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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.35 Rio de Janeiro jul./dez. 2017

 

ARTIGO BILÍNGUE

Incesto: o tabu de Édipo. Quando a função de "pelo menos um que não" falha1

 

Incest: the Oedipus Taboo. When the function of "at least one that does not" is failed

 

L'inceste: le tabou d'Œdipe. Quand la fonction du "au moins un" échoue

 

 

Agustina Saubidet Bourel; Tradução de Yordy Licea Fonseca; Rosana Maldonado Torres2

 

 


RESUMO

Desde cedo, Lacan pôde destacar os efeitos devastadores do incesto, colocando essa questão em termos de devastação. Em geral, essa parece ser a referência mais comum utilizada nos casos de incesto para explicar a gravidade sintomática dos pacientes. No entanto, quando Lacan desenvolve o nó borromeano no Seminário 22 (complexo de Édipo - realidade psíquica freudiana), confere à interdição do incesto um caráter estruturante e simbólico, sendo, segundo Lévi-Strauss, a norma/intervenção (universal e particular ao mesmo tempo) que permite a passagem da natureza à cultura. Essas referências exigem, então, que revisemos a questão do incesto em termos lógicos das fórmulas de sexuação, e não tanto do sentido descritivo do tema, tornando visível o fracasso estrutural da função "pelo menos um que não" (desenvolvido durante os Seminários 18, 19 e 20) e suas implicações no nível do complexo de Édipo (como o quarto que amarra os três registros) e das políticas de gozo. Sem dúvida, a mulher como objeto de gozo, desenvolvida no Seminário 14, mais as contribuições recentes de Silvia Federici sobre as mulheres, o corpo e a acumulação original, serão passagens necessárias para entender o lugar da mulher e do capital em toda essa questão tão estranha quanto ameaçadora.

Palavras-chave: Incesto; Avunculado; Lévi-Strauss; Gozo.


ABSTRACT

From an early age, Lacan was able to highlight the devastating effects of the incest, placing this question in terms of ravage. In general, this seems to be the most common reference used in cases of incest to account for the symptomatic severity of patients. However, when Lacan develops the Borromean knot in Seminar 22 (Complex of Oedipus - Freudian psychic reality), it confers on the interdiction of the incest a structuring and symbolic character, being, according to Lévi-Strauss, the norm/intervention (universal and particular at the same time) that allows the passage from nature to culture. These references then require us to review the question of the incest in logical terms of the sexuation formulas and not so much from the descriptive sense of the subject, making visible the structural failure of the "at least one that does not" function (developed during the Seminars 18, 19 and 20) and its implications at the level of the Oedipus Complex (as the fourth one that knots the three registers) and the policies of enjoyment. Undoubtedly, women as an object of enjoyment, developed in Seminar 14, plus the recent contributions from Silvia Federici on women, body and original accumulation, will be necessaries passages to understand the place of women and capital in this whole question, which is as strange as it is ominous.

Keywords: Incest; Avuncular; Lévi-Strauss; Jouissance.


RÉSUMÉ

Lacan a su très tôt mettre en évidence les effets dévastateurs de l'inceste, en plaçant cette question en termes de ravage. En général, celle-ci semble être la référence la plus couramment utilisée dans les cas d'inceste pour expliquer la gravité symptomatique des patients. Toutefois, lorsque Lacan développe le nœud borroméen dans le Séminaire 22 (Complexe d'Œdipe - la réalité psychique freudienne), il attribue à l'interdiction de l'inceste un caractère structurant et symbolique, puisque, selon les termes de Lévi-Strauss, c'est la norme/intervention (à la fois universelle et particulière) ce qui permet le passage de la nature à la culture. Ces références nous obligent alors à revoir la question de l'inceste dans les termes logiques des formules sexuation, et non pas dans son sens descriptif, ce qui rend visible la défaillance structurelle de la fonction d'"au moins un" (mise au point au cours de Séminaires 18, 19 et 20), ses implications au niveau du Complexe d'Œdipe (comme le quatrième noeud qui noue les trois registres) et des politiques de jouissance. Sans aucun doute, la femme comme objet de jouissance -tel qu'elle est décrite dans le Séminaire 14 -, ainsi que les les contributions récentes de Silvia Federici à propos des femmes, du corps et de l'accumulation originaire seront des thèmes importants à analyser pour comprendre la place des femmes et du capital dans cette question aussi étrange que menaçante.

