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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.37 Rio de Janeiro jul./dez. 2018

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO

 

Maktub ou um bebê sai pelo umbigo do sonho

 

Maktub or a baby comes out through the navel of the dream

 

Maktub o un bebé sale por el ombligo del sueño

 

Maktub ou un bébé sort par le nombril du rêve

 

 

Luciana de Freitas Guarreschi

 

 


RESUMO

Tendo como ponto de partida um sonho relatado em uma sessão por uma paciente, a autora interroga, neste trabalho, o advento do real que viria com a introdução do discurso analítico, por via da transferência, não sem passar pelo momento de emergência primeiro, o advento primeiro, traumático e maldito. Tomando principalmente o Seminário 18 de Lacan, De um discurso que não fosse semblante, como norteador, o artigo busca acompanhar a mudança de posição do sujeito perante o gozo, mudança essa advinda do encontro com o discurso do analista.

Palavras-chave: Sonho; Escrita; Advento do real; Gozo.


ABSTRACT

Having as a starting point a dream reported by a patient, the author questions, in this research work, the advent of the real which would come with the introduction of the analytical discourse, via the transfer process, not without going through the first emerging moment, the first advent, traumatic and unblessed. By taking mainly the Seminar 18 - On a discourse that might not be a semblance - as a guide, the text tries to follow the change of the subject's position towards the enjoyment, being that change a result from the meeting with the analyst's discourse.

Keywords: Dream; Writing; Advent of the real; Real.


RESUMEN

Considerando como punto de partida un sueño relatado en una sesión por una paciente, en la investigación de este trabajo la autora cuestiona el advenimiento de lo real, con la introducción del discurso analítico, vía transferencia, no sin antes pasar por el momento de emergencia primero, es decir: advenimiento primero, traumático y maldicho. Llevando en cuenta principalmente el Seminario 18 de Lacan - De un discurso que no fuese semblante - como norteador, el texto tiene por objetivo acompañar el cambio de posición del sujeto ante al goce, alteración que adviene del encuentro con el discurso del analista.

Palabras clave: Sueño; Escritura; Advenimiento de lo real; Goce.


RÉSUMÉ

À partir d'un rêve raconté par une patiente lors d'une séance, l'auteur interroge ici l'avènement du réel, qui viendrait par l'introduction du discours analytique, par la voie du transfert, non sans d'abord passer par le moment d'émergence, l'avènement premier, traumatique et maudit. En s'orientant principalement par le Séminaire XVIII de Lacan, D'un discours qui ne serait pas du semblant, le texte accompagne le changement de position du sujet face à la jouissance, changement advenu de la rencontre avec le discours de l'analyste.

Mots-clés : Rêve ; Écriture ; Avènement du réel ; Jouissance.


 

 

Quem quer viver faz mágica.
Guimarães Rosa

Sempre pode ser revitalizante um retorno ao que alguns chamam bases ou fundamentos da clínica analítica, principalmente a partir de outras perspectivas. No entanto, essa nomenclatura - fundamento, base - soa como algo que fica "por baixo" em uma construção, que sustenta essa construção, mas que não aparece, não se percebe, fica lá. Quando os sonhos estão, para a clínica (creio eu), muito mais como alimento diário do que como base escondida, se não na boca do paciente, em minhas orelhas, tal qual diz Lacan no Seminário 17:

Como é que se poderia captar toda essa atividade psíquica de outra maneira que não como um sonho, quando se ouve[m] milhares de vezes no decorrer dos dias essa cadeia espúria de destino e de inércia, de lances de acaso e de estupor, de sucessos falsos e de encontros desconhecidos que constituem o texto corrente de uma vida humana? (Lacan, 1992, p. 73)

Assim, penso que, dentro das formações do inconsciente, o sonho continua sendo, parafraseando Freud, o caminho Real para o ICS1. Esse retorno ao tema me trouxe, não é preciso rir, uma "novidade": o sonho como escrita! Brinco pois, como sabemos, Freud não titubeou em chamar escrita as imagens do sonho, uma escrita hieroglífica. Lacan (1971/2009) parece ter seguido a pista, enunciando que o inconsciente é uma linguagem que, em meio a seu dizer, produz seu próprio escrito. Nesse momento de seu ensino, Lacan está se referindo não só ao simbólico, mas também ao litoral, em que este encontra o real como seu limite. Tal enfoque tem incidências também na interpretação dos sonhos, uma vez que do infinito deslizamento simbólico das associações do paciente visa-se à leitura do traço que o sonho conseguiu escrever, produzindo um efeito de sentido que pode alcançar o real.

