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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.34 Rio de Janeiro jan./jun. 2017

 

TRABALHO CRÍTICO COM OS CONCEITOS

 

De que maneira o discurso do analista possibilita fazer furo no discurso capitalista?

 

In what way does the analyst discourse make a hole in capitalist discourse?

 

 

Brendali Dias

 

 


RESUMO

Existem diferenças fundamentais entre a estrutura dos quatro discursos e a estrutura do discurso capitalista. Essas diferenças estruturais dizem respeito à impossibilidade, à impotência e à verdade nos discursos, e tais diferenças levam à ruptura dos laços sociais no discurso capitalista. Existe ainda uma diferença fundamental entre o discurso do analista e os outros três discursos, ainda que a estrutura dos quatro discursos seja a mesma. Este artigo tem o objetivo de demonstrar as diferenças estruturais dos quatro discursos em relação à estrutura do discurso capitalista e a diferença fundamental entre o discurso do analista e os outros três discursos, tecendo comentários sobre por que o discurso do analista pode fazer furo no discurso capitalista na clínica.

Palavras-chave: Lacan; quatro discursos; impossibilidade; impotência; verdade; furo.


ABSTRACT

There are fundamental differences among the structure of the four discourses and the structure of the capitalist discourse. These structural differences refer to the impossibility, the impotence and the truth in the discourses and such differences lead to the disruption of the social bonds in the capitalist discourse. There is still one fundamental difference among the analyst discourse and the other three discourses, even though the structure of the four discourses is the same. This article aims to demonstrate the structural differences among the four discourses concerning the structure of the capitalist discourse and the fundamental difference among the discourse of the analyst and the other three discourses, commenting on why the analyst discourse can make a hole on the capitalist discourse and its consequences to the clinic.

Keywords: Lacan; four discourses; impossibility, impotence, truth, hole.


 

 

Buscaremos, neste trabalho, desenvolver alguns pontos sobre a questão "por que o discurso do analista pode fazer furo no discurso capitalista?", a partir da teoria dos quatro discursos de Lacan (1969-70/1992), desenvolvida em seu seminário 17, O avesso da psicanálise, quando formaliza quatro discursos apresentados pelo sujeito no laço social: o discurso do mestre (DM), o discurso da histérica (DH), o discurso do analista (DA) e o discurso universitário (DU).1

Para formalizar os discursos, Lacan (1969-70/1992) recorre às três profissões impossíveis apontadas por Freud (1925/1976): "governar", associado ao discurso do mestre; "educar", associado ao discurso universitário; e "psicanalisar" ou "curar", associado ao discurso do analista. A essas três impossibilidades propostas por Freud, Lacan somará uma quarta para formalizar o quarto discurso; trata-se de "fazer desejar", associado ao discurso histérico. Lacan formaliza esses quatro discursos por meio de matemas que demonstram as formas possíveis de discursos, apontando o processo de estruturação dos modos de ordenamento de gozo do sujeito no laço social - pois é impossível ordenar todo o gozo - a partir da lógica do inconsciente.

Posteriormente, Lacan (1972/inédito) profere mais um discurso, o discurso capitalista (DC), como uma variação do discurso do mestre. Se os quatro discursos representam quatro formas de ordenamento de gozo no laço social, no DC essa variação representa, ao contrário dos quatro discursos, uma ruptura dos laços sociais em sua formalização matêmica. Em função dessa ruptura, Lacan o aponta como um discurso astucioso, demonstrando uma forma de gozo específica do sujeito no capitalismo. Levando em conta a importância da montagem dos discursos, apresentaremos em seguida a maneira como Lacan esquematizou a estrutura dos matemas.