Mots-clés: Inceste; Avunculaire; Lévi-Strauss; Jouissance.


 

 

Introdução

Na época de Freud, na Paris de Charcot, entre 1858 e 1869, foram verificados 11.576 casos de pessoas acusadas de estupro; as vítimas, principalmente mulheres com menos de 16 anos, inclusive até 4 e 5 anos de idade (Giberti, 2014).

Atualmente, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 20% das mulheres foram abusadas sexualmente na infância, enquanto os homens, entre 5% e 15%. A maioria dos casos se refere a abusos no nível intrafamiliar. Geralmente, permanecem escondidos.

Os poucos casos denunciados e finalmente condenados pela justiça são os de um estrato econômico-social-cultural baixo. Essas, entre outras razões, levaram-nos a questionar as particularidades desse tipo de abuso.

Após mais de 10 anos de pesquisas sobre o assunto3 - que inclui não apenas o olhar da psicanálise, mas de outros saberes pelos quais esta tem sido nutrida: antropologia, economia, filosofia e topologia -, conseguimos isolar certas peculiaridades clínicas que de nenhuma maneira devem ser universalizadas, mas que têm de ser levadas em consideração. Gostaríamos de esclarecer que todos os casos referidos eram de mulheres adultas, abusadas durante a infância por avós, pais, irmãos, tios ou padrastos, em ocasiões repetidas e de diferentes maneiras. Com uma característica geral: o silêncio.

Até hoje, o abuso é vivido e lembrado pelas pacientes com culpa, e sua memória mantém absoluta nitidez sensorial (como se o tempo não tivesse mudado nada). Sua afetação parece intacta. Tomamos aqui como referência o conceito freudiano de sinais perceptíveis (ligado à noção de hipernítido): é um tipo de marca mnêmica altamente resistente, que o trabalho da cadeia significante não consegue penetrar, pois seu material psíquico corresponde a inscrições primeiríssimas, originárias e/ou a situações traumáticas que podem ocorrer em qualquer momento da vida e que superam as possibilidades de processamento que até então tem o aparelho psíquico.

Em nível temporal, o relato oral dos pacientes apresenta um deslocamento. O modo verbal não é afetado, mas o tempo, sim. Um tipo de passado presente contínuo.

No nível da escrita, podem ocorrer mudanças de lugar de letras ou substituição parcial. O que chama a atenção é que o significado é preservado. Em nosso entendimento, isso pode ocorrer se for mantida alguma referência ao sentido dado pela musicalidade da lalangue, localizando certas sonoridades (fonemas) em lugares muito específicos, servindo essa posição como referência à estrutura de uma significação. Não se trata de um neologismo.

Muitas vezes, são ouvidas nessas pacientes sobreposição e confusão de nomes, lugares e funções. Seu relato é desordenado. Há perda de referência discursiva no nível da significação (mas o que chama atenção é que isso depende do tema de que se trata).

No nível espacial, há perda da diferença entre um interior e um exterior, bem como de seus limites. Dessa forma, podem apresentar episódios de perda de referência na estrutura espacial, evidenciando uma queda do corpo, perda em seu suporte.

No nível corporal, também se observa, de repente, uma explosão de angústia transbordante, que parece tomar todo o corpo. Um excesso sem palavras, sem medida. Excesso que se manifesta na voz e nos gestos corporais. O intenso toma o corpo e o transborda.

Há presença recorrente de acidentes e situações de risco, às vezes procuradas (consumos excessivos, tentativas de suicídio etc.), sem registro de cuidados corporais. Em outros casos, sem consciência de risco. Pode-se dizer: "de acting em acting".

É difícil e inútil fazer um diagnóstico estrutural do tipo neurose ou psicose. Às vezes, elas são chamadas de "muito neuróticas" (especialmente no que concerne ao âmbito do trabalho), e, em outras, muito desamarradas, desarticuladas. Excessivas: "muito loucas".

Se observa também uma confusão entre o plano da fantasia e o da realidade. Por exemplo: para essas pacientes, não é uma fantasia o fato de suas irmãs poderem dormir com seus maridos, é uma realidade; como se a função do losange da fantasia, aquela que garante a distância entre a coisa e o sujeito, por momentos, deixasse de funcionar.

Em todos os casos, observaram-se antecedentes de incesto na família.

Outro fato interessante: os abusos sexuais cessam quando a criança entra na adolescência, ou seja, quando está biologicamente pronta para procriar.

