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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.34 Rio de Janeiro jan./jun. 2017

 

RESENHA

 

Resenha do livro: Desarrazoadas: devastação e êxtase

 

 

Bela Malvina Szajdenfisz

 

 

O livro de Elisabeth da Rocha Miranda, Desarrazoadas: devastação e êxtase, é resultado de seu doutoramento no programa de Pesquisa e Clínica em Psicanálise, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Ele versa sobre o estudo do gozo no feminino e parte de um trabalho audacioso de pesquisa que busca alicerçar teoricamente manifestações clínicas e seus efeitos em torno do feminino e o gozo que lhe é próprio. Ao conduzir uma análise, que tratamento dar ao que escapa ao sintoma, à cifra de gozo fálico presente na compulsão à repetição? Que tratamento dar ao que não está de todo cifrado, ao que ultrapassa o próprio sujeito na posição feminina e que produz efeitos devastadores para ele e para aqueles que o cercam? Este é o questionamento que a conduziu ao trabalho de pesquisa sobre o tema.

Em sua proposta de pesquisa, Beth, como é chamada em nosso meio, lança a hipótese de que o sujeito, ao ocupar a posição feminina na estrutura neurótica, experimenta o gozo Outro, nesse lugar de S(A), e pode apresentar fenômenos de uma vivência fora do falo, fenômenos esses similares aos da psicose, uma espécie de loucura sem sê-la, de "sem-razão", significante que lhe serviu de inspiração para compor o título do livro.

Em sua apresentação, Antonio Quinet ressalta ser a pesquisa de Beth bem interessante, não só por seus avanços teóricos, ao abordar a última parte do ensino de Lacan, como também pela variedade de exemplos da literatura e de sua clínica, seguidos de consistentes referências lacanianas em torno do tema. Essa fecunda produção trouxe como resultado um texto polifônico em que topologia, lógica, poesia e clínica psicanalítica apresentam, em sua partitura textual, diferentes variações em torno do furo do Outro (MIRANDA, 2017, p. 9). Quinet reconhece, como grande contribuição, a investigação apurada sobre o gozo Outro e suas diversas manifestações expressas nos modos como o gozo feminino incide na subjetividade.

Beth inicia seu livro com Maria, uma jovem detrinta anos, que não consegue fazer o luto pela perda do amor de sua vida. Há mulheres como Maria, diz a autora, que chegam à análise tomadas por uma estranheza, ora com sensações de extrema felicidade, ora com um grande mal-estar. São loucas, exageradas, excessivas, alucinadas, histéricas, desviadas, desvairadas ou delirantes. Algo as ultrapassa, causando enigma para os outros e para elas mesmas (Ibid., p. 11). A autora procura também elencar figuras como ao de Anna O., paciente de Breuer, de Madeleine, paciente de Pierre Janet, além de Camille Claudel e Rodin, e das muitas Marias de Florbela Espanca. Com isso, ela anuncia a polêmica no diagnóstico diferencial entre histeria e psicose, originada na loucura que diz respeito aos desatinos e à vacilação da mulher entre a norma fálica e o lado não todo fálico. Em seguida, serve-se dos Estudos sobre a histeria (1893-95) em que Freud descreve a similaridade dos desarrazoamentos aos fenômenos psicóticos tanto na histeria quanto nos estados delirantes de obsessivos graves, das Neuropsicoses de defesa (1894) em que ele aborda a questão da perda da realidade na neurose, uma aparente liberdade paradoxal à própria loucura, ponto limite de toda autonomia para o sujeito do inconsciente.

Com ensinamentos de Lacan sobre a loucura, em Formulações sobre a causalidade psíquica (1946) e Alocução sobre as psicoses da criança (1967), e de Freud, com Luto e melancolia (1917), Beth refere-se ao sujeito melancólico fora do registro fálico, imerso na estrutura psicótica, mas também aponta para o neurótico em seus estados de loucura, quando "se depara com a verdade de ser um puro objeto caído do Outro" (p.13). Apoia-se em textos freudianos, como A organização genital infantil (1923), A dissolução do complexo de Édipo (1924) e A feminilidade (1933), para mostrar como Lacan chega à formalização do feminino como heterogêneo, múltiplo e irredutível ao Um fálico. Reforça a castração materna como condutora do sujeito a escolher sua posição sexuada, masculina ou feminina, via aberta por Freud em torno da lógica fálica, o que vai possibilitar a Lacan postular a posição feminina como não toda fálica, justamente em resposta ao gozo feminino. Afirma que estar na posição feminina é um dos efeitos decorrentes da sexuação dos sujeitos homens e mulheres. Conclui, assim, que "considerar-se homem ou mulher é um ato do discurso, um ato simbólico que produz uma marca de gozo, um furo no corpo que coincidirá ou não com o sexo anatômico" (MIRANDA, 2017, p. 17).

Seria a experiência do gozo feminino possível a todos? E a experiência do gozo místico? Santa Tereza e São João da Cruz, ambos místicos, teriam experimentado o êxtase do gozo místico da mesma forma? Seria a loucura histérica uma demonstração dos efeitos devastadores causados pelo gozo Outro ou uma defesa contra eles? Se o gozo suplementar feminino é decorrente da relação da mulher com o S(A),com o Outro do significante enquanto faltoso ou com o fora da norma fálica, então toda mulher, uma vez situada, poderia alucinar? Quais seriam os efeitos dessa posição na clínica? (Ibid., p. 19).

Foram estas as questões que instigaram Beth em sua pesquisa sobre o gozo na subjetividade, quer suplementar, feminino ou místico e que a incitaram a buscar responder com alicerces teóricos em Freud e Lacan, articulados à clínica e à literatura.

