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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.37 Rio de Janeiro July/Dec. 2018

 

CONFERÊNCIA BILÍNGUE

 

Advento do Outro?1

 

The Advent of the Other?

 

¿Advenimiento del Otro?

 

 

Colette Soler; Tradução de Cícero Oliveira

 

 


RESUMO

Os adventos do real são diversos e função dos discursos em exercício. Todo advento é, portanto, testemunha da operatividade da linguagem. Quando, no final, Freud diz "O que quer a mulher?", trata-se de uma fórmula de reconhecimento da diferença da metade dos seres sexuados, mas não de uma fórmula de advento d'A mulher como Outro. Lacan, ao colocar a conjunção desse gozo outro com a lógica da linguagem do não-todo, produziu o advento da "super-meutade" [surmoïtié] na psicanálise. O advento da não-toda, na psicanálise, abre muitas questões, e este artigo investiga se, no final da análise, a análise da não-toda pode destituir o Outro radicalmente barrado por uma identificação com o silêncio do inominável.

Palavras-chave: Advento do real; Outro; Não-toda; A mulher; Final de análise; Inominável.


ABSTRACT

The advent of the real is diverse and function of the discourses in exercise. Every advent is therefore a witness to the operability of language. When, in the end, Freud says "what does a woman want?", it is a formula for recognizing the difference of half the sexed beings, but not a formula for the advent of The woman as the Other. Lacan, by placing the conjunction of this other enjoyment with the logic of the language of the not-all, produced the advent of the "super-meutade" [surmoïtié] in psychoanalysis. The advent of the not-all in psychoanalysis opens many questions and this article investigates whether, at the end of the analysis, the analysis of the not-all can remove the Other radically barred by identification with the silence of the unnameable.

Keywords: Advent of the real; Other; Not-all; The woman; End of analysis; Unnameable.


RESUMEN

Los advenimientos de lo real son diversos y función de los discursos en ejercicio. Todo advenimiento es, por lo tanto, testigo de la operatividad del lenguaje. Cuando, al final, Freud dice "¿Qué quiere la mujer?", se trata de una fórmula de reconocimiento de la diferencia de la mitad de los seres sexuados, pero no de una fórmula de adviento de LA mujer como Otro. Lacan cuando plantea la conjunción de ese goce otro con la lógica del lenguaje del no-todo, produjo el advenimiento de la "super-mi-tad" [surmoïtié] en el psicoanálisis. El advenimiento de la no-toda en el psicoanálisis abre muchas cuestiones y este artículo investiga si, al final del análisis, el análisis de la no-toda puede destituir al Otro radicalmente barrado por una identificación al silencio de lo innombrable.

Palabras clave: Advenimiento de lo real; Otro; No-toda; La mujer; Fin de análisis; Sin nombre.


 

 

Rumo à questão

O real fora do simbólico nunca advém sozinho; encontramo-lo, catastroficamente, às vezes - como nas ditas catástrofes naturais -, mas ele advém apenas por fusão, casamento indissolúvel, com um elemento de linguagem que o transforma. Os adventos do real são, portanto, diversos e função dos discursos em exercício. Assim, a alunissagem que "Televisão" toma como exemplo-padrão advém por meio da coalescência do real do número com o real fora do simbólico da matéria, e ela difere muito do menor advento de sintoma. No entanto, trata-se da mesma estrutura, a emergência conjunta de uma presença real - aqui, a do acontecimento de gozo e de um significante. Todo advento é, portanto, testemunha da operatividade da linguagem e é o oposto de uma foraclusão, se a definirmos como falta de um significante para um real encontrado.

Quando, no final, Freud então diz "O que quer a mulher?", trata-se de uma fórmula de reconhecimento da diferença dessa metade dos seres sexuados, mas não de uma fórmula de advento "d'A" mulher como Outro. Lacan, pelo contrário, ao colocar a conjunção desse gozo outro, real - conhecido, ademais, desde sempre (cf. Tirésias) - com a lógica da linguagem do não-todo [pastout], produziu o advento da "supermeutade" [surmoïtié] na psicanálise. É isso, aliás, que ele o faz dizer em "O aturdito" (Lacan, 1972/2003, p. 469); quando a faz falar, ela o agradece de certa forma por ter, cito, "bancado o Outro".