 

Sobre os lugares fixos e as letras nos matemas dos quatro discursos

Na construção dos matemas dos quatro discursos (DM, DH, DA e DU), Lacan coloca quatro lugares fixos:

1. O lugar do agente é o lugar dominante do discurso. Segundo Lacan (1969-70/1992), "a palavra dominante não implica a dominância no sentido de que essa dominância especificaria o discurso do mestre. Digamos que se pode dar, por exemplo, segundo os discursos, diferentes substâncias a essa dominante" (Ibid., p. 41). Ou seja, a dominante tem uma função diferente em cada um dos quatro discursos;

2. O lugar do outro é o lugar de dominado no discurso;

3. O lugar da verdade é o lugar que sustenta o agente do discurso, verdade esta sempre parcial;

4. O lugar da produção é o resultado, é o que o discurso produz.

Além dos quatro lugares fixos, Lacan propõe quatro letras que ocupam os diferentes lugares fixos nos discursos. São elas:

1.S1 - Significante mestre, representante da lei que marca a incompletude e que dá origem à rede de significantes;

2.S2 - Saber;

3. - Sujeito barrado, representando o sujeito dividido pelo inconsciente e, consequentemente, marcado pela falta;

4. a - Para tratar do objeto a nos quatro discursos, Lacan faz uma homologia deste com o conceito de mais-valia de Marx, nomeando-o como "a-mais-de-gozar".

Lacan localiza essa homologia apontando que se a mais-valia é tempo de trabalho pelo qual o trabalhador não é remunerado e jamais terá acesso - pois quem tem acesso a essa parte é o capitalista -, o a-mais-de-gozar é colocado nos discursos como perda de gozo, uma extorsão de gozo pelo fato de o sujeito estar submetido à linguagem, por ser impossível tudo simbolizar. Uma perda à qual nenhum ser falante tem acesso, mas que fica para o real que divide o sujeito. Diferente dos lugares fixos, as letras se deslocam e ocupam esses lugares em diferentes posições nos discursos. Por sua vez, o discurso capitalista apresenta uma estrutura fundamentalmente diferente dos outros quatro discursos. Comecemos pelos matemas dos quatro discursos e sua estrutura.

 

Uma estrutura para quatro discursos

A estrutura dos quatro discursos é sempre acompanhada da impossibilidade de não poderem se realizar plenamente. Essa impossibilidade sustenta a impotência da relação entre a produção e a verdade nos quatro discursos. Vejamos a figura abaixo:

 

 

Essa figura apresenta os lugares fixos, localiza a impossibilidade (como apontado pelo vetor horizontal superior entre o agente e o outro) representando que o outro não responde à demanda do agente de forma total, e localiza também a impotência (como mostram as barras verticais [//] na parte inferior do matema) representando que não há relação entre a produção e a verdade. Essas representações estruturam e orientam a lógica dos matemas dos quatro discursos formalizados por Lacan (1969-70/1992).

A impossibilidade é aquilo que o outro não consegue responder plenamente sobre a demanda do agente, ou seja, governa-se por meio do DM, faz-se desejar por meio do DH, psicanalisa-se por meio do DA e educa-se por meio do DU, mas nenhuma destas realizações é plena. Lacan (1969-70/1992) nos dirá que "quanto mais a procura de vocês envereda pelo lado da verdade, mais vão sustentar o poder dos impossíveis" (Ibid., p. 179).

Esta citação de Lacan nos autoriza a tratar também da impotência nos quatro discursos, pois se a impossibilidade é aquilo que o outro não consegue responder plenamente à demanda do agente, esse poder dos impossíveis é o que sustenta a impotência da relação entre a produção e a verdade, pois a produção discursiva não dá conta da verdade em função deste poder.

Sendo assim, em qualquer dos quatro discursos, nas diferentes posições que as letras ocupam nos lugares fixos, não há potência discursiva capaz de produzir relação entre produção e verdade do discurso. Vejamos com Silveira (2013, p. 2):

A impotência será relacionada com a parte inferior dos discursos, especificamente com um lugar que resulta do trabalho, ou seja, a sua produção, em relação àquilo que ocupa o lugar da verdade. Aquilo que o discurso produz é impotente em mostrar a verdade deste mesmo discurso, não há relação entre a produção e a verdade.

