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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.35 Rio de Janeiro jul./dez. 2017

 

TRABALHO CRÍTICO COM OS CONCEITOS

 

Vale tudo: só não vale ficar homem com homem nem mulher com mulher1

 

Anything goes: except for a man with a man or a woman with a woman

 

Todo está permitido: excepto hombre con hombre y mujer con mujer

 

Tout est bon, sauf un homme avec un homme, ou une femme avec une femme

 

 

Glaucia Nagem

 

 


RESUMO

Pretende-se, neste artigo, desenvolver o tema da diferença entre a sexuação e a sexualidade a partir da teorização freudiana/lacaniana e do comentário de uma vinheta clínica. Mostrando, nos dois autores, a evolução dos conceitos concernentes ao enlaçamento discursivo do corpo e dos falasseres diante da castração, o artigo aponta para a lógica da sexuação como constituinte do discurso e de seus giros.

Palavras-chave: Sexualidade; Sexuação; Corpo; Falasser; Castração.


ABSTRACT

This article intends to develop the difference between sexuation and sexuality as from the Freudian/Lacanian theorization and a clinical vignette. By showing, in these authors, the evolution of the concepts concerning the discursive entanglement of the body and the parlêtres before the castration, the article points out the logic of sexuation as constituting of the discourse and its turnings.

Keywords: Sexuality; Sexuation; Body; Parlêtre; Castration.


RESUMEN

Se pretende en este artículo desarrollar el tema de la diferencia entre la sexuación y la sexualidad a partir de la teorización freudiana y lacaniana y del comentario de una viñeta clínica. En los dos autores, la evolución de los conceptos concernientes a lo enlazado discursivo del cuerpo y de los parlêtre ante la castración, el artículo indica hacia la lógica de la sexuación como constituyente del discurso y de sus giros.

Palabras clave: Sexualidad; Sexuación; Cuerpo; Parlêtre; Castración.


RÉSUMÉ

Cet article entend développer le thème de la différence entre sexuation et sexualité à partir de la théorisation freudienne/lacanienne et du commentaire d'une vignette clinique. En montrant, chez Lacan et Freud, l'évolution des concepts liés au nouage discursif du corps et des parlêtres face à la castration, cet article signale la logique de la sexuation comme constituant du discours et de ses tours.

Mots-clés: Sexualité; Sexuation; Corps; Parlêtre; Castration.


 

 

Trabalharei a partir da construção proposta na lição de 13 de março de 1972 das fórmulas da sexuação e da primeira parte de O aturdito (Lacan, 1972/2003). Para isso, apresento uma vinheta clínica.

F. tem um laço com G. Um relacionamento que poderia ser considerado pela psicologia como abusivo. G afirma inúmeras vezes: "você não consegue", "você não faz nada certo", "seu trabalho não é bom". F. já estava em análise quando começou a relacionar-se com G.

F. diz da série dos relacionamentos que teve até então e constata que isso de algum modo se repete quando consegue fazer um laço. Em seu tratamento, uma direção: reposicionar-se em face do outro, ter voz, fazer valer sua palavra em face do que vem do Outro, validar seu trabalho e ter prazer no sexo. Via aberta com a navalha do dizer em um tempo inicial de sua análise.

Desde Freud, ser homem ou mulher é uma construção. O corpo é construído aos pedaços. Sobre isso, Lacan afirma que o corpo é uma questão de fé, que o "falasser adora seu corpo, porque crê que o tem" (Lacan, 1975-1976/2007, p. 64). O neurótico crê que tem um corpo, e o psicótico sofre por não ter a mesma fé. A construção se dá como uma colagem a partir dos orifícios no contato traumático com aquele que cuida, em um desencontro fundamental: o infans grita, pois este é o primeiro uso do orifício oral. O que cuida responde. Mas a resposta nunca é exatamente o que o grito demandava. Esse desencontro permanecerá, e constatamos que sempre se fala mais ou menos, e o outro nunca ouve exatamente o que se quis dizer. Freud descreve o processo da vivência de satisfação na parte 11 do Projeto, mostrando esse desencontro e como nele há um "desapontamento" (Freud, 1950 [1895]/2011).

