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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.35 Rio de Janeiro jul./dez. 2017

 

CONFERÊNCIA

 

O real infantil e a atualidade dos Três ensaios1

 

The infantile real and the actuality of the Three essays

 

Lo real infantil y la actualidad de los Tres ensayos

 

Le réel de l'enfant et l'actualité des Trois essais

 

 

Rosane Braga de Melo

 

 


RESUMO

Este texto aborda a atualidade das teses enumeradas nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, no qual Freud retoma os significantes usados por autores de sua época para se contrapor e indicar o quanto as chamadas psicopatias ou aberrações são ingredientes da vida sexual de pessoas consideradas sãs. Ao afirmar a existência da sexualidade infantil, ele problematiza o discurso que trata a criança como ser assexuado e mostra o quanto a educação concorre para as tentativas civilizatórias de sufocar a vida sexual de um povo e limitar o autoerotismo para fazer valer como única e legítima meta sexual a reprodução. Todavia, são as crianças as primeiras a rasgar os semblantes, a demonstrar a precariedade imaginária e a fluidez dos dois lados que lhes são apresentados como princípio do funcionamento do gênero, macho ou fêmea. E, nos casos das crianças trans, perguntamo-nos como o discurso do analista e a ética da psicanálise podem contribuir para uma discussão que não foraclua o modo como a criança pode se orientar a partir do gozo de sua própria condição de sujeito do desejo.

Palavras-chave: Sexualidade infantil; Discurso do analista; Ética; Psicanálise.


ABSTRACT

The text approaches the actuality of the enumerated theses in the Three essays on the theory of sexuality, in which Freud retakes the signifiers by authors of his time to counter and indicate how much the so-called psychopaths or aberrations are ingredients of the sexual life of people considered healthy. In affirming the existence of infantile sexuality, Freud problematizes the discourse that treats the child as an asexual being and shows how much education competes in the civilizing attempts to stifle the sexual life of a people and to limit autoerotism, to assert itself as sole and legitimate sexual aim the reproduction. However, children are the first ones to tear their faces, to demonstrate the imaginary precariousness and fluidity of the two sides presented to them as the principle of functioning of the genre, male or female. And in the cases of trans-children, we wonder how the analyst's discourse and the psychoanalysis ethics can contribute to a discussion that does not address how the child can orient themselves from the enjoyment of their own condition as subject of desire?

Keywords: Infantile sexuality; Analyst's discourse; Ethics; Psychoanalysis.


RESUMEN

El texto aborda la actualidad de las tesis enumeradas en los Tres ensayos para una teoría sexual, donde Freud retoma los significantes usados por autores de su época para contraponerse e indicar cuánto las llamadas psicopatías o aberraciones son ingredientes de la vida sexual de personas consideradas sanas. Al afirmar la existencia de la sexualidad infantil, Freud problematiza el discurso que trata el niño como ser asexuado y muestra cuánto la educación concurre para los intentos civilizatorios de sofocar la vida sexual de un pueblo y limitar el autoerotismo, para hacer valer como única y legítima meta sexual la reproducción. Sin embargo, son los niños los primeros a romper los semblantes, a demostrar la precariedad imaginaria y la fluidez de los dos lados que les son presentados como principio del funcionamiento del género: macho o hembra. En los casos de los niños trans, nos preguntamos cómo el discurso del analista y la ética del psicoanálisis pueden contribuir con una discusión que no foraclúa el modo como el niño puede orientarse a partir del goce de su propia condición de sujeto del deseo.

Palabras clave: Sexualidad infantil; Discurso del analista; Ética; Psicoanálisis.


RÉSUMÉ

Ce texte traite de l'actualité des thèses exposées dans les Trois essais sur la se xualité, dans lesquelles Freud reprend les signifiants utilisés par les auteurs de son temps pour contraster et indiquer comment les soi-disantes psychopathies ou aberrations étaient des ingrédients de la vie sexuelle des gens considérés "sains". En affirmant l'existence de la sexualité chez l'enfant, Freud met en question le discours qui considérait l'enfant comme un être asexué, et montre combien l'éducation contribue aux tentatives civilisatrices d'étouffer la vie sexuelle d'un peuple, et de limiter son auto-érotisme, pour faire de la reproduction le seul objectif de la vie sexuelle. Cependant, les enfants sont les premiers à déchirer les semblants, à démontrer la précarité imaginaire et la fluidité des deux côtés qui leur sont présentés comme le principe du fonctionnement du genre, soit le masculin ou le féminin. Et dans le cas de l'enfant trans, on se demande comment le discours de l'analyste et l'éthique de la psychanalyse peuvent contribuer à une discussion qui ne forclos pas la façon dont l'enfant peut s'orienter à partir de la jouissance de sa propre condition de sujet du désir.