Bom, então o inconsciente produz seu próprio escrito? Escreve? Ok. Mas e o sujeito do ICS? Sabe ler, o pobre? Lê, é certo que lê. A questão é: o quê? Sabemos bem o que ele lê: apenas seu traçado da fantasia. A multiplicidade de acontecimentos é enorme, mas só há olhos para ali achar o traço que representa para o sujeito sua marca identificatória e que, além disso, marca a perda de um objeto de gozo fundamental (Amigo, 2015). Aqui, o sujeito é mero suporte do que estava escrito, maktub, como uma letra morta que, acéfala, cumpre seu destino, automaton. Cito Leyack:

É, paradoxalmente, marca viva por sua eficácia, ainda que morta por sua fixidez de marca. Letra viva, ao contrário, é a que litoraliza o real do gozo, na medida em que haja sujeito do inconsciente que a escreva. Aqui, o sujeito já não é suporte passivo, portador de uma letra, e sim, ao cifrá-la, vivifica-a. Aqui, o sujeito é escriba.2 (Leyack, 2017, p. 41, tradução nossa)

Tudo isso é de nossa alçada, pois, como nós, analistas, acedemos a essa escrita, como se produz, com a leitura em análise, uma reescrita que, arrisquemos, mude a posição do sujeito em relação ao gozo? Como disse Soler:

Nossa questão incide, portanto, sobre o discurso analítico em si. Inicialmente, sobre as ocorrências clínicas particulares desse real que a análise permite recensear, assim como as respostas que cada analisante traz a isso. Em seguida, sobre as transformações que a própria análise introduz. Será que o ato analítico não assegura o readvento sob transferência desse real do traumatismo que já adveio? (Soler, 2017, s.p.)

Vou tentar precisar melhor este ponto: essa escrita se revelará como tal ao encontrar-se com uma leitura, uma leitura em transferência, pela via do discurso analítico. O analista é o lugar que facilita, com sua leitura, que se reescreva o que o inconsciente havia escrito. Ponto importante, essa leitura não é enunciadora de nenhuma verdade, mas pode criar, desencadear uma verdade. Pergunto-me, então: o que compreende o ato de ler? Uma leitura reescreve um texto, um escrito. Mas quais são as ferramentas de uma leitura? Enumero minhas preferidas: cortar, colar, descolar um dito; equivocar, pontuar, "virgular" uma interjeição; sublinhar, pelo simples fato de interrogar, um dizer. A leitura que se faz pela via da interpretação é uma tentativa de reescrita do discurso analisante.

Aqui, vale lembrar que o que também aproximou Lacan da língua chinesa é o que poderíamos chamar ato de leitura, uma vez que dele depende os efeitos e as ressonâncias tão desejados nessa língua. Cito Andrade:

Um texto [chinês] lido não se limita a uma leitura de caractere por caractere, da sílaba com seu sentido, uma-a-uma. Muitas sílabas são reunidas para formarem "palavras" que podem não ter nenhuma relação com o sentido que cada sílaba, isoladamente, possuía. As pontuações ou aproximações espaciais entre caracteres terão que ser um ato de leitura. (Andrade, 2015, p. 72, grifo nosso)

O trabalho em análise, e isso compreende os sonhos, é um ato de leitura que enlaça o gozo do Outro em palavras onde antes este se encontrava desamarrado, derramado e, portanto, predominante. Esse enlaçamento pode escrever algum significante que fura o real desse gozo. "A operação analítica reescreve ao ler e essa reescrita terá sido eficaz se mordiscar bordas de Real. Seus efeitos se farão ver na redistribuição do gozo" (Soler, 2017, s.p.).

Trago, então, um sonho de uma paciente que, depois de 45 dias de minhas férias e na única sessão que teria antes que eu me ausentasse novamente por mais 45 dias, vem me lembrar de um sonho seu. De tudo que poderia escolher para falar naquela sessão, me diz que assistiu a um filme chamado Mínimo para viver, cuja sinopse é a seguinte:

Uma jovem está lidando com um problema que afeta muitos jovens no mundo: a anorexia. Sem perspectivas de se livrar da doença e ter uma vida feliz e saudável, a moça passa os dias sem esperança. Porém, quando ela encontra um médico não convencional que a desafia a enfrentar sua condição e abraçar a vida, tudo pode mudar. (Recuperado de http://www.adorocinema.com/filmes/filme-245943/)

A paciente avisa: "O filme é bem babaca, mas há uma coisa, um sonho no final que me fez pensar no meu sonho. Foi exatamente aquilo que aconteceu comigo. Ela vive porque sonhou. Estava quase morta. Foi assim com o meu sonho." No filme, a adolescente anoréxica, já muito debilitada, adormece depois de ter sido "amamentada" por sua mãe, e é despertada por um sonho, onde se vê já morta, e a partir daí passa a tratar-se.

