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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.37 Rio de Janeiro July/Dec. 2018

 

CONFERÊNCIA BILÍNGUE

 

Pelo real1

 

By the real

 

Por lo real

 

 

David Bernard; Tradução de Cícero Oliveira

 

 


RESUMO

O artigo comenta o uso por Jacques Lacan da expressão "advento do real" em seu texto intitulado "Televisão". Demonstra sua relação com o discurso da ciência, com o gadget e com o que Lacan denominou um saber no real. E, por fim, precisa de que maneira a psicanálise distingue-se desse discurso, propondo outra relação com o saber.

Palavras-chave: Ciência; Saber; Real; Gadget; Mundo.


ABSTRACT

The article comments on Jacques Lacan's use of the term "advent of the real" in his text entitled "Television". It demonstrates its relation with the discourse of science, with the gadget and with what Lacan called as a knowledge in the real. And lastly, it specifies how psychoanalysis distinguishes itself from this discourse, proposing another relation to knowledge.

Keywords: Science; Know; Real; Gadget; World.


RESUMEN

El artículo comenta el uso de Jacques Lacan de la expresión "advenimiento de lo real", en su texto titulado "Televisión". Demuestra su relación con el discurso de la ciencia, con el gadget y con lo que Lacan denominó como un saber en lo real. Y por último, precisa de qué manera el psicoanálisis se distingue de este discurso, proponiendo otra relación con el saber.

Palabras clave: Ciencia; Saber; Real; Gadget; Mundo.


 

 

"Bem, que posso saber?" (Lacan, 1973/2003, p. 533), perguntava a Lacan Jacques-Alain Miller, então um jovem filósofo, na ocasião daquilo que foi chamado de "Televisão". Havia, no entanto, algo "incongruente" (Lacan, 1973/2003, p. 534) em colocar no campo da psicanálise a questão daquilo que se pode saber. Não teria ela demonstrado que a estrutura da linguagem impõe justamente um limite real ao saber e ao poder: o real da castração? Responder a isso não poderia, pois, ser feito a não ser, dirá Lacan, "dentro desse limite" (Lacan, 1973/2003, p. 534). Expressão curiosa, que nos lembra que o limite não deverá aqui ser concebido como uma linha a ser transgredida, assim como fantasiamos sempre, mas um limite nos confins, a tentar alcançar, assim como a matemática o define.

Ao fim, Lacan pode então retomar a questão e nos devolvê-la nos seguintes termos: "até onde irei dentro desse limite?" (Lacan, 1973/2003, p. 534). Primeira resposta: longe, muito longe. Prova disso é aquilo que será alcançado pela ciência, tendo renunciado, ao longo de sua história, a um saber imaginário, repleto de sentido, para passar a um "saber no real" (Lacan, 1973-1974a, lição de 23 de abril de 1974), feito de pequenas letras fora de sentido. Lacan escolhe aqui o exemplo da lei da gravidade de Newton. Relato a lenda, ao modo do cartunista francês Gotlib (2003): Newton, embaixo de uma árvore, pensando na Lua, quando, de repente, uma maçã cai em sua cabeça. Efeito de despertar, que o levará a estabelecer a lei da gravidade. Há, no espaço, algo que se repete e determina - malícia de Lacan - a atração dos corpos entre si, tanto quanto algo que os separa. Faltava colocar isso em equação, uma fórmula matemática para dar conta desse saber no real da natureza. A ciência, assim como a psicanálise, origina-se, portanto, da suposição de um saber no real, isto é, de leis que ordenam uma repetição.

Posteriormente, a ciência não vai mais parar a progressão desse saber, a ponto de não somente dar conta de muitos outros mistérios da natureza, mas também de produzir, a partir daí, gadgets. O que poderia ser melhor depois de ter evocado o espaço, a Lua e a gravidade do que tomar o exemplo do foguete para questionar até que ponto as pequenas letras da ciência podem nos envolver? Historicamente, o homem, embaixo da árvore, estaria sonhando em chegar à Lua, mas, em 20 de julho de 1969, a missão Apolo 11 tornaria isso possível. "Um pequeno passo para o homem, mas um grande salto para a humanidade", dirá Armstrong. "Magnífica desolação", diz aquele que o sucede, Buzz Aldrin.

A alunissagem, portanto, constitui um "advento do real" (Lacan, 1973/2003, p. 535), na medida em que ela dá testemunho daquilo que a ciência, por seu simples manejo das pequenas letras da linguagem, introduziu de "novo" (Lacan, 2005, p. 65). Poder-se-ia, então, esperar que, ao aprender essas novidades e essa potência do significante fora de sentido, os seres falantes acordassem e se espantassem. E, no entanto, diante disso, não há quase nenhuma emoção no homem de hoje, a não ser "vagamente" (Lacan, 1973/2003, p. 535), diz Lacan. Isso, para ele, é o mais impressionante. Há uma "apatia" (Lacan, 1974, lição de 1º de novembro de 1974) moderna de que ele isola, assim, a lógica. Passado o instante de angústia ou de espanto, o ser falante logo terá feito recobrir esse advento do real pelo registro do sentido (Lacan, 2005, p. 65). Que, para tanto, utilize-se do bom senso religioso ou do mercado, o sujeito constituirá para si muito rapidamente uma visão de mundo capaz de esconder essas aparições enigmáticas. Há, assim, em cada um de nós, ele prossegue, um (pequeno) "filósofo" (Lacan, 1973/2003, p. 534), que folheia as páginas de seu mundo sem se comover, senão vagamente, certo de ser capaz de se defender da menor notícia por um pensamento pronto [prêt-à-penser]. Ao final, o dito filósofo encontrará nessas páginas, então, apenas as notícias não tão frescas de sua visão do mundo: sua fantasia. Daí continuar na bolha, continuar à buller, como diz a alíngua francesa, isto é, a sonhar com a forma ideal do mundo: a esfera, essa ideia do Todo.2