Lembro, fato marcante, que essa novidade lacaniana - das mais sofisticadas em seu estilo e complexa em sua construção - foi imediatamente registrada na civilização por mulheres, feministas - elas até fizeram sucesso nos Estados Unidos. De minha parte, vejo aí a prova de que, onde há rejeição ou indiferença para com a escrita lacaniana, isso não vem da dificuldade de leitura, como tantas vezes se explica.

Pelo recurso à lógica dos conjuntos, Lacan produziu o advento daquilo que não advém no discurso somente pelo significante, daquilo que é excluído pela natureza... das palavras, a saber, A mulher, a qual ele pode dizer que não existe, pois falta a ela na linguagem não seu significante, esse A de A mulher que não falta em nenhuma língua (Lacan insiste nisso em Mais, ainda), mas o significante de seu gozo, essa ausência que deixa sem par o outro significante, o do homem que ex-siste pelo falo maiúsculo, grande phi, significante de seu gozo não negativável. Como ser sexual, ela é, então... a diferente. E esse é um enigma distinto daquele da Esfinge de Édipo.

Isso não quer dizer que todas as mulheres sejam diferentes, elas hoje até mesmo pedem para ser iguais, e isso não é um paradoxo, contrariamente ao que parece. Como ser falante, uma mulher é um sujeito como qualquer outro, tão universalizável quanto qualquer outro sujeito da ciência e que pode legitimamente lutar pela igualdade de seus direitos sociais, profissionais, artísticos e políticos, mas a psicanálise, de Freud a Lacan, trata especificamente dos sintomas gerados pelo inconsciente no "campo fechado do desejo" (Lacan, 1958/1998, p. 698) sexual. É nesse nível que ela é o Outro, a diferente. Não se pergunta "o que quer o homem"? Alguns ficaram surpresos, mas não é porque sabemos disso? Realmente, lamento não poder desenvolver esse ponto, mas, nos termos de "O aturdito", o homem advém quando o a priori do falo, que é para todos os falantes, conjuga-se com a exceção do dizer-Pai que, ao lhe criar um limite, confere-lhe consistência. É por isso que Lacan escreveu esse homem como o "homenosum" [hommoinsun], o menos-um aqui sendo aquele da exceção que funda o todo fálico do Homem. Ainda assim, é preciso não deixar de notar aqui que, para esse homem, o que parecia boa hora/felicidade [bon heur] por causa da "generosidade da herança biológica" (Lacan, 1972/2003, p. 460) torna-se má hora/infelicidade [mal heur], uma infelicidade que tem um nome - castração.

O advento da não-toda [pastoute] na psicanálise abre obviamente muitas questões, uma em que particularmente me detenho hoje: o que acontece com ela em cada psicanálise? Como pode a excluída de todo discurso revelar-se em uma prática de discurso - que não é o ato sexual em que seu gozo foi reconhecido, mas uma prática... de blá-blá? Como ela pode assombrar o discurso com seu fora-discurso?

 

