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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.34 Rio de Janeiro jan./jun. 2017

 

TRABALHO CRÍTICO COM OS CONCEITOS

 

Psicanálise x Religião: que triunfo?1

 

Psychoanalysis x Religion: what triumph?

 

 

Maria Vitoria Bittencourt

 

 


RESUMO

O presente artigo pretende levantar uma questão de um dos problemas cruciais da Psicanálise na atualidade: a presença da religião em nossa sociedade. A partir de afirmações de Lacan em 1974, em que anuncia o triunfo da religião, assim como de suas elaborações em seu texto A terceira, esse trabalho procura examinar o fundamento dessa posição de Lacan assim como as consequências para a clínica psicanalítica. Trata-se de articular a relação entre psicanálise e religião e seus efeitos para o conceito de sintoma como real, tentando dar uma resposta política à prática dos psicanalistas: deter o sentido "religioso" que alimenta o sintoma.

Palavras-chave: Psicanálise; religião; sintoma; sentido; real.


ABSTRACT

The present article intends to bring up a matter of one of the crucial problems of Psychoanalysis in our present time: the presence of religion in our society. From Lacan's assertions in 1974, announcing the triumph of religion, and the elaborations in his text La troisième, this work seeks to examine the basis of Lacan's position, as well as the consequences to the psychoanalytic clinic. Its purpose is to discuss the relation between psychoanalysis and religion and the effects to the concept of symptom as real, trying to give a political answer to the psychoanalysis practice: to detain the "religious" sense that nourishes the symptom.

Keywords: Psychoanalysis, religion; symptom; meaning; real.


 

 

Na atualidade, a religião está presente em vários campos da sociedade, tais como apolítica, os meios de comunicação, a educação, e ainda outros. Este fenômeno chega ao ponto de representantes de certas crenças ou igrejas ocuparem funções políticas significativas e, o que é pior, lançando mão de argumentos religiosos para fundamentar propostas de mudanças constitucionais! Em nosso ambiente político-cultural busca-se homogeneizar psicanálise e religião até nas livrarias, onde livros de esoterismo se tornaram vizinhos de estantes de livros de psicanálise. Não se trata de um fenômeno exclusivamente nacional, pois o encontramos também na França. Algumas religiões procuram absorver os conceitos da psicanálise para propor uma terapia e uma formação ditas psicanalíticas!

Pergunto-me, então, se poderíamos afirmar que Lacan tinha razão ao anunciar, em 1974, o triunfo da religião (LACAN, 1974/2005). No ano anterior, em Televi são, ele já preconizava as consequências funestas do retorno da religião: "Deus, recuperando a força, acabaria por ex-sistir, o que não pressagia nada melhor do que um retorno de seu passado funesto" (LACAN, 1973/2003, p. 533).

Freud foi um pouco otimista, ao prever que a ciência tomaria o lugar da religião. Uma ilusão. Sua concepção sobre a religião se fundamentava na ideologia cientificista, pois, para ele, o desenvolvimento da ciência teria como efeito o declínio da religião. Como os sábios de sua época, ele acreditava que a ciência dissiparia a paixão pela ignorância que caracteriza a religião, ou seja, seu obscurantismo. Tratava-se, a seu ver, de uma ilusão indispensável à civilização, um freio para o sentimento de culpa gerado pelo assassinato do pai, evitando desta maneira que os humanos se trucidassem por qualquer motivo. Para Freud, a religião pertence à dimensão do privado, em particular, do neurótico obsessivo, sendo considerada uma experiência subjetiva que permite suportar o peso da vida. Ele a situa ao lado dos sedativos, que, naquela época, já eram o ópio do povo. Segundo Freud, o sujeito religioso é suscetível de ser analisado em termos edipianos, pois se encontra completamente submetido à vontade do Deus-Pai (FREUD, 1928/1974, p. 200).

A posição de Lacan em relação à religião é diametralmente oposta à de Freud. Em seu diagnóstico, trata-se de um "triunfo da religião", pois a ciência e seu discurso não conseguiram eliminar a prática religiosa, muito pelo contrário, fortaleceram sua produção. Em sua conferência A terceira, Lacan afirma que "se a psicanálise tiver êxito [...] nos livrando tanto do real quanto do sintoma (como o faz a religião) [...] ela se apagará de ser somente um sintoma esquecido" (LACAN, 1974, inédito).

Mas sua posição é paradoxal, pois em 1974, na Conferência de Imprensa em Roma, ele declara que a religião "é infatigável" (LACAN, 1974/2005, p. 79) e que a psicanálise não sobreviverá, a não ser que fracasse na sua função, podendo assim perdurar como uma necessidade. A sobrevivência da psicanálise depende de seu fracasso, isto é, depende do seu fracasso em responder à demanda de reduzir o sintoma e o real. Caso contrário, ela poderá desaparecer.