Mots-clés: Sexualité de l'enfant; Discours de l'analyste; Ethique; Psychanalyse.


 

 

Após escrever os Três ensaios,2 Freud (1905/2011) desejava que o texto envelhecesse rapidamente e avisava que ele só poderia conter o que a psicanálise pode sustentar e permite comprovar. Vamos tomar os Três ensaios (1905/2011) como um texto-resposta3 às teorias vigentes, e autores como Richard von Krafft-Ebing (1886/1895), autor de Psychopathia sexualis, e Henry Havelock Ellis (1897/2013), autor de Inversão sexual. Nele, Freud retoma as teses e os significantes usados por esses autores para justamente se contrapor a essas teses e constrói Três ensaios para indicar que as chamadas psicopatias ou aberrações são ingredientes da vida sexual de pessoas consideradas sãs. Se a meta sexual dentro da moral sexual dominante é a reprodução, então, diz Freud, todo ato sexual presentifica as aberrações, pois nele encontramos metas sexuais preliminares, marca indelével da sexualidade infantil.

Isso deveria bastar para mostrar quão inadequado é o uso do termo perversão, sinônimo de psicopatia à época, lá onde estava classificada a homossexualidade. Ainda nos Três ensaios, em nota de rodapé acrescentada ao texto no ano 1915, Freud assevera que a psicanálise se opõe terminantemente à tentativa de separar homossexuais como espécie particular de seres humanos. Nada é obvio, tampouco o interesse pelo sexo oposto; tudo requer esclarecimentos, pois não se trata de escolhas determinadas por fatores químicos. A premissa da independência das investigações biológicas e a intenção de ampliar o conceito de sexualidade conduziu Freud a uma aproximação com o Eros de Platão.

À época dos Três ensaios (1905/2011), a sexualidade infantil somente era admitida como aberração, pois a herança das teses rousseaunianas inscreveu a criança no discurso como ser assexuado.4 Além de propor a bissexualidade como ponto de partida para discutir as posições culturais que definem gênero, Freud adverte que devemos afrouxar os laços entre pulsão e objeto e recorre a dados históricos, antropológicos e clínicos para exemplificar a variedade e a diversidade desses laços. O essencial da pulsão não é a classe nem o valor do objeto, pois a finalidade da pulsão não é atingir o objeto, mas contorná-lo. Aliás, é na modernidade que encontramos uma supervalorização do status do objeto. Tempos modernos, que, sob a égide do discurso capitalista, potencializam o valor de troca e nos distanciam do valor de uso de todo e qualquer objeto.

Transgressora é a pulsão, na condição inicial das pulsões parciais, que leva o sujeito a experimentar todas as transgressões possíveis. Daí por diante, perversas e polimorfas são as pulsões. As exteriorizações da sexualidade infantil, como o chupetar e as práticas masturbatórias (erotismo anal e enurese noturna), indicam por onde caminha esse gozo, que só dispõe das pulsões parciais em função da falta do primado do falo, e que, portanto, se mantém aquém da diferença sexual. A ficção moderna da infância dessexualizada somente contribuiu para o descuido da infância e a ignorância sobre as bases da vida sexual: o que a educação fundamentada na moral sexual civilizada teme, a psicanálise considera esclarecedor sobre a constituição inicial da vida amorosa de todo falante. Ora, toda a atividade sexual infantil, ao cair sob a barra do recalque, concorre para a amnésia do infantil (Freud, 1913/2011) na vida adulta, o que explica as inibições sexuais, as formações reativas e mesmo a sublimação.