O Um-a-menos

Lacan se questionou sobre isso. Sua resposta situa-se no lado da estrutura da linguagem que opera em todo discurso e para a qual não existe blá-blá que possa escapar. Essa estrutura sendo feita de significantes, que são tanto elementos discretos, unários, homogêneos ao Um fálico - já que o significante de seu gozo outro só pode alojar-se como aquele que falta ali - quanto o "Um-a-menos" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 174), o Um sempre a menos. É o Um a menos na multiplicidade de todos os uns do significante que se enunciam. É o significante sempre ainda por vir no vetor da articulação da linguagem. A mulher é um não advento que se repete, até a infinitude, pois o lugar da linguagem, o saber inconsciente, não sabe nada dessa encarnação distinta do sexo que é a mulher. Há mais ali onde Cantor resolve essa outra infinitude que é a da série dos números inteiros por meio da invenção de seus Aleph e, bem, não há Aleph d'A mulher. Ela decerto advém, mas como... o inacessível do dois do sexo. É também isso que me permite compreender o tempo que foi necessário a Freud para afirmar a diferença da mulher, ele que primeiro lhe havia aplicado o mesmo critério que usara para o homem. Não é preciso recorrer a seus supostos preconceitos, pois na psicanálise que Freud seguia eram "as palavras do inconsciente", esse dito em que justamente ela falta, ela é a única Um-a-menos, assim como falta o que seria a última palavra da verdade, sempre meio-dita [mi-dite]. Freud, com aquilo que Lacan chamou "seus amores com a verdade" (Lacan, 1974/2003c, p. 313), só poderia encontrá-la aí como a eterna ausente. Daí seu tempo para concluir sobre o que, contudo, se sabe desde sempre, pois em uma psicanálise não há como ter ideia da diferença da mulher somente por meio da interpretação "do que se diz" (Lacan, 1972/2003, p. 448). O inconsciente falasser [parlêtre] que produz "o próprio texto em que se formulam os sintomas" (Lacan, 1972/2003, p. 480) da neurose, expressão de Lacan em "O aturdito", procede da "norme mâle", 2 escrito assim, em duas palavras. Outra forma de dizer isso, mais provocante: A mulher não tem inconsciente (cf. Mais, ainda), ela é radicalmente Outro.

Enfatizo que, a meu ver, a diferença "radical" não é a "diferença absoluta" que gerou tantos comentários. Ela é sem igual [sans pair], sem comparação. A diferença radical não "vai sem" [ne va "pas sans"], não sem o fálico da linguagem de que ela se distingue, radicalmente. É por isso que as mulheres que são seres falantes têm um inconsciente. O exemplo do "não sem" [pas sans] da não-toda é Antígona. Antígona, que Lacan diz que ele esfinja sua não-toda (Lacan, 1972/2003, p. 469), bem, ela afirma sua ética radical apenas em relação a Creonte. Os próprios místicos, os beguinos, manejam uma poesia de amor que não deixa de [ne va pas sans] se escorar no texto do dogma do amor cristão no fundo do qual ela se destaca. Vê-se aí que os excluídos de um discurso não são seus rebotalhos. Ele seria, antes, seu estraga-prazeres, como mostram os séculos de hesitação da Igreja romana para colocá-los entre santificação ou heresia, entre, portanto, inclusão idealizante ou demonização excludente.

Com esse Um-a-menos, a essência d'A mulher é uma questão sem resposta, mas seu lugar é marcado na estrutura, ou seja, no real da linguagem, lugar sem o qual não poderíamos sequer evocá-lo. E Lacan diz, em seu "Prefácio a O despertar da primavera" (Lacan, 1974/2003d, p. 559), que se trata de um "lugar de vazio".

Esse lugar permite evocar a análise da não-toda do(a)s analisantes? Como se manifesta clinicamente a metonímia do "Um-a-menos" e as negociações específicas que ela gera com relação ao fálico no qual ela se apoia? Ela não se manifesta como suspensão da consistência, e até mesmo relançamento da suspensão da consistência, o que quer dizer indeterminação, infinitude, incompletude, indemonstrabilidade, indecidibilidade. Em outras palavras, falta repetida dos pontos de estofo suscetíveis a que se faça conclusão, ou seja, limite ao vetor do discurso. Formula-se uma hipótese sobre ela. Mas aí há um problema: A não-toda é "Uma-a-menos", sempre, mas não a única.

Quando se trata do não-todo de uma mulher, cito, "a potência lógica do não-todo ser habitada [s'habiter] pelo recesso do gozo que a feminilidade furta (...)" (Lacan, 1972/2003, p. 467). Um gozo bem real, fora do simbólico, portanto, pode preencher o lugar de vazio disposto pela linguagem que agita os corpos, como diz Lacan, mas esse é apenas um caso particular de não-todo, pois a lógica ignora tudo com relação aos prazeres, e nem tudo aquilo que diz respeito ao não-todo é, no entanto, mulher, não necessariamente é animado pelo gozo outro. A prova disso, se fosse preciso uma, encontra-se pelo analista, que também, segundo Lacan, procede do não-todo, mas apenas por seu "outro desejo", se assim posso dizer, por homologia com o outro gozo.