Por outro lado, se alguém lê em detalhes o manejo intrafamiliar do dinheiro, nota-se uma gramática econômica similar em todos os casos; uma ordem de superegóica que poderia ser resumida na seguinte fórmula: "aproveitar o mais próprio ao menor custo" (juntamente com as relações de poder derivadas dela).

Não é incomum encontrar, assim, personagens familiares economicamente sustentados pelos pacientes, que são tratadas literalmente como escravas, "usufruídas" por sua mãe ou seu pai, sem possibilidade de uma saída para o exo. Histórias de repetidos fracassos amorosos (principalmente por maus-tratos e abuso), que as conduzem novamente ao lado de suas mães, onde continuam a ocupar o mesmo lugar de objeto resto. Devemos lembrar que, como observado por Freud em Sobre o início do tratamento (1913/1991), o dinheiro nos mostra os manejos em relação ao poder, de que os fatores sexuais também coparticipam.

A justiça geralmente castiga a pessoa que executa o ato (embora raramente sejam realmente condenados), mas, em geral, permanecem totalmente invisíveis outros personagens sinistros que tiveram algum proveito da denegação sistemática do abuso. Muitas vezes, essas pacientes, em suas tentativas sempre infrutíferas de obter uma saída exogâmica das estruturas de sua própria família, retornam novamente para o lado de suas mães, como se não houvesse outro lugar possível para elas.

Agora, o que pode estar ligando essa pluralidade heterogênea de "expressões sintomáticas"? Seguindo Lacan (1976-1977, inédito) no Seminário 24, aula de 11 de janeiro de 1977, se a gramática do inconsciente há de ser eliminada, mas não sua lógica, para entender a questão do incesto será fundamental analisar essas premissas em termos lógicos, e não meramente descritivos, separando-nos, assim, da gramática imaginária, que não faz mais que dar um sentido comum, tornando invisível o ponto central em sua abordagem: suas políticas de gozo. Compreendemos aqui, por políticas de gozo, certo modo de distribuição do gozo, efeito do discurso - isto é, certo número de relações estáveis, fundamentais (Lacan, 1969-1970/2002, pp. 10-11).

 

Lacan com Lévi-Strauss: as estruturas elementares de relacionamento

Já em Função e campo da fala e da linguagem (1953/1985), Lacan nos adverte sobre os efeitos devastadores que os casos de incesto mostram. Indubitavelmente, a referência a Lévi-Strauss e às Estruturas elementares de parentesco (1949/1981) será a chave para revelar esse mistério. Ali se enunciam três questões centrais para a psicanálise:

1) A passagem da natureza para a cultura é irreversível e é dada por uma intervenção que inaugura a cultura: "a lei da proibição do incesto", que tem a característica de ser universal em sua estrutura (porque em cada cultura há pelo menos um elemento que é proibido), mas particular em seu conteúdo (o que varia de cultura para cultura é a significação particular que essa regra assume e o elemento particular em que a proibição recai). Dessa forma, como Malinowski (1932/1975) já havia demonstrado - referência feita por Lacan em 1938 -, o complexo de Édipo não é universal. É uma versão particular que assume a interdição do incesto, ligada ao modelo de família que propõe o modo de produção capitalista, com as particularidades que isso implica.

2) A proibição do incesto contém um aspecto proibitivo e outro aspecto habilitador: por um lado, proíbe, ao mesmo tempo que permite o movimento para a exogamia, em busca daquilo com que, de fato, pode enlaçar-se. Ou seja, exige fazer laço com o exterior, com o diferente, com o outro, mas não de qualquer maneira.

3) A lei da proibição do incesto é uma lei basicamente econômica, não moral. Envolve a distribuição e os modos de circulação e troca de bens, entre os quais Lévi-Strauss localiza as mulheres, mas não todas, porque nem todas as mulheres são desejáveis, constituindo-se, então, em um bem escasso. Por isso, a cultura deve intervir para regular sua distribuição e garantir sua sobrevivência. Dessa forma, os modos familiares de cada cultura respondem ao modo econômico de que a cultura precisa para sobreviver. O modo econômico não são apenas as formas de distribuição dos bens excedentes, mas também suas formas de consumo.

Segundo Françoise Héritier (Héritier, Cyrulinik, Naouri, Vrignaud, & Xanthakou, 1995, p. 8):

A proibição do incesto não é outra coisa que uma separação do mesmo, cuja acumulação, pelo contrário, é temida como nefasta. Reciprocamente, a busca do incesto não seria possível senão em uma cultura na qual o acúmulo de identidades seja procurado como algo da ordem do propício.