Não é à toa que são as crianças as primeiras a rasgar os semblantes, a demonstrar a precariedade imaginária e a fluidez dos dois lados que lhes são apresentados como princípio do funcionamento do gênero, macho ou fêmea (Lacan, 1973-1974). A criança brinca de atravessar as fronteiras de gênero; ela cria com as posições formalizadas nas fórmulas da sexuação (Lacan, 1972-1973/2008), independentemente dos significantes que as nomeiam na cultura.

A tese de Freud é atual: o antagonismo entre a civilização e a vida pulsional produz mal-estar, doenças, doenças modernas à época de Freud, as chamadas neuroses tóxicas, com uma série de prejuízos e efeitos nocivos. Esse antagonismo, afirmado por Freud desde o Manuscrito N (1897/2011), concorre para as tentativas sempre danosas de sufocar a vida sexual de um povo (Freud, 1908/2012). À educação, fundamentada na moral sexual civilizada dominante, cabe, em geral, a tarefa de limitar o autoerotismo para fazer valer como única e legítima meta sexual a reprodução. Tudo que for desvio dessa meta torna-se psicopatia ou aberração.

 

A sexuação e o discurso heteronormativo

No Brasil, no campo da educação, na última década, em duas ocasiões, a discussão sobre identificação sexual e questões relacionadas com as escolhas de gênero foi destituída pelo discurso hetenormativo, fascista, higienista. Em 2004, o governo federal lançou o programa Brasil sem Homofobia na tentativa de combater a violência e o preconceito contra a população LGBTTTIQ.5 Estava em foco a formação de educadores para tratar questões relacionadas com o gênero e a sexualidade. Nascia aí o projeto "Escola sem Homofobia". O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) contribui para a elaboração do material - kit gay, como acabou pejorativamente conhecido -, que seria distribuído às instituições educacionais de todo o país. Em 2011, quando estava pronto para ser impresso, setores conservadores da sociedade e do Congresso Nacional iniciaram uma campanha contra o projeto, alegando que o material era responsável por estimular a homossexualidade e a promiscuidade. O governo cedeu à pressão e suspendeu o projeto.

Em 2016, nova polêmica. Na tramitação do Plano Nacional de Educação (PNE), que dita as metas educacionais para os próximos 10 anos, aprovado em junho de 2014, houve um trecho específico, que abordava a questão de gênero, que foi retirado do texto após polêmica sustentada por bancadas religiosas. Desde então, o discurso religioso insiste na expressão "ideologia de gênero" para se referir às concepções propagadas sobre o espectro de escolhas possíveis para além de "macho ou fêmea". Para o discurso religioso, tal ideologia somente serve para deturpar os conceitos de homem e mulher e destruir o modelo tradicional de família. O texto vetado no PNE sublinhava "a superação de desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual". A versão final do PNE, hoje, não faz nenhuma menção às duas últimas questões, ou seja, exclui menções ao combate à discriminação de gênero, o que deixa para estados e municípios a decisão de incluí-las ou não em seus planos educacionais.

Ainda no âmbito legislativo, em 2013, o projeto de lei (PL) denominado Lei João W. Nery, Lei de Identidade de Gênero, foi apresentado por Jean Wyllys (PSOL/RJ) e Erika Kokay (PT/DF), todavia até hoje aguarda designação de relator na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM). O PL dispõe sobre o direito à identidade de gênero e altera o artigo 58 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973.6 Em comparação, na Argentina, o debate social sobre os direitos de pessoas do mesmo sexo tem início no ano 2000, e em maio de 2012 é sancionada a Lei nº 26.743, sobre identidade de gênero. Além de garantir o reconhecimento e a liberdade de gênero dos indivíduos, essa lei não apenas garante a alteração de registros e documentos conforme a "identidade de gênero autopercebida", mas também permite, nos sistemas públicos de saúde, as intervenções cirúrgicas e os tratamentos hormonais necessários. Trâmites burocráticos também foram eliminados, de modo a facilitar o processo de mudança - apenas o consentimento do interessado é necessário, sem que seja preciso percorrer infindáveis instâncias jurídicas.