Constata-se, aliás, o quanto a consistência em suspenso própria ao não-todo dá, clinicamente, lugar à confusão com o extravio [égarement] da neurose, com a dúvida obsessiva e as incertezas do sem-fé histérico. Mais estruturalmente, a verdade meio-dita é ela mesma não-toda, ela metonimiza o Um-a-menos. Ela "balbucia" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 108), diz Lacan, e ele nos adverte para tomarmos cuidado com o termo, o que significa justamente que ela não conclui, miragem da última palavra. Ora, a verdade na análise não é somente para a não-toda, é a via de cada analisante, que, convidado a dizer sua verdade, palavra por palavra, sessão após sessão, não pode fazer menos do que ir na direção da miragem da última palavra, a qual, por faltar, impedirá de dizê-la toda.

Donde, justamente, a questão do fim da análise. O que, no fim das contas, pode tamponar essa hiância estrutural do meio-dizer [mi-dire] da verdade não-toda e aí colocar um ponto de parada? A resposta já elaborada diz: o objeto a substantificado da fantasia com relação ao desejo, e a letra do sintoma com relação ao gozo, e ambos - objeto a e letra - são avatares do registro fálico. O objeto assim o é por sua fuga, e o sintoma, por sua fixão. Em outras palavras, com relação à confusão com a neurose que acabo de mencionar, é somente quando uma neurose é tratada, a saber, quando aquilo que obturava a hiância de sua verdade é circunscrito, que se sabe que a reticência do sujeito em concluir procedia do "não quero saber nada disso" neurótico, e não da inacessibilidade lógica do não-todo, a qual, por sua vez, é um dos reais da lógica e que é, portanto, um incurável. Isso se escreve S(%), como Lacan precisa.

Um parêntese ainda, antes de concluir: para os falantes, antes de se chamar A mulher, um dos nomes do não-todo é deus. Não o deus do dizer magistral de Moisés, o um dos três dio-logos que Lacan distinguiu, mas o deus dos ditos místicos da essência, o deus impredicável da teologia negativa, aquele que Mestre Eckart convoca por e na linguagem. Ele faz isso por meio da negação de todos os atributos possíveis, fazendo de seu deus o Um-a-menos de tudo aquilo que pode ser formulado. O "fundo sem fundo", ou seja, ali onde falta justamente a pedra do nome sobre a qual fundar uma igreja. E o interesse de Lacan pelos dois cientistas que descobrem a face outra do Outro - Swedenborg, que percebeu o que Immanuel Kant não queria saber, e Newton, com seus comentários sobre o livro de Daniel - não é por acaso. Leiam isso em "Televisão" (Lacan, 1973/2003, p. 534). Quanto a Joyce, ele é como a combinação deles, ele que alia o único "ter" do dizer magistral, tal Moisés, rejeitando todo sentido articulado e que, assim como Mestre Eckart, cultiva o ab-sentido [ab-sens], ab-sexo [ab-sexe], mas sem fascinação pelo abismo, em prol, pelo contrário, das letras-fixão.

Nos três casos, o lugar da linguagem é explorado, e compreende-se por que Lacan pôde afirmar que deus é inconsciente-linguagem.

A multiplicidade desses três Pais da Dio-logia (Lacan, 1967/2003, p. 338), que parece longe de nossa questão sobre o sexo outro, indica, em todo caso, por si só, que o ser da significância deixa escolhas possíveis. É assim que, sem pensar minimamente em deus, um simples sujeito, pertencente à metade à qual o falo não foi atribuído a priori pelo dizer parental, pode, cito, "propor ser dita mulher", isto é, Outro radical, ou, pelo contrário, propor-se operar como objeto a, "causa do desejo", ou não Outro, mas o contrário, histérica "fora do sexo". São duas posições com relação a um real da significância.