Essa lógica cumulativa do idêntico que o incesto propõe - em que todas as mulheres que deveriam doar-se em troca são acumuladas para si - vai contra a subsistência da cultura como tal, pois, ao satisfazer-se com os próprios bens, não cede nada, nem troca com o exo, negando a diferença. O incesto se aproxima do imperativo de gozo do modo de produção capitalista: "gozar com o mais próprio", "acumular o idêntico", "não perder nada". Será que, então, incesto e capitalismo são sinônimos em termos lógicos em seu modo de funcionamento?

 

Lacan com Marx: o corpo que gera mais-valia

Durante as Conferências e conversas com universidades norte-americanas, Lacan (1975, inédito) afirma que o primeiro que teve a ideia de sintoma foi Marx. E acrescenta: "O capitalismo é indicado por certo número de efeitos, que são sintomas; é um sintoma na medida em que Marx imputa à humanidade ter uma norma; e ele escolhe a norma proletária."

Nessa mesma época, no Seminário 22: RSI, Lacan insiste novamente em que a origem da noção de sintoma deve ser buscada em Marx, no vínculo particular que ele faz entre o capitalismo e o tempo feudal. E afirma: "O capitalismo é considerado como tendo certos efeitos. Esses efeitos são benéficos, pois têm a vantagem de reduzir a nada o homem proletário" (Lacan, 1974-1975/1989, p. 93, inédito).

E continua:

Se fizermos do homem, não mais o que quer que seja que veicula um futuro ideal, mas se o determinarmos, em cada caso, pela particularidade de um inconsciente e da maneira como ele goza disso, o sintoma permanece no mesmo lugar em que o deixou Marx. Contudo, toma outro sentido: não será um sintoma social, será um sintoma particular.

Sem dúvida, esses sintomas particulares têm tipos, e o sintoma do obsessivo não é o sintoma da histérica. (Lacan, 1974-1975/1989, p. 93, inédito)

Dessa forma, é essencial levar em conta as gramáticas econômicas particulares que o capital nos corpos (pela via dos saberes e dos poderes), a fim de desconstruí-las para isolar sua lógica e entender como funcionam.

Seguindo Marx (1844/1993), a lógica do modo de produção capitalista parte da separação dos meios de produção, da força de trabalho (isso não ocorre em outros modos de produção). É, assim, dividido em duas classes: (1) o proletariado, que só tem sua força de trabalho (energia humana necessária para produzir), que se vende como mercadoria em troca de um salário (dinheiro) para a (2) classe burguesa. Esta outra classe (de origem mercante) tem os meios de produção, mas não produz. Paradoxalmente, se apropria do lucro produzido por outros (mais-valia que se acumula, gerando capital, trabalho humano acumulado). Isso quer dizer que, pelo simples fato de ser a dona dos meios de produção, a burguesia vive do que é produzido por outros corpos (proletários), aos que toma e compra como objetos para se autossatisfazer. Assim, a classe burguesa não perde nada, não coloca nada, não doa nada.

Será central, então, como Lacan salienta no início do Seminário 20 (1972-1973/2015), pensar sobre a ideia de usufruto, juntamente com a ideia de proprie dade privada, articulação particular do modo de produção capitalista (uma vez que existem outras formas de propriedade que não são privadas), como um ponto central para pensar seus efeitos nas políticas de gozo.

Recentemente, a socióloga italiana Federici (2015) criticou fortemente o pensamento de Marx: este omitiu fazer referência à acumulação originária resultante da exploração histórica do corpo das mulheres (pois, uma vez que não geram dinheiro, por não serem remuneradas, seus trabalhos não foram considerados).

Se as mulheres são um bem - como pensa Lévi-Strauss e Lacan rememora durante o Seminário 14, aula de 12 de abril de 1967 (a mulher como objeto de gozo) (Lacan, 1966-1967/1989) -, esse bem, ao contrário de outros bens, tem um valor econômico adicional: à sua escassez e sua capacidade de reprodução se soma sua capacidade de trabalho. No modo de produção capitalista, esse valor adicional está nas mãos do homem que a possui (versão triste do patriarcado). Mas lembre-se das palavras de Lacan (1971, inédito): o dinheiro não é a única maneira de gerar mais-valia.