Não é de se espantar, então, que Lacan venha, em seguida, a evocar o "mundo (d')O homem alunissado" (Lacan, 1973/2003, p. 539). A expressão, no entanto, precisa que o homem infla a bolha narcisista de seu mundo, emparelhando-se também com seus gadgets-telas. Além disso, ele ressalta (Lacan, 1974), o homem comum não fez essa viagem à Lua, mas se vê fazendo-a de sua tele-visão. Nuance. O particípio passado "alunissado" [aluné] lembra, então, que o sujeito se deixará aqui capturar pela lógica pulsional da fantasia, e sua rejeição da alteridade. O homem alunissado, esse grande viajante, não irá, pois, tão longe. Há nele, dizia Heidegger (2018), a vontade de abolir todas as distâncias, mas para reduzir o Outro ao mesmo. Aldrin, no instante em que iria dar seus primeiros passos na Lua, confidenciava, assim, a Armstrong: "Essa vai ser a 'nossa casa' [chez nous] pelas próximas duas horas, e queremos cuidar dela." Curiosa essa aspiração do ser falante em fazer imediatamente do lugar do Outro "sua casa" [chez soi], para ali cravar sua bandeira, desenhar seu limite, e fazer para si O centro que não existia. Selfie com a Lua, e ei-lo umbigo do mundo.

Lacan, então, vai opor a isso o "real-da-estrutura" (Lacan, 1973/2003, p. 535), que o descentra e do qual sempre se permanecerá separado. Há, portanto, aquilo que a psicanálise toma emprestado da ciência: o manejo de pequenas letras fora de sentido para se aproximar do real. Mas há também aquilo que nenhuma equação poderá resolver, e que Lacan chamará ainda, veja só, de "uma gravitação (ligada) ao ato sexual" (Lacan, 1975-1976/2007, p. 62). Orientar-se pelos adventos do real-da-estrutura pode, então, constituir uma saída do sonho do mundo e sua abordagem fantasiosa do limite. Não se tratará mais de uma questão de cifrar um Todo do conhecimento, mas de se aventurar na decifração do saber do inconsciente. Para concluir, Lacan propõe, então, que se passe do Que posso eu saber... sobre o mundo? ao "o que se pode dizer (...) a partir do saber que ex-siste para nós no inconsciente" (Lacan, 1973/2003, p. 535)? Que economia de palavras, tão longe de uma visão do mundo. Nessa última reformulação, desaparece pudicamente o eu [je], esse eu que se achava tão forte por seu saber, seu poder, seu pensamento, para deixar advir um saber que ex-siste ao sujeito. Ainda ressoa aí o dizer de Lacan: "não há mundo" (Lacan, 2005, p. 63).

 

Post scriptum

Ao final da intervenção em que proferi este texto no colóquio de Barcelona, ​​nossa colega Sol Aparicio, que presidia nossa sequência e a quem agradeço novamente, entregou-me discretamente uma página do jornal francês intitulado justamente... Le monde. O artigo, datado de 12 de setembro de 2018, tinha como título: "O grande G abala os físicos". Eis as primeiras linhas: "Os físicos também estão perplexos com o ponto G. Não com aquele que designa esse lugar misterioso do prazer feminino, mas com uma noção igualmente agradável e universal: a gravidade."

 

Referências bibliográficas

Gotlib, M. (2003). Rubrique-à-brac. Paris: Dargaud.         [ Links ]

Heidegger, M. (2018). Que é uma coisa?. São Paulo: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1958)        [ Links ]

Lacan, J. (1973-1974a). Le séminaire: les non-dupes errent. Inédito.         [ Links ]

Lacan, J. (1973-1974b). Le séminaire: l'insu que sait de l'une-bévue s'aile à mourre. Inédito.         [ Links ]

Lacan, J. (1974). Conférence "La troisième". Inédito.         [ Links ]

Lacan, J. (2003). Televisão. In J. Lacan. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1973)        [ Links ]

Lacan, J. (2005). O triunfo da religião. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (2007). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1975-1976)        [ Links ]

 

 

Recebido: 06/11/2018
Aprovado: 06/11/2018

 

 

1 Trabalho apresentado no X Encontro Internacional da Internacional dos Fóruns da EPFCL, em setembro de 2018, em Barcelona.
2 Sobre esse ponto, cf. Lacan (1973-1974b, lição de 14 de dezembro de 1976).

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