Ao nos atermos às Figuras 2, 3, 4 e 5, que se apresentarão daqui por diante, observaremos que os matemas dos quatro discursos possibilitam que os elementos (S1, S2, , a) girem em torno dos lugares fixos. Cada giro culminará em um novo discurso, tendo como regra que os giros só podem ocorrer no sentido horário e/ou anti-horário, fazendo com que, mesmo que giremos nos discursos infinitamente, não estabeleceremos mais do que quatro discursos.

 

 

 

 

 

 

 

 

Agora, aplicaremos essa estrutura nos quatro discursos para demonstrar em cada um deles a impossibilidade e a impotência da relação entre a verdade e a produção. Comecemos pelo discurso do mestre.

No DM, a impossibilidade entre o S1 (agente) e o S2 (outro) consiste da impossibilidade de o significante mestre (S1) dominar completamente o saber do outro (S2), ou seja, não há completude em governar, remetendo à impossibilidade de governar apontada por Freud. Sua impotência está no fato de que o objeto de sua produção não dá conta da verdade do sujeito. O que a produção revela neste discurso é uma perda de gozo a enquanto mais-de-gozar, apontando a impotência da relação entre a produção e a verdade que completaria o sujeito ().

Vamos agora ao discurso histérico, segue o matema:

No discurso histérico, a impossibilidade consiste de que o , agente do discurso, demanda um saber do mestre para dar conta de sua falta, mas não aceita a resposta produzida pelo outro, S1. Assim, neste discurso, o sujeito demanda um saber que dê conta de sua falta, mas a produção do outro, enquanto lei, não é capaz de tamponá-la.

A impotência no discurso histérico está no fato de que a produção do outro, S2 enquanto lei, não tem relação com a verdade da falta histérica (a), é um saber que deixa intacta sua falta (a-mais-de-gozar), apontando a impotência da relação entre a produção e a verdade que suturaria o objeto a. Assim, a histérica é perita em atuar este discurso, ou seja, a histérica não se sente representada pelo saber do outro, mantendo seu desejo de desejo insatisfeito. É por isso que todo sujeito em análise precisa histerizar seu discurso, sendo este o modo de preservar seu lugar de sujeito.

Agora o discurso do analista.Segue o matema:

No DA, a impossibilidade se dá pelo fato de que a demanda do agente - sendo o analista enquanto objeto a causa de desejo do analisante e ao mesmo tempo como a-mais-de-gozar, pois ele perde gozo - não exclui a necessidade de gozo do sujeito. Ou seja, o sujeito não pode ser curado de seu gozo, este é o impossível de curar a que Freud se refere. Pois, se o gozo pleno é impossível, sem um pouco de gozo a vida também é impossível, daí Lacan (1960/1998) dizer que "o gozo é aquilo cuja falta tornaria vão o universo" (p. 834).

A impotência no DA se dá pelo fato de que a produção de uma lei do desejo, (S1), pelo , não dá conta da verdade que sustenta o analista sobre a falta de saber sobre o desejo do sujeito. Isto é, apesar de o sujeito ter que produzir ele mesmo um saber, sua verdade será sempre uma verdade não toda, mantendo o $ entre o desejo e o gozo. Assim, não é possível produzir uma lei do desejo que dê conta do saber sobre a falta que instaura a castração, já que o objeto a-mais-de-gozar é faltoso por essência e eternamente. Não há lei do desejo que se relacione com a verdade do saber S2. Portanto, o gozo se intromete fazendo com que o analisante produza algo sobre sua própria verdade não toda, que sempre conduz o $ a uma nova verdade não toda, que é representada pelo deslizamento dos significantes na parte inferior do DA.

Vamos ao discurso universitário, segue o matema:

A impossibilidade no DU está no fato de que o S2 - enquanto agente - propõe uma falta de saber ao sujeito que vai além de sua falta estrutural, impondo um saber para produzir um sujeito adequado aos ditames sociais. Sua principal diferença do discurso do mestre é que o discurso universitário tira do sujeito o saber-fazer, pois a ciência, ao criar os meios de produção, faz com que o saber-fazer do sujeito não faça sentido de subsistência para ele - o que culmina no capitalismo de produção.