 

Yo nena, yo princesa

O livro Yo nena, yo princesa, escrito por Gabriela Mansilla, mãe de uma menina trans, foi publicado pela Universidade Nacional de General Sarmiento em 2016. Nele, Gabriela narra a história de Luana, sua filha, e sua conquista do reconhecimento estatal de identidade de gênero autopercebida e assumida por uma criança, sem a mediação de um processo judicial, na Argentina. Os pais de Luana buscam a área de saúde da Comunidade Homossexual Argentina (CHA) pela persistência de Luana de identificar-se como menina desde os 2 anos de idade. No ano 2011, tem início esse trabalho de acompanhamento e assessoria institucional para Luana e sua família. Inicialmente, a área de saúde da CHA dialoga com os educadores da escola na qual Luana ingressaria no ano seguinte e fala sobre a importância de ela frequentar a escola com trajes de menina. Assim que a lei de identidade de gênero foi aprovada, a família solicita as mudanças no registro de nascimento da filha para posteriormente solicitar um novo documento de identidade para ela. Ao receber a negativa do Registro Civil da província de Buenos Aires, com o argumento de que "o menor de 14 anos é considerado incapaz absoluto", partem para uma estratégia midiática na tentativa de escapar de um processo judicial, que podia durar muitos anos. A estratégia midiática serviria também para sensibilizar as autoridades. Duas cartas foram escritas e dirigidas à Presidência e ao governador da província de Buenos Aires. Foi realizada uma verdadeira epopeia administrativa, política e institucional, que teve fim em setembro de 2013. Luana, para os assessores que a acompanhavam, era uma "menina transexual com uma clara definição de sua identidade de gênero".

No ano 2007, Gabriela Mansilla, após uma gravidez de alto risco, dá à luz dois meninos, Frederico e Manuel. Desde os primeiros dias de vida, a mãe enfatiza a tristeza de Manuel, que era o filho que mais exigia sua atenção, o mais sensível. "Notava-se em seu olhar; surpreendiam-se seus olhos profundamente tristes." Aos 2 anos de idade, ao ver a mãe dançando usando uma saia, a criança busca no guarda-roupa dela também uma saia, pede que ela a vista com a saia e, depois disso, não quer tirá-la nunca mais. Quando a saia era tirada, ficava em prantos; durante meses, insistiu em colocar as roupas da mãe e passava o dia inteiro pedindo a saia. Vestia-se com as camisetas da mãe, usando-as como vestidos. Precisava se vestir para brincar. Em muitas noites, acordava aos gritos. Seus desenhos preferidos eram os das princesas. Em torno dos 20 meses, começou a dizer "yo nena, yo princesa", e, quando os pais diziam "Você não é uma menina, você é um menino", a reação era violenta, destrutiva. Podia chorar horas, bater a cabeça na parede, arrancar os cabelos, morder-se.

Em agosto de 2010, uma psicóloga convenceu os pais a usar um método corretivo, sendo o resultado ainda mais desastroso. Guardam os filmes, passam cadeado nos armários, não se permite que vista as roupas da mãe. Quando lhe retiravam a roupa, a mãe declarava: "Eu sentia que estava arrancando a sua pele." Passou a mentir e a dissimular suas brincadeiras diante dos pais. Mas, em qualquer oportunidade, tirava até mesmo as roupas molhadas do varal ou mesmo um pano de chão para simular uma roupa de menina. Os pais finalmente desistem desse tratamento.

Com 4 anos de idade, Luana diz: "sou uma menina e me chamo Luana", o que ocorre logo após os primeiros dias no jardim de infância. Na escola, começa a ficar triste por usar calça e por ser colocada na fila dos meninos. Em 2011, passa a ser atendida em um hospital que tinha um serviço de atendimento para casos de transgêneros.

Em agosto de 2011, com 5 anos, começa a evitar tocar no pênis no banho ou mesmo fazer pipi, repetindo frases como: "Frederico tem um penecito, yo no", "O penecito não está, se foi... está na escola", "Não posso fazer pipi porque não tenho pênis", "Você tem penecito, mamãe?".

Uma formulação apaziguadora vem em outro momento: "Meu penecito é menina e está feliz."

Após questionar por que as bonecas não têm penecito como ela, a mãe coloca um pênis de massinha em todas as suas bonecas, e Luana exclama: "Todos vão ter penecito como eu... essa sou eu!"

