In: The Freud Reader. London: Penguin Books, 1993.         [ Links ]

__________. (1929). "Civilization and Its Discontents" In: The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud – v. 12. London: Penguin Books.

HONNETH, A. Luta por reconhecimento: A gramatical moral dos conflitos sociais, São Paulo: Ed. 34, 2003.         [ Links ]

LACAN, J. (1973). "Télévision", staferla.free.fr/Lacan/television.htm.         [ Links ]

METZGER, C.; SILVA JR., N. "Sublimação e pulsão de morte: A desfusão pulsional" In: Psicologia USP. São Paulo: Instituto de Psicologia, v. 21, n.3, set. 2010, pp. 567-83.         [ Links ]

VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência
E-mail: mayladimartino@me.com

 

 

* Psicanalista e pesquisadora no Programa de Pós-Doutorado no Instituto de Psicologia da USP. É participante de Formações Clínicas do Campo Lacaniano-RJ.
1 Obviamente, as exceções confirmam a regra, e são devidamente citadas por Dunker ao longo da obra.

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