A impotência no DU se trata de que não há relação entre o produzido pelo discurso e a verdade da lei, representada pelo S1. Essa produção não se realiza plenamente, porque há o sintoma à revelia do sujeito, o que não o permite adequar-se a este saber imposto, impondo a falta de relação entre a produção do sujeito e a verdade do discurso enquanto lei.

Vemos assim que os quatro discursos apresentam uma impossibilidade e uma impotência, e que em nenhum deles a verdade é tocada. Isso é estrutural nos quatro discursos. Mesmo assim, não paramos de repetir as tentativas de fazer os discursos apresentarem uma verdade, sem sucesso, mas uma necessidade para a manutenção dos laços sociais.

É o advento da psicanálise que possibilita Lacan (1969-70/1992) construir a emergência dos discursos a partir da história e com isso observar a impossibilida de de ultrapassar a rocha da castração. Portanto, de ultrapassar a impossibilidade da completude que nos detém, por sustentar a impotência do encontro da produção com a verdade em qualquer um dos quatro discursos e consequentemente da eliminação da castração, por tratar-se do real em jogo, real este que é impossível.

Mas Lacan não para por aí, a emergência da passagem do capitalismo de produção para o capitalismo de consumo leva-o a propor mais um discurso, o discurso capitalista, indicando-o como sendo uma variação do discurso do mestre. Trataremos agora as questões de sua estrutura em separado dos quatro discursos.

 

A estrutura do discurso capitalista e sua diferença fundamental em relação à estrutura dos quatro discursos

Trataremos essas questões separadas no DC, pois nelas reside toda a diferença estrutural fundamental entre esse discurso e os quatro já apresentados. Essas diferenças dizem respeito à impossibilidade e à impotência do encontro da produção com a verdade. O que se vê no discurso capitalista é o desaparecimento da impossibilidade e a permissão do encontro do sujeito com a verdade, diferenças que representam a ruptura dos laços sociais, por colocarem o objeto entre o sujeito e o outro. Importante notar que já foi acrescentada a posição das letras nos lugares fixos, uma vez que só há uma representação do discurso capitalista na estrutura, vejamos a figura:

 

 

Observemos que neste discurso, o vetor e as letras do lado esquerdo do matema sofrem uma inversão em relação à estrutura dos quatro discursos; além disso, é quebrada a regra de que as letras só girariam no sentido horário e/ou anti-horário. Com a inversão do vetor e das letras, além do sujeito, passa a ter acesso direto à verdade, perdendo a relação com o outro e entrando no curto-circuito do DC. Nesse curto-circuito o objeto a fica entre o agente () e o outro (S2), impossibilitando o laço social permitido nos quatro discursos, razão pela qual Lacan (1972/inédito) lhe confere o adjetivo de discurso astucioso.

Afinal, foi o que se fez de mais astucioso como discurso. [...] uma pequena inversão simplesmente entre o S1 e o ... que é o sujeito... basta para que isso ande como sobre rodinhas, não poderia andar melhor, mas, justamente, anda rápido demais, se consome, se consome tão bem que se consuma.

O fato é que o DC governa - e governa, digamos, mantendo uma mestria astuciosa. Porém, não é possível estar preso a ele o tempo todo, como aponta sua representação estrutural, ou seja, no capitalismo o sujeito não prescinde dos quatro discursos.

É digno de nota apontar que os avanços tecnológicos e midiáticos conquistados graças ao capitalismo são centrais para impulsionar seu funcionamento. Isto se dá ao se instigar a eliminação da castração, o que faz com que o sujeito busque superar os limites de suas buscas e aspirações de consumo como fantasia de completude, intensificando o individualismo e prometendo ao sujeito que ele será completo se mantiver o laço com o objeto de consumo. A consequência disso é a renúncia ao laço social.