Após receber o DNI (Documento Nacional de Identidad), Luana passa a exclamar: "Me dieron un documento. Yo nací varón y tengo pene. Soy una nena diferente."

 

Questões

Freud, em 1923, não se considera satisfeito com a tese de 1905, aquela que versava sobre o fato de o primado dos genitais não se consumar na primeira infância ou ocorrer apenas de forma incompleta. A vida sexual da criança e a do adulto se aproximam muito mais do que pela eleição de objeto, diz ele em 1923. Reconhece ali que o interesse pelos genitais exige uma elaboração desde cedo, e a primeira teoria infantil se assenta sobre o primado do falo. Para ambos os sexos, há apenas um genital em jogo, o masculino. Conclui Freud (1923/2012, p. 146): "não há um primado genital, senão um primado do falo", e passa a descrever o que ocorre com os meninos, admitindo não ter dados suficientes para compreender o que se passa com as meninas. Ao perceber a diferença entre meninos e meninas, aquela "parte do corpo" passa a ocupar um alto grau de interesse para os meninos. No curso de suas indagações, é notória, para Freud, a reação diante das primeiras impressões sobre a falta de pênis: desmentem essa falta, que será entendida como resultado de uma castração, o que nos remete ao complexo de castração e seus avatares. A própria disposição para a homossexualidade derivaria do convencimento final sobre a falta de pênis na mulher. Observamos que, nesse texto, Freud considera que o menino não conclui de modo tão rápido e de bom grado que as meninas não têm pênis, pois isso adviria como um castigo.

Luana, ao contrário, declara muito rápido que não quer ter pênis. Atributos femininos (saia, vestidos, bonecas) e, por fim, um nome compensam seu descontentamento, quase que desesperado, com sua própria imagem. Um pênis, ao não ser falicizado, pode então sofrer esse desprezo como uma "parte do corpo", e o horror não é de perdê-lo, mas de tê-lo. Esse "pênis traumático", ao qual Lacan se refere em Conférence à Genève sur le symptôme (1975/1985), ou a experiência de ereção como primeiro gozar traumático, parece produzir em Luana uma experiência intolerável, que apenas os significantes podem apaziguar: "Me deram um documento que diz que nasci menino e com pênis. Eu sou uma menina com pênis, uma menina diferente."

O que pode, em determinado momento da constituição do sujeito, implicar esse estar aquém da diferença sexual? Qual o tempo possível para um sujeito colocar-se no tempo de seu desejo? O sofisma dos três prisioneiros de função e campo da fala e da linguagem (Lacan, 1953/1998) lembra-nos que toda ação humana se organiza pela ação do outro, e a solução do desejo de um sujeito não advém sem hesitações e escansões. Essa é, a meu ver, uma questão muito delicada quando nos referimos às crianças-trans. Como o discurso do analista e a ética da psicanálise podem contribuir com uma discussão que não foraclua o modo como a criança pode se orientar a partir do gozo de sua própria condição de sujeito do desejo?

 

Referências bibliográficas

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Recebido: 11/01/2018
Aprovado: 11/01/2018

 

 

1 Texto apresentado na II Jornada Interamericana da Escola, no II Simpósio Interamericano da IF e no XVIII Encontro Nacional da EPFCL-Brasil - Sexuação e Identidades, setembro de 2017.
2 São eles: 1) As aberrações sexuais, 2) A sexualidade infantil, 3) As metamorfoses da puberdade. Foram seis reedições alemãs: 1910, 1915, 1920, 1922, 1924, 1925.
3 Proposta seguida na construção deste texto a partir do que foi sugerido por Antonio Quinet (em aula, FCCL, 2017).
4 Tema desenvolvido por Martins (2007, pp. 41-48).
5 Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros, travestis, intersexuais e queers.
6 LRP - Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências.
"Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios (Redação dada pela Lei nº 9.708, de 1998).
Parágrafo único. A substituição do prenome será ainda admitida em razão de fundada coação ou ameaça decorrente da colaboração com a apuração de crime, por determinação, em sentença, de juiz competente, ouvido o Ministério Público (Redação dada pela Lei nº 9.807, de 1999)."

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