Há desencontro, desapontamento, desproporção, e é nessa vertente que os corpos se constroem e que os falasseres se enlaçam. O que determina os modos de enlaçamento é algo muito pequeno, uma pequena cena montada no instante mítico em que o sujeito se encontra com a divisão. Se o sujeito for neurótico, responde com a fantasia, e se for psicótico, responde com o delírio (Freud, 1940 [1938]/2012). Fantasia e delírio como respostas a serem ouvidas e tratadas nas análises.

Steve Reich, em sua composição musical Proverb, pergunta em formato de fuga: "Quão pequeno um pensamento tem que ser para preencher uma vida inteira?" Um modo poético de entendermos a fantasia. Só isto: o sujeito com sua divisão às voltas com o objeto que recorta do outro. Nessa trombada com o outro, uma frase em formato de cena se constrói e "preenche" uma vida inteira.

Freud percebe em sua escuta precisa que os tais orifícios se constroem pelo que ele vai sustentar como sexualidade. Essa frase-cena da fantasia se construindo no que formula como o Édipo. O infans sofre o desencontro traumático inicial, onde é cavado o oco que ecoará a frase e determinará seus laços. Isso continua se montando em suas experiências com os que dele se ocupam.

Mas, para Freud, se mantém uma questão que ressalta em Sobre a sexualidade feminina (Freud, 1931/2011), texto tardio em sua obra: qual seria a diferença da saída do Édipo para a menina e para o menino. Aparentemente, para o menino, seria mais simples, pois não teria de fazer uma dupla volta. Para ambos, o primeiro objeto é a mãe. No Édipo positivo, o menino, diante da angústia da castração, temendo o pai, sai do Édipo e se desliga da mãe. Mas, para a menina, não seria apenas esse giro. Ela precisaria de uma dupla volta: desligar-se da mãe em direção ao pai e, em seguida, desligar-se do pai. Acompanhamos em seu texto que, apesar de interessantes, as duas soluções capengam. E sabemos disso pelo que escutamos no consultório.

Lacan nos oferece uma nova via para pensarmos com a lógica da sexuação os lugares construídos em face do desejo e das escolhas objetais. Lógica que põe em jogo o Dizer que está por trás dos Ditos. O Dizer sendo o que escapa no desencontro fundamental e determina como se laçam o Real, o Simbólico e o Imaginário.

Voltemos ao corpo. O corpo construído em Freud na sexualidade dos orifícios recebe um aporte com Lacan pela introdução da linguagem. O corpo, com isso, é também uma construção de dizer. Não basta tocá-lo, há de se dizê-lo. E, diante dos ditos que ouve, o dizer enlaça. De um lado, como sujeito em sua divisão, em relação ao falo. De outro, às voltas com o objeto, com a incompletude e, consequentemente, com o gozo que escapa.

Ter ou não um pênis não garante o modo de relação de um sujeito com o falo. "Quem quer que seja dos seres falantes se inscreve à esquerda ou, então, à direita" (Lacan, 1972-1973/2008, p. 85) do que Lacan propõe como sexuação. E isso não é o mesmo que dizer da sexualidade. A sexualidade, construindo os orifícios, determina os modos pelos quais um corpo se satisfaz, as muitas formas de usar o corpo.

Já a sexuação é determinada pelo modo pelo qual discursivamente o sujeito se enlaça ao outro, como se posiciona diante do outro. Nguyên afirma, em seu seminário de 2015, que:

Para proferir o Yadl'un Lacan foi levado a abordar a sexuação. Faço a precisão de que a sexuação não é a sexualidade. A sexualidade pode se definir como o exercício do corpo à procura de um gozo, mais precisamente a partir da posição sexual, sexuada, a partir da inscrição na sexuação, ... antes do encontro sexual há a sexuação. (Nguyên, 2015, tradução nossa)

Vemos, assim, que na sexuação não está em jogo o gozo dos corpos, mas a posição discursiva entre o lado Todo e o lado Não-todo. Soler afirma que "os seres falantes se autorizam deles mesmos, e não da escolha entre o todo e o não-todo, que o discurso lhes impõe, e que a ele não implica nenhuma prática de corpo específica" (Soler, 2015, tradução nossa).