Gostaríamos de apontar ainda que, diferente dos autores que colocam que o DC representa o declínio do pai, afirmamos que ele representa um pai ainda mais severo, pois propõe um imperativo de gozo direcionado para os limites do consumo. Isto, segundo Pacheco Filho (2009, pp. 154-155), implica "uma aceleração da tendência totalitária à alienação, em escala sem precedentes nas demais formas históricas de sociedade". Trata-se de uma aceleração que intensifica a angústia para além do necessário, pois com as ofertas incessantes o sujeito se angustia também incessantemente.

Vamos às diferenças fundamentais dos quatro discursos em relação ao discurso capitalista. Segue a Figura 7, que julgamos necessária a título de comparação, pois ela aponta a variação que ocorre entre o DM e o DC e os argumentos que fazem notar a diferença estrutural:

 

 

O discurso do mestre na estrutura dos quatro discursos localiza, como já vimos, uma impossibilidade e uma impotência da relação entre produção e verdade (//), representações que estruturam e orientam a lógica dos quatro discursos de Lacan. Nela, há uma regra de que as letras só podem girar no sentido horário ou anti-horário, possibilitando a existência de apenas quatro discursos.

 

 

Na estrutura do discurso capitalista, a variação se dá pela inversão das letras do lado esquerdo do matema em relação ao matema do discurso do mestre, levando à quebra da regra de que as letras só podem girar no sentido horário ou anti-horário. Há também a inversão do vetor esquerdo que passa a apontar para a verdade, tornando-a potente. É um discurso em curto-circuito que representa a ruptura dos laços sociais, pois se perde a relação do agente com o outro, relação que passa a ser mediada pelo objeto a.

Observando as figuras comparativamente, temos que, no discurso do mestre, a verdade, enquanto velada, reflete a inexistência de um Outro que seja capaz de produzir uma verdade. Esta verdade é, portanto, faltante, o que pode ser representado pela construção lógica de Lacan que diz da falta de significante do Outro, S(), pois a impossibilidade e a impotência denunciam a perda de gozo do Outro nos quatro discursos. Vejamos com Lacan (1960/1998, p. 827):

Partamos da concepção do Outro como significante. Qualquer enunciado de autoridade não tem nele outra garantia senão a sua própria, pois lhe é inútil procurar por esta num outro significante, que de modo algum pode aparecer fora deste lugar. É o que formulamos ao dizer que não existe metalinguagem que possa ser falada, ou, mais aforisticamente, que não há Outro do Outro.

Ou seja, a impossibilidade, a impotência e o velamento da verdade nos discursos demonstram que não há Outro do Outro. A impotência do encontro do sujeito com a verdade é inerente ao ser falante, é justamente por estar submetido à linguagem que ele busca essa verdade como garantia, é também por estar submetido à linguagem que lhe é garantido se dar com a impotência de obtê-la. No entanto, a estrutura do discurso capitalista apresenta essas diferenças estruturais fundamentais: simula o encontro do sujeito com a verdade do discurso e coloca o objeto entre o sujeito e o outro. Essas diferenças fundamentais promovem a ruptura dos laços sociais.

Há uma polêmica entre os autores da psicanálise lacaniana; alguns acreditam que o discurso capitalista é um discurso de fato, outros acreditam que ele não seja.

Não destacaremos aqui a polêmica existente entre os autores, dada a falta de espaço para tanto, mas se apostarmos na proposta de Lacan (1972/inédito) de que o DC é uma variação do DM, podemos questionar se o DC é de fato um discurso. Isso se soma ao fato de que o DC representa a ruptura dos laços sociais. Se concordarmos com Lacan (1969-70/1992) quando ele diz que discurso é ordenador de gozo e promotor de laço social, como pensar no DC como um discurso se ele desfaz tal laço? Há ainda o fato de que o DC só é necessário na sociedade desde que ela se tornou capitalista e não será mais necessário se a sociedade capitalista se extinguir, enquanto que os outros quatro discursos são trans-históricos e estão presentes em todas as formas de sociedade desde que haja ser falante.

Pelas razões apontadas acima, concordamos com os autores que acreditam que o discurso capitalista não é um discurso, inclusive ainda porque, se ele está em curto-circuito, como pode o sujeito passear pelos outros discursos? Não havendo espaço para mais reflexões sobre essa questão e longe de esgotá-la, paramos por aqui.