Depois disso, não pude evitar escrever sobre esse sonho, uma vez que a própria paciente o pontua como um momento de virada para sua vida. Nessa sessão única, o sonho se fez inteiro em minha memória, e não foi difícil encontrá-lo nas anotações do caso, que sempre me impressionou pela rapidez com que se apresentou no percurso da análise - na verdade, nas entrevistas preliminares. Parece que havia algo urgente, urgindo em ser reescrito, e o sonho o fez, mediante o encontro com o lugar-analista, falado anteriormente, dentro do discurso analítico. É esse sonho que me intrigou (e, pelo visto, a paciente também) e que não teve nenhuma "interpretação" de minha parte, mas que vale pelo que parece ter "mordiscado de bordas de Real", mediante a simples aposta de que em análise se possa ler de outra maneira.3 O que pode nos interessar aqui é o sonho como uma amostra, um aviso, uma notícia de que algo se reescreveu, algo que veremos no só depois (nachträglich), na redistribuição do gozo e nas elaborações simbólicas do paciente.

Preâmbulos do caso: vem se queixando, basicamente, de não conseguir emagrecer, embora tenha sido magra no passado, além de que isso a atrapalharia em seus planos de engravidar. Pergunto algo sobre o momento que ela começou a engordar. Rapidamente, encontra o caminho, começa a chorar e diz: "Às vezes, eu queria ser mãe, engravidei uma vez e fiz um aborto, e isso é muito mal resolvido, eu tinha 17 anos. Resolvi não ter esse filho. A gente vivia de maneira muito humilde, mas eu tinha informação. Eu teria conseguido, mas optei pelo caminho mais fácil." Quando o choro cessa um pouco, digo apenas: "Não está parecendo mais fácil..." Ela me responde dizendo que tenta se convencer de que fez o que era possível, mas está cada vez mais gorda e também compra compulsivamente. E, por fim: "Não achei que ia falar isso aqui hoje."

Quando volta dois dias depois, diz que teve ânsia, dor de cabeça e mal-estar ao sair da sessão, que chegou à sua casa, deitou e dormiu, em que pese ser a hora do almoço. Quando acorda, vai comer e fica enjoada: "Depois fui digerindo, passou." Como de costume, quando alguém diz que dormiu, que tem sono ou mesmo falta de sono, pergunto se ela sonhou, ela diz, simplesmente, que não. Ato contínuo, passa à sua novela familiar, da qual recorto apenas o mínimo: a mãe era viciada em anfetaminas e não a amamentou por problemas de saúde que a fizeram ficar no hospital logo após o parto. As próximas três sessões são dedicadas a seus ensaios sobre a sexualidade infantil, a vergonha, a culpa, a seu lugar no romance familiar, aquele "da filha que pesava", aquela que foi uma "escapada", já que os pais estavam separados, mas a bisneta querida pelo mal-dito bisavô amado. Conta que, quando criança, ficava com esse bisavô, que a acalmava muito. Esse bisavô fumava escondido e não era querido por seus irmãos, nem pela família, mas, na frente dela, ele fumava. Ela lê nisso, e no cuidado que ele tinha com seus brinquedos, um signo do amor faltante em todos os seus outros laços ("todas as minhas vaquinhas não tinham chifres, pois ele cortava para que eu não me machucasse"). Ela sabia retribuir, e "ficava no colo dele, e espremia seus cravos, que ele pedia".

Na sexta sessão, diz: "Eu queria te falar uma coisa... logo que eu vim aqui, acho que na segunda vez, você me perguntou se eu sonhei. Eu tinha sonhado, mas fiquei com vergonha de falar. Sonhei que estava grávida e tinha um piercing no umbigo, penso que eu devia tirar esse piercing para não rasgar minha barriga, e aí vou espremer, e aí sai uma mão de pus e sangue - uma massa -, fiquei apavorada. Mas daí virou cômico, porque pensei: nossa! Deve ser por isso que não emagreço. E caí na risada." Esse é o sonho, esse é o sonho ao qual ela se refere como divisor de águas, como o do filme, o que a faz viver. Sobre o sonho, diz: "Está tudo isso na minha cabeça, essa coisa sempre de emagrecer. Essa mão de pus e sangue era bem nojenta, mas depois achei engraçado. Tirar pelo buraco do umbigo!?" Não diz muito mais que isso, mas relativiza o peso que recaía sobre o aborto ao pensá-lo como uma forma de proteção. Pergunto mais sobre isso, mas ela pouco pôde dizer, talvez tivesse dito antes, afinal, com seu bisavô ela havia aprendido que tirar, espremer, cortar também eram formas de proteção e cuidado. O riso, tanto no sonho quanto na sessão, indicaria, como já falava Freud sobre os chistes, uma liberação de gozo.