"O corpo como objeto de gozo" (do Outro) parece ser a gramática proposta pelo modo de produção capitalista: baseia-se sempre em uma estrutura de exploração desigual, que se reflete de forma semelhante em um nível lógico na estrutura da fantasia de "bate-se numa criança", em que um outro abusa de um outro em inferioridade de condições. Ou seja, é baseada em uma relação de poder, marcada pela desigualdade, da qual se tira proveito; em que o grau extremo dessa lógica seria o incesto.

O corpo em posição "proletária" é tomado, assim, como objeto mercadoria, do qual se extrai a mais valia (Marx, 1867/1987), o que agrega ao valor de uso (ligado à necessidade) o valor de gozo (Lacan, 1966-1967/1989, aula de 12 de abril de 1967), um mais -valor, um valor adicional, e, com isso, o que pode ser usufruído ali ao menor custo.

Não se trata da materialidade de um corpo pensado em termos biológicos, homem ou mulher; trata-se de pensar o corpo como uma superfície que, por efeito não só de lalangue, mas do discurso, se constitui como um corpo sexuado de determinada maneira, para determinada posição em relação ao gozo e a suas políticas, a partir de múltiplos planos, atravessados não apenas por significantes desordenados, mas por poderes, saberes e discursos (Foucault, 1992), que são muito mais complexos do que os simples binarismos cienciobiológicos macho-fêmea.

Em todo caso, trata-se de pensar quais modos de gozo estruturais e históricos são colocados lá em jogo (Foucault, 1980), sobre essa superfície, sobre essa narrativa singular.

 

O avuncular e os Nomes-do-Pai

Lévi-Strauss, em Análise estrutural em linguística e antropologia (1945/1987), cria o que chamou o átomo elementar de parentesco (composto de quatro elementos, quatro atitudes, três relações), que acrescenta à tríade freudiano-biológica (pai-mãe-filho) um quarto termo (cultural/simbólico): o avuncular ou tio mater no, "condição da estrutura", o representante do pai da mãe, marca da intervenção da cultura sobre o biológico (Lévi-Strauss, 1945/1987; Basualdo, 2010).

A proibição repousa sobre esse termo avuncular, pois a possibilidade de aliança com o exo provém de renunciar ao gozo sexual com sua irmã e doá-la como objeto de intercâmbio (sendo excluído da possibilidade de aliança com o idêntico). Em outras palavras, para que haja troca simbólica, é uma primeira condição renunciar a algo do gozo com o um (com o próprio).

Considerando o caráter polissêmico do avuncular concedido por Lévi-Strauss (1945/1987), algumas de suas possíveis traduções para a psicanálise, em termos de função, poderiam ser: o pai como nomeante (Lacan, 1974-1975/1989), o pai como o doador (Lacan, 1956-1957/2016), o pai real (Lacan, 1969-1970/2002), o pai da horda, que deve ficar excluído (Lacan, 1969-1970/2002, 1971-1972/2012) etc.

No interior da estrutura, é o representante do pai da mãe, do nome do pai da mãe, um "nom" (em homofonia, em francês, com nome, sobrenome e não) que a mãe traduz como um não, tal como apresenta Lacan (1973-1974, inédito) na aula de 19 de março de 1973.

Será, então, essencial, para compreender o incesto, analisar o vínculo entre o quarto e o produto da aliança (filho), pois, em termos de atitudes, por exemplo, é oposto à relação do pai com o produto (Lévi-Strauss, 1945/1987). Dessa maneira, a antropologia mostra como outra das funções do quarto é equilibrar a estrutura. Tenhamos em mente que, para Lacan, a função do tio materno (simbólico) e a do pai (biológico), em nossa cultura, são misturadas e superpostas, arriscando-nos a pensar que a função do tio materno é uma das funções do Nome-do-Pai em termos simbólicos (Matus, 1996).

Deve-se notar que de forma alguma se trata da materialidade biológica do tio materno, mas de sua função. Às vezes, apesar do horror experimentado, nos casos de incesto observa-se que a arte ou o estudo funcionaram como quarto e salvação para esse inferno, sendo a função do quarto, como proposta por Lacan no Se minário 22 (1974-1975/1989), amarrar e diferenciar os três registros, necessários para a montagem da estrutura borromeana edípica.