Lacan (1972/inédito) aponta que é possível fazer furo no discurso capitalista a partir do manejo da transferência pelo analista na clínica. Mas como fazer furo no discurso capitalista na clínica? É o que veremos no próximo tópico.

 

A política do discurso do analista e sua clínica

É importante apontar que nenhuma cultura de nenhuma época se fixa em nenhuma dessas quatro formas discursivas, qualquer que seja seu modo de funcionamento. Essas quatro formas discursivas giram nas formas de funcionamento das culturas em todas as épocas; sendo assim, não se pode conceber a história como uma sucessão de discursos. Porém, como aponta Castro (2009, p. 3), "não obstante, é perfeitamente possível associar determinados fenômenos históricos a determinados discursos, e também conceber mudanças de hegemonia entre os discursos". Assim, ao longo da história nota-se que o discurso do mestre predominou no feudalismo, o discurso histérico foi predominante na época da inquisição com a queima das bruxas, o discurso universitário e o discurso capitalista são predominantes na atualidade e o discurso do analista é predominante, não numa época, mas na clínica psicanalítica.

Vemos que os discursos predominantes hoje são os que mais se contrapõem à política do discurso do analista, que é a política do objeto a causa de desejo, dado que o discurso universitário busca a coisificação do sujeito; e o discurso capitalista busca a ruptura dos laços sociais e ambos são derivados do discurso do mestre. Sendo o DU o que permite o desenvolvimento da ciência e o DC um discurso astucioso ou discurso do mestre moderno que busca obturar os laços sociais, porém, como aponta Lacan (1972/inédito) sobre o DC, ele "não é menos destinado ao furo".

Sendo assim, como aponta Quinet (2012), temos os discursos de dominação - que são o discurso do mestre, discurso de entrada na linguagem; o discurso universitário ou discurso do mestre moderno; e o discurso capitalista como uma variação do discurso do mestre. E temos os discursos de avesso da dominação - o discurso histérico que preserva a posição de sujeito e o discurso do analista que escuta a demanda histérica, mas sem respondê-la, possibilitando o mapeamento de seu desejo a partir da não resposta.

Agora tratemos a questão central do texto: de que maneira o discurso do analista possibilita fazer furo no discurso capitalista?

Como já foi dito, a estrutura dos quatro discursos é a mesma, pois todos comportam a impossibilidade de realização plena e a impotência de não estabelecerem relação entre a produção e a verdade. Então, onde reside a diferença fundamental? Aliás, é essa diferença que faz toda diferença na maneira em que o discurso do analista pode fazer furo no discurso capitalista do ponto de vista clínico.

A diferença do discurso do analista é que sua direção conta com o real impossível e, como aponta Silveira (2013), "é, portanto, um discurso que começa colocando o real em uma posição privilegiada", que poderíamos dizer, na direção de uma falta de saber do Outro, já que a posição do analista é de objeto a causa de desejo, posição que os outros discursos não tomam.

Mesmo o discurso histérico - que busca manter sua posição de sujeito ao recusar as respostas encaminhadas pelo mestre sobre sua demanda - só pode rastrear seu desejo se encontrar pela frente o discurso do analista. O discurso da histérica é muito importante, porque é com ele que Lacan (1969-70/1992) desenha o discurso do analista; mas sem encontrar-se com o discurso do analista, ele nada pode enquanto resistência ao discurso capitalista. Ao contrário, alimenta-o fazendo a ciência produzir objetos para dar conta das demandas histéricas. Sendo assim, dos quatro discursos, o único que pode fazer furo no discurso capitalista é o discurso do analista, pois ele é o único que inclui o real como impossível de saída. Essa é a diferença fundamental entre o discurso do analista e os outros três discursos (DM, DH e DU).

Um discurso que parta do real como impossível, parte de saída do pressuposto da incompletude. Ele busca não ficar dando voltas inúteis e coloca o pior em pauta e por isso possibilita fazer furo no DC, que ao contrário, quer tamponar a dor de existir inerente à falta inexorável ao ser falante.