Esses termos bélicos, pronunciados em Roma, evocam uma luta contra a religião dita por ele "a verdadeira", ou seja, a religião católica romana, que fabricou a encarnação: o verbo se faz carne na pessoa do filho de Deus. No mistério da eucaristia, o corpo e o sangue do Cristo não são simples representações, o que explica a eficácia da religião no reforço da fantasia de imortalidade para os sujeitos. Mas o comentário de Lacan não se atém à religião católica romana, pois concerne também o que chamou de "falsas religiões", e estas são numerosas. Podemos considerar que algumas religiões cristãs importaram tais concepções, localizando-as em uma encenação da encarnação, desta vez do diabo, ilustrada nos rituais exorcistas, eventualmente transmitidos pela televisão.

Mas o que está em jogo na luta entre a religião e a psicanálise? Tudo gira em torno do sintoma, do sentido e do real, que podemos articular à psicanálise, à religião e à ciência. A religião triunfará graças ao inesgotável acervo de sentido, ou melhor, inesgotável fábrica de sentido para todos os fenômenos, um sentido que vem tamponar a falha do saber, S(Ⱥ). Diferentemente de como ele procede em A ciência e a verdade (1965), a questão de Lacan em 1974 não é a estrutura da religião, mas sua função fundamental: produzir sentido, isto é, proteger-nos do real. Porém, esse real não é mais o da natureza, mas aquele que a ciência produz cada vez mais.

E, no que se refere ao sentido, eles conhecem um bocado. São capazes de dar um sentido realmente a qualquer coisa. Um sentido à vida humana, por exemplo. São formados nisso. Desde o começo, tudo o que é religião consiste em dar um sentido às coisas que outrora eram as coisas naturais. [...] E a religião vai dar um sentido às coisas mais curiosas, aquelas pelas quais os próprios cientistas começam a sentir uma ponta de angústia. A religião vai encontrar para isso sentidos truculentos (LACAN, 1974/2005, p. 80).

O real em questão, Lacan o define como "o real que poderia muito bem desembestar, sobretudo desde que ele tem o apoio do discurso científico" (LACAN, 1974, inédito). Segundo Colette Soler, nesse momento Lacan não se refere ao real do impossível da relação sexual, mas ao real da vida das bactérias, traficadas em laboratórios, razão da angústia dos cientistas (SOLER 2005-2006, inédito, aula de 24/04/2006). Esse real é aquele que Lacan escreve como a terceira rodela do nó borromeano, autônomo em relação ao simbólico e ao imaginário, ou seja, o real fora-do-simbólico. Colette Soler sustenta essa ideia ao indicar que em A terceira, "estranhamente, Lacan escreve as ciências da vida, não na rodela do simbólico, não na intersecção entre simbólico e real, mas na intersecção onde escreve o gozo Outro, fora do simbólico" (Ibid.). Trata-se do "real real" das bactérias, pois o real da não relação sexual implica um impossível a dizer, por isso é condicionado pela linguagem.

Vemos assim que se produz uma nova aliança entre a religião e a ciência, a partir da qual a religião produz os sentidos "truculentos". Tivemos o testemunho disso em um trecho do livro de Marcelo Crivella, atual prefeito do Rio, que explicava como toda doença tem uma causa, um vírus ou uma bactéria, definida como uma força do diabo. Por esse motivo, só pode ser tratada pelo poder divino. Sentido mais truculento... impossível!

Não podemos negar que a psicanálise também tem uma aliança com a religião. Freud recusou essa aliança ao elaborar uma teoria da religião, em seu texto Atos obsessivos e práticas religiosas (1907/1974) e, mais radicalmente, em O futuro de uma ilusão (1927/1974) e Moisés e o monoteísmo (1939/1974).

Quanto a Lacan, a religião é um tema constante em seu ensino, principalmente no que se refere à "verdadeira religião". Ao inscrever a prática psicanalítica na função da fala no campo da linguagem, Lacan (1953/1998) atribui todos os seus efeitos ao simbólico, ou seja, à ordem que articula, para cada sujeito, a linguagem e o parentesco. O Nome-do-Pai, termo altamente vinculado à religião católica, é localizado por ele no centro do simbólico, pois "a atribuição da procriação ao pai só pode ser efeito de um significante puro, de um reconhecimento, não do pai real, mas daquilo que a religião nos ensinou a invocar como o Nome-do-Pai" (LACAN, 1966/1998, p. 562). Nesse sentido, podemos constatar que a teoria do pai em Lacan induziu muitos analistas ao culto do pai, num retorno a posições religiosas em que alguns se tornaram guardiões da ordem familiar, pregando contra o casamento dos homossexuais e a adoção de crianças por eles. Eis o retorno funesto da religião na psicanálise.