Quais as consequências clínicas que podemos extrair dessa lógica? Para isso, voltemos à vinheta clínica. Propositalmente, não determinei homem ou mulher para os sujeitos F. e G. E não coloquei arroba, x ou qualquer outro signo de indiferenciação. Isso porque não é indiferente como um corpo se constrói por seus orifícios. E mesmo que na sexuação se trate de uma posição discursiva, segue sendo importante como se diz disso. A psicanálise não é partidária da igualdade, pois o que ela nos proporciona é a possibilidade de uma diferença radical. "Não esperem de um analista que pleiteie pela igualdade, ele só pode defender, e essa é sua liberdade, a diferença absoluta" (Nguyên, 2015, tradução nossa).

F. e G. resolveram se enlaçar. O abusivo é o modo como se enlaçam. O que G. faz com F., desqualificando suas escolhas e ações, não encontra apenas sustentação político-econômico-social, mas fantasmática. F., que já deu alguns passos em sua análise, pode, pelo Dizer, se reposicionar diante desse Outro que lhe assombra e que se trasveste em G.

Lacan afirma:

Esse lugar (dos giros dos discursos) não é para todos, mas existe aos discursos, e é por aí que se homenloga que todos são mortais. Eles só podem sê-lo, todos, porque à morte são delegados por esse lugar, todos, fatalmente, já que é nele que se zela às mil maravilhas pelo bem de todos. Em particular quando o que zela (pelo bem) faz semblante de significante-mestre ou saber. (Lacan, 1972/2003, p. 450)

F. esteve até então zelando pelo Bem, em uma posição em que o semblante variava entre o discurso do mestre (significante-mestre) e o discurso universitário (saber). A análise, a partir da lógica da sexuação, aponta para o lado Não-todo e faz F. girar o discurso, histericizando sua posição discursiva, questionando-se como sujeito em sua divisão: "O que faz com que eu permaneça nesse lugar?"; e dirigindo-se a G.: "Você não pode falar assim comigo", além de retomar sua produção artística e questionar o modo de se enlaçar.

Não é indiferente qual corpo habita F. e G. Mas, sobre a posição discursiva nesse recorte, basta que se digam F. e G. Um laço de $ e . Puras letras que se enlaçam. F., em análise, pode sacar na repetição como se enlaça ao outro, como recorta seu objeto. G. recebe os ecos da análise de F. e leva para sua própria análise. Afinal, se há um laço e um dos lados se reposiciona, isso movimenta o outro lado. Não é por acaso que com alguns sujeitos esses reposicionamentos são recebidos de modo insuportável, levando mesmo a rompimentos.

A análise orientada pela lógica da sexuação tem no horizonte a não completude, a não proporcionalidade. Como nos lembra Bousseyroux citando Bataille: "colocar a vida, quer dizer o possível, à altura do impossível, é tudo o que pode fazer um homem se ele não quer se iludir" (Bataille citado por Bousseyroux, 2012).

 

Referências bibliográficas

Bousseyroux, M. (2012). Práticas do impossível e teoria dos discursos. A Peste: Revista de Psicanálise e Sociedade, São Paulo, edição eletrônica, 4(1),183-194, jan./jun. Recuperado de file:///C:/Users/brend/Downloads/22108-56768-1-SM.pdf        [ Links ]

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Freud, S. (1940 [1938]/2012). A cisão do eu no processo de defesa. (José Luis Etcheverry, Trad.). In J. Strachey (Ed.). Obras completas (Vol. 23, 2a. ed., pp. 271-278). Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

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Soler, C. (2015). Une novelle economie sexuelle. Revue de Psychanalyse du Champ Lacanien, Paris, (17), 11-20, nov.         [ Links ]

 

 

Recebido: 16/10/2017
Aprovado: 09/01/2018

 

 

1 Artigo apresentado no II Simpósio Interamericano da Internacional dos Fóruns, Sexuação e Iden tidades, em setembro de 2017.

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