Na "Conferência de Milão", Lacan (1972/inédito) diz que o discurso do analista implica um "pequenino melhor uso do significante Um" e embora tenha qualificado o DC como um discurso astucioso, afirma que ele não é menos destinado ao furo, como já foi dito. Ou seja, sua lei é tão decadente quanto a de qualquer outro discurso, e, portanto, tão questionável quanto.

Mas de que maneira é possível fazer furo no discurso capitalista do ponto de vista clínico? Alguns desdobramentos são possíveis a partir dessa questão. Primeiro, é importante que fique claro que o discurso do analista não pode ser tomado de um ponto de vista ideológico como único discurso admissível. Quinet (2009) nos alerta de que "há racismo do discurso como laço social na medida em que não é aceita a diferença de gozos [...]. Aceitar a diversidade do gozo, suas múltiplas modalidades, é uma indicação ética que deve orientar nossa política. De outro modo cairíamos no racismo dos discursos da dominação" (pp.48-49), ou seja, o discurso do analista não é um discurso que se pretende único.

Lacan (1969-70/1992, p. 178) aponta que o discurso do analista tem sua incidência política a partir da seguinte pergunta: "De que saber se faz a lei?". Essa pergunta coloca em xeque a verdade da lei, inclusive da lei do próprio discurso do analista. Lacan aponta que onde há verdade, não há preocupação com a verdade;é somente na medida em que se questiona a verdade que algo novo pode se produzir. Ele afirma ainda que "o efeito de verdade é apenas uma queda de saber", denunciando que uma verdade última não existe, por sempre poder ser questionada, portanto é uma queda que faz produzir. E como o discurso do analista sai deste enrosco? Começando pelo fato de que é função do analista provocar no sujeito uma descrença sobre a lei que o aliena, e no momento, a lei que o aliena é a do capitalismo. Se o sujeito pode girar nos quatro discursos é porque seu desejo se revela no sintoma à sua revelia.

Quando o analista se coloca em sua função de objeto a causa desejo, ele dá voz ao sujeito que, em associação livre, revela seu sintoma e rastreia seu desejo. Ou seja, colocar o desejo do sujeito em causa em vez de tamponá-lo ou de buscar a eliminação do sintoma é o que permite alguma liberdade do sujeito em relação à sua alienação estrutural ao discurso do mestre. Essa margem de liberdade pode furar não só o totalitarismo do discurso capitalista, mas qualquer tipo de totalitarismo que aparece também nos outros discursos.

Para finalizar, cabe um apontamento importante. Trata-se da responsabilidade do sujeito no sistema capitalista que o aliena. Sobre essa questão, Pacheco Filho (2009, p. 155) aponta que é responsabilidade do psicanalista "cuidar para que ele [o sujeito] não fique de fora também nas considerações críticas sobre o capitalismo, elucidando de que maneira ele (o sujeito) também participa e tem responsabilidade na sua própria alienação ao laço social capitalista e na aceleração de sua tendência totalitária".

Isso é realizado pelo analista quando ele intervém na fala do analisante questionando os clichês apresentados pelo discurso capitalista que aparecerem para o sujeito como verdades acabadas, pois são essas verdades acabadas que engabelam o sujeito e fazem com que ele não busque as saídas que são possíveis. A subjetividade do analista é construída no sistema capitalista, por isso é importante também nosso constante questionamento sobre nosso fazer, para que não fiquemos na posição de responder aos mandos do capitalismo e assim possamos furá-lo e manejar a transferência de nossos analisantes para que eles possam fazer o mesmo.

 

Referências bibliográficas

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Recebido: 22/05/2017
Aprovado: 19/06/2017

 

 

1 Em alguns momentos deste trabalho utilizaremos siglas para designar os discursos da seguinte maneira: DM para discurso do mestre; DH para discurso histérico, DA para discurso do analista, DU para discurso universitário e DC para o discurso capitalista.

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