 

O quarto como condição da estrutura: "pelo menos um que não"

Durante os Seminários 19 e 21, Lacan inventou o verbo Unier (1971-1972/2012) - como o apresenta na aula de 14 de junho de 1972 -, cuja particularidade é que, ao mesmo tempo que nega, arma e reafirma o conjunto. Há pelo menos um que diz não à função fálica (Lacan, 1972-1973/2015), elemento cuja função é restar excluído do conjunto para que o conjunto exista. Essa função de Nome-do-Pai está ligada ao Unier, ao negar-unir. Um pai que liga um desejo à lei, que liga a lógica ao mito, sendo a mãe a responsável por traduzir esse nome por um "não", introduzindo o fundamento da negação.

Sem essa função de exceção não há limite possível, não há regulação, não há estrutura, não há conjunto, não há borda, não há limite. Em outro plano, quando o nome (nom) está desvinculado do parentesco, um "pedaço de carne" sem velamento retorna ao corpo (Calmels & Mendez, 2007; Cao Gané, 2008). Um mero objeto de gozo de um Outro "sem barra".

Se, como pensa Lévi-Strauss (1945/1987), os termos do parentesco são, antes de mais nada, termos do discurso, o incesto não se trata de um ato de consanguinidade biológica, mas de superposição de funções, de lugares e de termos dados pela falha na operatória dessa lei inaugural, que implica, em termos das fórmulas de sexuação, a função de "pelo menos um que não". Nos casos de incesto, o que pode ser ouvido é que aí nada foi excluído. O pai da horda retorna, gozando com o que considera próprio a si, fazendo explodir o conjunto. O campo do impossível tornou-se possível, e, com isso, o nome foi desamarrado do corpo, ambos perdendo seu suporte simbólico, produzindo-se um puro excesso descarnado: tropmatisme (Soler, 1998/2007). A fantasia edipiana tornou-se real. O mais íntimo tornou-se radicalmente o mais estrangeiro.

Isso explica por que, nos casos de incesto, observam-se essas histórias desordenadas; esse excesso não regulamentado, invasivo, que toma o corpo, que a cadeia significante não consegue penetrar; acompanhada de uma mudança na cronos-lógica do relato e do senso comum que se desprende da significação fálica compartilhada. Vemos, então, por que se torna impossível fazer qualquer diagnóstico por estrutura, pois o que está falhado é sua condição.

Se o incesto e o capital compartilham o mesmo imperativo de gozo: "gozar com o mais próprio, ao menor custo", "acumular o idêntico", "sem querer pagar um preço pela castração", o que está perdida é a função essencial do dom, de excluir o que não; e, com isso, a condição necessária para que o losange opere. Dessa maneira, a distância essencial entre o sujeito e a coisa foi apagada e, com isso, a função da palavra e seu campo. É lógico entender agora por que Lacan diz, no Seminário 24 (1976-1977, inédito), aula de 15 de março de 1977: há apenas relação sexual incestuosa ou assassina.

A proibição do incesto, então, não é tanto uma questão de parentesco biológico (pois os nomes e suas funções são efeitos da lei). É uma intervenção simbólica estruturante, cuja função é excluir ao menos um elemento da possibilidade de gozo com o mesmo para que a aliança com o exo possa ocorrer e, com isso, as leis de troca e reciprocidade que garantem a subsistência do universo simbólico nos termos mais amplos (Lévi-Strauss, 1949/1981).

 

Referências bibliográficas

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Recebido: 14/01/2017
Aprovado: 15/01/2018

 

 

1 O trabalho original deste texto foi apresentado em 8 de setembro de 2017 no II Simpósio Interamericano da IF - XVIII Encontro Nacional da EPFCL-RJ, Brasil. Para sua publicação nesta revista, ele foi modificado e ampliado.
2 A revisão da tradução foi feita por Maria Luisa Rodriguez.
3 A maior parte da descrição desses sintomas que enunciaremos adiante são o resultado de um trabalho de investigação bibliográfica e clínica concluído no Projeto de Investigação UBACyt 2014-2017, "A psicanálise e outras disciplinas: laços contemporâneos e seus antecedentes na obra de Freud e Lacan", Faculdade de Psicologia UBA, dirigido por Clara Azaretto e Cecilia Ros, juntamente com o trabalho de dissertação de mestrado em psicanálise da UBA. Aqui, apresentamos tão somente um adiantamento para esclarecer a temática, ampliando um pouco a apresentação original do Simpósio do Rio de Janeiro, que foi mais restrita.

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