Nos cinco capítulos que integram a obra, a ética da psicanálise se faz presente, sobretudo nos relatos de casos clínicos, dos quais destaco o de Tereza - a prometida, jovem de treze anos que, em sua autoflagelação, goza falicamente e, em seus êxtases na capela em sacrifício à Santa Terezinha, experimenta um gozo Outro que é depois substituído pela loucura decorrente do encontro sexual com um rapaz que conhecera na igreja, numa aproximação do gozo feminino ao místico, ambos fora do falo.

Beth desenvolve a falta fálica na mulher partindo da definição de Lacan em A significação do falo, que ora transcrevo:

Na doutrina freudiana, o falo não é uma fantasia, caso se deva entender por isso um efeito imaginário. Tampouco é, como tal, um objeto (parcial, interno, bom, mal etc.), na medida em que esse termo tende a prezar a realidade implicada numa relação. E é menos ainda o órgão, pênis ou clitóris, que ele simboliza. E não foi sem razão que Freud extraiu-lhe a referência do simulacro que ele era para os antigos. Pois o falo é um significante [...] [que] levanta [...] o véu daquela que ele mantinha envolta em mistérios (LACAN, 1958/1998, pp. 696-697).

O destaque a este fragmento coloca o falo no lugar de um impossível de representação e marca, na concepção freudiana, a falta fálica na mulher como sendo aquela que não tem o falo. Uma leitura lacaniana do postulado freudiano da primazia fálica repagina o falo como um "significante", definindo-o como possível para todo ser da fala e também para o que está fora do registro, o enigmático dark continent feminino de Freud que Lacan teorizou como sendo a não toda.

A descoberta da falta fálica abre o caminho para o desejo, mas não para a feminilidade, pois a mulher, ainda que passe pela castração, não garante seu estatuto de mulher, apenas se inscreve na norma fálica. Como fazer-se mulher, então? Na histeria, o complexo de virilidade e a identificação ao pai são defesas contra a castração, o que leva a observar que, se por um lado a dissimetria entre o complexo de Édipo da menina e do menino situa-se no registro do simbólico, por outro, não há significante que diga A mulher. Destaco deste capítulo o caso de uma histérica que, em busca de sua verdade para a questão "sou homem ou mulher?", questiona sua suposta "homossexualidade". Ao explicar a razão pela qual, embora preferindo homens, sente-se algumas vezes atraída por mulheres, ela diz:

O que me interessa na mulher é a beleza, não uma beleza convencional, mas uma beleza que instiga e que não se apreende. A mulher é para mim como um quadro, um ponto de inapreensível, um texto que me causa, como diz meu pai, a mulher é feita de surpresas (MIRANDA, 2017, p. 74).

A clínica da histeria revela uma espécie de loucura própria às mulheres que, por não saberem transitar do lugar de objeto a nas fórmulas de sexuação - situado do lado não todo - para o lugar de sujeito dividido do lado todo fálico - referido ao Falo simbólico -, quando se veem ultrapassadas em seu gozo, caem e aí se abismam em um gozo Outro.

Beth traz passagens belíssimas da literatura e da clínica psicanalítica para falar do gozo feminino. Ao observar que o não todo fálico pode apresentar-se como um ponto intransponível no trabalho de decifração do sintoma, ela insiste em seu questionamento: "Que destino dar, então, à vivência do gozo Outro que ultrapassa o sujeito e, na maioria das vezes, é uma experiência devastadora?" (MIRANDA, 2017, p. 99). Assinala a não equivalência entre as posições masculina e feminina nos seus modos de gozo, em que o gozo feminino difere do gozo masculino, e marca a dissimetria entre os parceiros dos dois sexos: "Para um homem, a mulher é sintoma, desde que ele a situe no gozo fálico. Para uma mulher, todavia, um homem pode ser também uma aflição e até mesmo uma devastação. Quando esta se instala, deixa de haver laço possível entre um homem e uma mulher" (Ibid., p.100).

Seus testemunhos da presença angustiante da alteridade do feminino, da não toda fálica, da pregnância da devastação entre mães e filhas, da ex-sistência que cada mulher traz consigo e da presença do Outro sexo, seja na Literatura com Madame Sévigné - a mais bela epistológrafa da homossexualidade feminina, ou na escultura, com Camille Claudel na erotomania, atestam um registro fiel da mulher naquilo que lhe escapa.

Para finalizar, Beth se aprofunda no tema que a conduziu à pesquisa com um trabalho denso sobre o gozo feminino e a teoria da compacidade, para concluir com a loucura feminina e o gozo místico em Santa Tereza d'Ávila e em Hadewijch D'Anvers.

O admirável trabalho de pesquisa feito por Elisabeth da Rocha Miranda, muito bem fundamentado, com ricos exemplos clínicos que atravessam quase toda a obra, referenciais teóricos consistentes, é uma leitura que traz muitas novidades, principalmente no que se refere às fórmulas da sexuação, apontadas muito apropriadamente por Antonio Quinet na apresentação da obra, o que a coloca como um livro importante e necessário para aqueles que se dispuserem a mergulhar neste tema.

 

Referências bibliográficas

FREUD, S. (1894) As neuropsicoses de defesa. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 2.         [ Links ]

______. (1893-95) Estudos sobre a histeria. In: Ediç         [ Links ]ão Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 2.

______. (1917) Luto e melancolia. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 1.         [ Links ]

______. (1923) A organização genital infantil. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,1976, v. 19.         [ Links ]

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______. (1933) A feminilidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 22.         [ Links ]

LACAN, J. (1946) Formulações sobre a causalidade psíquica. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.         [ Links ]

______. (1967) Alocução sobre as psicoses da criança. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.         [ Links ]

MIRANDA, E. R. Desarrazoadas: devastação e êxtase. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2017.         [ Links ]

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