Por conseguinte, não é preciso religião, nem sequer místicos que apenas confirmam para apreender que essa "encarnação distinta do sexo", distinta do fálico, basta para manifestar o lugar de vazio inerente ao conjunto dos significantes que os lógicos da infinitude exploram. Daí o interesse que devemos ter pelo Outro, segundo Lacan. Não é possível, porém, encontrar algo mais substancial que o lugar de vazio? O dizer, por exemplo, que "O aturdito" promete.

 

Seu dizer

"O dizer vem de onde ele [o real] comanda a verdade" (Lacan, 1972/2003, p. 453). Em outras palavras, o real da não relação sexual, e, com ele, da lógica toda ou não-toda do gozo, comanda aos ditos de verdade, sempre singulares. O dizer, ele também, não pode faltar, portanto, por ser sexuado,3 distinto seja ele um dizer do todo fálico ou do não-todo fálico. Ressalto duas indicações de Lacan sobre o dizer próprio ao não-todo fálico. Uma o situa na civilização, a outra, na análise.

Na civilização, ela não supermeutadiza [surmoite] tão facilmente quanto a "consciência universal", diz ele; essa é a tese freudiana. A consciência universal, como o nome indica, é aquela que caminha segundo as ordens da voz superegoica da civilização, a qual diz, no fundo, "mais um esforço", ainda um esforço, o que Lacan traduz, com razão, por "goze" [jouis]. Com efeito, como o homem poderia esforçar-se para se fazer homem, para se humanizar [se loméliser], senão mobilizando o gozo fálico que sustenta todas as empreitadas, mas que não pode evitar os cortes castradores da linguagem? Imperativo sardônico.

Mas, quando Lacan acrescenta "seus ditos só podem completar-se, refutar-se, inconsistir-se, indemonstrar-se e indecidir-se a partir do que ex-siste das vias de seu dizer" (Lacan, 1972/2003, p. 469), não se trata mais somente da civilização, mas da análise, já que esse é o único discurso que visa a fazer ex-sistir um dizer pela via dos ditos. Levei um tempo para compreender que essa frase aplica-se, na verdade, para toda analisante, e não apenas à não-toda. Com efeito, para todo analisante, a análise realizada revelará o dizer da esfera de seu pequeno universo privado, completando seus ditos de verdade meio-dita por meio do objeto a, ou do gozo do sintoma, o que não impedirá que o Outro permaneça barrado, sem consistência ou completude que suponha seu contrário, a asfera [l'asphère] da inconsistência, do indemonstrável, do indecidível, o que a lógica dos conjuntos estabeleceu paralelamente para a psicanálise, e não somente para as mulheres. Essa frase nos diz que, na análise, as não-todas são submetidas ao mesmo regime único da análise, com o mesmo intuito: asseverar os modos de gozo que estofam a hiância do Outro, revelando-a irremediavelmente.

A diferente [différente], então, permite um neologismo, a di(zer)ferente [la di(re)fférente], se sua especificidade na análise só puder existir no nível do dizer a ser inferido - vejamos o que especifica, em geral, o dizer analisante. Na análise, para todo analisante, o dizer é demanda, acoplado ao suposto saber - e saber o quê, senão os significantes que prestariam contas dos imbróglios do gozo e dos sofrimentos que eles produzem? É o que chamamos amor de transferência, e sua demanda é engendrada a partir do objeto a, na medida em que ele falta, "o psicanalista se faz de objeto a" (Lacan, 1969/2003a, p. 375), pois é a partir dessa falta que o saber sobre o gozo pode ser questionado. A tese vale para todos os falantes. Só que o gozo não-todo no significante não pode ter a mesma relação com o sujeito suposto saber e com seu tratamento no fim da análise. Resultado: o troumatismo [troumatisme] que é de estrutura e para todo falante, e que ademais não é necessariamente traumático, multiplica-se para os seres que procedem do não-todo.