No Seminário, livro 11, Lacan (1964/1973) colocou em questão o desejo de Freud, como o "pecado original da psicanálise", que trouxe consequências funestas na formação da instituição psicanalítica estruturada como uma igreja, o verdadeiro "drama da organização dos psicanalistas" (LACAN, 1964/1973, p. 211). Tivemos uma versão mais recente dessa aliança na Escola que se definia como uma "seita boa". Mais adiante, no Seminário livro 17: O avesso da psicanálise (1969-70/1992), Lacan prolonga a crítica ao pai freudiano e sua solução paterna, introduzindo uma nova economia, aquela do gozo. Finalmente, com a pluralização dos nomes do pai e a teoria dos nós borromeanos, Lacan extrai da psicanálise toda conotação religiosa.

Voltando ao triunfo da religião anunciado por Lacan, podemos indagar como a psicanálise pode preservar sua prática nesse contexto. Lacan nos dá várias indicações nos textos acima citados. Antes de mais nada, deve-se levar em conta a afirmação de Lacan: "Chamo de sintoma o que vem do real. Quer dizer que isso se apresenta como um peixinho cuja boca voraz só fecha ao colocar o sentido entre os dentes" (LACAN, 1974, inédito). Essa imagem de Lacan do "peixinho voraz" é uma maneira de ilustrar o fato de que, ao encontrar o real, o ser falante tenta lhe dar um sentido, faz apelo ao sentido. Quando se interroga o sentido da existência, é o peixinho voraz que tenta dar sentido a algo que está fora-do-sentido. Nesse ponto, o real em questão é o da não existência da relação sexual, que engendra o sintoma. Quando se trata da construção de um delírio, a psicose ilustra bem o encontro com o real fora-do-sentido, e demonstra como, no ser falante, o real recorre ao sentido. A entrada em análise apresenta essa mesma operação, pois é, antes de mais nada, uma demanda de sentido a partir do encontro do sujeito com um significante sem sentido.

Por isso, Lacan comenta que as "religiões falsas" acolhem os indivíduos que sofrem, ofertando-lhes pela via da sugestão um sentido miraculoso, cujo efeito terapêutico é inegável. Lévi-Strauss demonstrou a eficácia simbólica de várias práticas religiosas. Porém, não se sabe por quanto tempo ela funciona, pois se trata de um deslocamento infinito, que não toca na causa do sintoma. Quando Lacan aborda o sentido do sintoma, ele lembra que Freud definiu o sentido sexual do sintoma como satisfação substitutiva. "O sintoma tem um sentido que só se interpreta corretamente [...] em função das primeiras experiências sexuais, na medida em que encontra [...] a realidade sexual" (LACAN, 1975/1985, p. 12). Lacan acrescenta duas alternativas que resultam da prática da interpretação do sentido: ou o sintoma prolifera ou ele morre. "O sentido do sintoma não é aquele com o qual nós o alimentamos para sua proliferação ou extinção, o sentido do sintoma é o real" (LACAN, 1974, inédito). Já o dissemos, é o real da não existência da relação sexual que engendra o sintoma.

A psicanálise, como a prática da fala, pode operar com o real, sob a condição de não se reduzir o sintoma ao sentido. Isso requer a interpretação pelo equívoco e, com ela, a anulação de qualquer inclinação religiosa.

Para concluir: no que tange à religião, que resposta devem dar os analistas para alcançar a subjetividade de sua época? Ainda em A terceira, Lacan (1974) parece atribuir uma "missão dos analistas" nos seguintes termos: "[...] que seja do real de que depende o analista nos anos que virão, [...] não é de forma alguma do analista que depende o advento do real. O analista tem por missão detê-lo" (Ibid., inédito). Deter o sentido religioso com o qual se alimenta o sintoma poderia ser dito "o triunfo do sintoma"? Ousamos dizer que ao fracasso da psicanálise corresponde o triunfo do sintoma, ou seja, se a psicanálise se reduzir a uma prática do sentido, fracassa em responder à demanda de reduzir o sintoma. Se, por outro lado, a psicanálise operar com o sintoma em sua dimensão real, definido por Lacan como o modo em que cada sujeito goza do seu inconsciente, sustentando-o em sua existência de ser falante, eis o triunfo do sintoma. A missão do analista seria, então, uma política do sintoma, a manutenção de um certo respeito pela função do sintoma, essencial para a subsistência de um sujeito em seu destino singular.

 

Referências bibliográficas

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Recebido: 24/05/2017
Aprovado: 22/06/2017

 

 

1 Trabalho apresentado no XVII Encontro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Brasil em São Paulo, 2016 -"Problemas cruciais para a Psicanálise na atualidade".

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