Após essa sessão, as entrevistas prosseguem, problemas pontuais se colocam até que, quase um mês depois, ela pede uma sessão extra. Chega, senta, diz que veio porque precisava falar que: "Agora, sim, sabia por que tinha feito o aborto." Sua voz, que era infantil até então, havia desaparecido, dando lugar a uma firmeza decidida, uma voz que não se reduzia ao dito, mas que provocava certa incidência pulsional. Tenho poucas anotações desse dia, mas o pouco é essencial: "Se eu tivesse tido esse filho, ele seria de minha mãe, era um filho para ela, eu a via como heroína e ele iria entrar naquela massa." Essa "massa" é como ela se referia aos filhos de sua mãe, ela e seus irmãos, uma massa indistinta, vivendo misturados em lugares indistintos. Ela chorou pouco, finaliza, dizendo: "É isso que vim dizer!", levanta e vai embora. Ela levanta e vai embora, eu fecho a porta e... caio. Como se tivesse caído junto com isso que caiu dela, nessa cessão do objeto, não há outra expressão melhor, pois é esse real da cessão do objeto que persegue e faz o impasse do sujeito diante do desejo. Para advir, o sujeito tem de se destacar sob o fundo desse objeto paradoxal que não pode ser subjetivado - e é por cedê-lo que o sujeito advém sujeito. Mas a cessão do objeto, essa perda de si mesmo, como diz Lacan (1962-1963/2005), não se reduz a uma decisão, pois se trata de um corte que, quero crer, o sonho reescreveu, localizando-se em uma anterioridade lógica em relação ao sujeito que é seu efeito, ou seja, que advém na estrutura como consequência desse corte.

Na próxima sessão, faz questão de dizer que resolveu muita coisa em sua cabeça: "Parecia que eu ia voar, me libertei para poder viver, hoje vejo com tanta clareza - através do sonho, do ocorrido com a mãe e depois... um querer zelar, nunca havia me passado antes, estou confiante para engravidar. Os problemas estão ao redor agora, não no centro."

Pergunto com Soler:

Uma questão, então, se coloca: se o clamor neurótico dos sujeitos respondeu ao primeiro advento traumático do real, não é possível esperar que o segundo, aquele que re-advém na análise e que ilumina o primeiro, possa dar ao sujeito a oportunidade de adquirir coragem, em outras palavras, de renunciar à sua queixa para enfrentar o destino que seu inconsciente lhe produziu? (Soler, 2017, s.p.)

Algum tempo depois, a paciente engravida e deixa a análise no oitavo mês de gravidez, sem engordar nem sequer um quilo.

 

Referências bibliográficas

Amigo, S. (2015). Clínica de los fracasos del fantasma (2a ed.). Buenos Aires: Letra Viva.         [ Links ]

Andrade, C. (2015). Lacan chinês: poesia, ideograma e caligrafia chinesa de uma psicanálise. Maceió: Edufal.         [ Links ]

Lacan, J. (1977). O seminário 25: momento de concluir. Inédito.         [ Links ]

Lacan, J. (1992). O seminário 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-1970)        [ Links ]

Lacan, J. (2005). O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-1963)        [ Links ]

Lacan, J. (2009). O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1971-1972)        [ Links ]

Leyack, P. (2017). Escrituras em el análisis. Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]

Soler, C. (2017). Re-advento do Real. Recuperado de http://xcita-if-epfcl.barcelona/Documentos/Pre-textos/(Pg)Pre-text07-ColetteSoler.pdf        [ Links ]

 

 

Recebido: 24/08/2018
Aprovado: 28/09/2018

 

 

1 Inconsciente.
2 No original: "Es, paradójicamente, marca viva por su eficacia, aunque muerta por su fijeza de marca. Letra viva, en cambio, es la que litoraliza lo real del goce, en tanto ya hay sujeto del inconsciente que la escribe. Aquí el sujeto ya no es soporte pasivo, portador de una letra, sino que, al cifrarla, la vivifica. Aquí el sujeto es escriba."
3 Vocês reconhecem aqui o lire Autrement, referência ao duplo sentido em francês "de outra maneira" e "o Outro mente", cf. O seminário 25: momento de concluir, não publicado.

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