 

Seu amor

Lacan diz que esses seres não têm relação com o Outro. O que quer dizer duas coisas, possivelmente: primeiro, que eles talvez estejam mais inclinados à transferência que interpela o Outro sobre seu saber, como constatamos, e sem eles a psicanálise não teria sido inventada. Mas, em seguida, que eles têm relação com um Outro distinto do sujeito suposto saber. O gozo outro é o gozo subtraído do significante, não causado pelo objeto a, que implica um Outro "pas-savant-du-tout" (Lacan, 1969/2003a, p. 133) [que-de-todo-não-se-sabe], expressão de Lacan, um lugar vazio de significantes, A barrado. É disso que os místicos falam justamente, de um deus no qual não há nem figuras, nem "distinções", e nem nome (n o m e) - são tantas citações - o abismo, as trevas, a ausência, mas um deus a partir do qual a criatura se fará talvez idêntica por uma ascese aniquiladora. Mestre Eckart. Sentimos bem que isso beira a heresia, embora siga a lógica das inconsistências da linguagem. Esse fio lógico explica, aliás, a meu ver, que, no fundo, quando os relemos, constata-se que eles dizem todos a mesma coisa, repetitivamente e de forma cansativa, o lugar vazio, evocado pela negação de todas as distinções. Então, quais são os "testemunhos esporádicos" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 108) do não-todo em análise? Diria, em boa lógica, uma possível destituição do Outro, que não seja uma redução ao objeto a que funda o luto final, de acordo com Lacan, e que seja, antes, uma minoração de todo valor significante - muito sensível nos escritos místicos -, esse é seu paradoxo. Para as mulheres, creio que é aquilo que Lacan nomeia sua maior liberdade. Liberdade com relação ao significante, justamente. Daí, poder-se-ia acrescentar para o não-todo algo em nossas fórmulas sobre a fase final da análise, aquela que Balint havia situado bem como estando além dos benefícios da elaboração. Essa fase, da qual se constatou que ela apenas se alonga com o tempo, esclarece-se, segundo Lacan, de uma forma dupla: em "O aturdito", em 1972, ele a situa como tempo necessário do luto do objeto a na relação com o analista (Lacan, 1972/2003). No "Prefácio à edição inglesa do Seminário 11", de 1976, é o tempo necessário para se identificar com a letra de gozo fora de sentido, como ser falante (Lacan, 1969/2003b). Por que não acrescentar aí o tempo necessário ou que seria necessário para uma identificação eventual do não-todo com o inominável? Mas, uma questão: o inominável, que faz decair o valor da letra no acme de uma verdade silenciosa, de onde toda articulação é subtraída, presta-se a uma identificação final? Nos místicos, o indizível vazio só é convocado no endereçamento ao Outro divino, um Outro radicalmente barrado, que ele sustenta como tal. Pode a análise da não-toda, que destitui seguramente o suposto saber, destituir, para além disso, o Outro radicalmente barrado por uma identificação com o silêncio do inominável?

 

Referências bibliográficas

Lacan, J. (1985). O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1972-1973)        [ Links ]

Lacan, J. (1998). A significação do falo. In J. Lacan. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1958)        [ Links ]

Lacan, J. (2003). O engano do sujeito suposto saber. In J. Lacan. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1967)        [ Links ]

Lacan, J. (2003a). O ato psicanalítico. In J. Lacan. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1969)        [ Links ]

Lacan, J. (2003b). Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In J. Lacan. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1969)        [ Links ]

Lacan, J. (2003). O aturdito. In J. Lacan. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1972)        [ Links ]

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Lacan, J. (2003c). Nota italiana. In J. Lacan. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1974)        [ Links ]

Lacan, J. (2003d). Prefácio a O despertar da primavera. In J. Lacan. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1974)        [ Links ]

 

 

Recebido: 06/11/2018
Aprovado: 06/11/2018

 

 

1 Trabalho apresentado no Encontro Internacional da Internacional dos Fóruns, em setembro de 2018, em Barcelona.
2 Lacan (1972/2003, p. 480). Equívoco que evoca normale [normal] e norme mâle [norma masculina]. [N.T.]
3 Cf. meu texto "Les commandements de la jouissance", de 1997, que foi censurado na época da ECF, ou mais exatamente retirado da editora por um conselho que obedecia à voz de seu mestre, em nome de um suposto plágio.

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