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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.38 Rio de Janeiro jan./jun. 2019

 

CONFERÊNCIA BILÍNGUE

 

Que sujeito escutamos? Da estrutura subjetiva à clínica do bem-dizer

 

What subject do we listen to? From the subjective structure to the well-meaning clinic

 

¿Que sujeto escuchamos? De la estructura subjetiva a la clinica del bien-decir

 

 

Paula Calado; Tradução de Cícero Oliveira

 

 


RESUMO

A eficiência do trabalho psicanalítico e o funcionamento de um dispositivo clínico orientado pela psicanálise encontram suas bases em uma escuta que dirige o tratamento. O surgimento da psicanálise implica uma descentralização. A divisão entre Eu e Isso fica clara na obra de Freud, sobretudo com o conceito de Spaltung, divisão, cisão. Lacan, em sua leitura da obra freudiana, propõe uma vasta construção teórica, que se dispõe a conceitualizar o sujeito para a psicanálise. O sujeito como resto de uma divisão, como escansão, marcado pela linguagem, traduz-se em S barrado (pelo significante). A noção de S barrado é utilizada durante anos a fio por Lacan, até determinado momento de sua elaboração teórica, quando o conceito de parlêtre entra em cena, para dar conta de um sujeito que há um corpo. A dimensão de corpo não estivera presente no primeiro ensino lacaniano, e o parlêtre expressa o sujeito mais distante da noção de significante e mais próximo da letra do inconsciente. A questão que se apresenta é se a mudança conceitual de S barrado a parlêtre propõe uma mudança na escuta clínica e na atuação do psicanalista. Mais além, defendemos que o estudo teórico e a compreensão dos dois momentos de Lacan no que diz respeito ao sujeito ajudam-nos a pensar uma clínica mais ética e a favor de um desejo que se apreende pela letra.

Palavras-chave: Psicanálise; Sujeito; S barrado; Parlêtre.


ABSTRACT

The effectiveness of the psychoanalytic work and the functioning of a clinical device guided by psychoanalysis are based on a listening process that guides the treatment. The emergence of psychoanalysis implies decentralization. The division between Me and It is clear in Freud's work, especially with the concept of Spaltung, division, split. Lacan, in his reading of the Freudian work, proposes a vast theoretical construction that deals with conceptualizing the subject for psychoanalysis. The subject, like the remainder of a division, like scansion, marked by language, is translated as barred S (by the signifier). The notion of barred S is used for years by Lacan, until a certain moment of his theoretical elaboration, when the notion of parlêtre enters the scene, to account for a subject who has a body. The corporal dimension was not present in the first Lacanian teaching and the parlêtre expresses the subject furthest removed from the notion of signifier and closer to the letter of the unconscious. The question that arises is whether the conceptual change of barred S to the parlêtre brings about a change in the clinical listening and the act of the psychoanalyst. In addition, we argue that the theoretical study and understanding of Lacan's two moments in the subject helps us to think of a more ethical clinic and to foster a desire perceived of the letter.

Keywords: Psychoanalysis; Subject; Barred S; Parlêtre.


RESUMEN

La efectividad del trabajo psicoanalítico y el funcionamiento de un dispositivo clínico guiado por el psicoanálisis se basan en un proceso de escucha que guía el tratamiento. La aparición del psicoanálisis supone una descentralización. La división entre Yo y Ello está clara en el trabajo de Freud, especialmente con el concepto de Spaltung, división. Lacan, en su lectura de la obra freudiana, propone una vasta construcción teórica que trata de conceptualizar el sujeto para el psicoanálisis. El sujeto como el resto de una división, como la exploración, marcada por el idioma, se traduce como S barrado (por el significante). Lacan utiliza la noción de S barrado a lo largo de años, hasta que en cierto momento de su elaboración teórica la noción de parlêtre surge, para explicar un sujeto que tiene un cuerpo. La dimensión corporal no estuvo presente en la primera enseñanza lacaniana y el parlêtre expresa el sujeto más alejado de la noción de significante y más cercano a la letra del inconsciente. La pregunta que surge es si el cambio conceptual de S a parlêtre provoca un cambio en la escucha clínica y el acto del psicoanalista. Además, argumentamos que el estudio teórico y la comprensión de los dos momentos de Lacan en el tema nos ayudan a pensar en una clínica más ética y favorable a un deseo que se apreende por la letra.

Palabras clave: Psicoanálisis; Sujeto; S barrado; Parlêtre.


 

 

Introdução

O ponto mais importante de um campo de estudos é o objeto de pesquisa, isto é, o ponto central da busca, o ponto que coloca uma questão para o pesquisador. Esse ponto principal, em psicanálise, é o inconsciente, descoberto por Freud e amplamente estudado por Lacan. A existência do inconsciente pressupõe a existência de um sujeito do inconsciente. Este trabalho aborda a questão do sujeito do inconsciente de acordo com Lacan, o qual tem como ponto de partida uma concepção de $, pensado a partir de uma estrutura significante, que precede a noção de sujeito falasser [parlêtre], associado à letra do inconsciente. Uma mudança teórica se dá no percurso de Lacan, haja vista que ele parte de uma concepção de sujeito fundada sobre o simbólico rumo a uma perspectiva nova do sujeito como falasser, articulado com o real. O objetivo deste trabalho é colocar em destaque que uma mudança teórica no que diz respeito ao sujeito da psicanálise implica também uma mudança na clínica psicanalítica.

A questão que se apresenta é se o fato de Lacan ter passado de um momento para o outro, do simbólico para o real, contribuiu para uma mudança no nível da clínica, da direção de uma análise. Uma concepção de sujeito implica uma concepção de fantasia, uma relação com o objeto a, e com o desejo. Dito isso, pretendo falar do caminho lacaniano com relação ao sujeito, com o fim de esclarecer a noção de fantasia e de direção do tratamento. Para isso, fui procurar os argumentos de Lacan nos seguintes textos: "A direção do tratamento e os princípios de seu poder", publicado nos Escritos em 1958 (1998a); O seminário 5: as formações do inconsciente, de 1957-1958 (1999); O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação, de 1958-1959 (2016); "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano", de 1960 (1998c); e "Radiofonia", breve texto, também publicado nos Outros escritos, que data de 1970 (2003), ou seja, do fim do ensino.

Pensar o sujeito em psicanálise é pensar o sujeito do inconsciente, aquele dos atos falhos, dos sonhos e dos lapsos. Essa lógica permitiu que Freud construísse uma doutrina que já considerava que o sujeito e o eu [moi] não são a mesma coisa, e que justamente ali onde o eu não está o sujeito surge. A partir dessa noção, Lacan fez uma separação entre o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação. É em "O seminário sobre a carta roubada" (Lacan, 1955/1998) que Lacan afirma que a grande descoberta freudiana foi situar o sujeito do inconsciente muito além do eu. Essa descoberta fornece as bases para a construção de toda uma gama de conceitos psicanalíticos, como fantasia, repetição e trauma. Conceitos que se baseiam na lógica de um inconsciente como o efeito do Outro, e de um sujeito como aquilo que é representado por um significante para outro significante.

Por fim, este trabalho propõe uma leitura sobre a importância de uma concepção de sujeito para estruturar a clínica e a transmissão em psicanálise. Quem é o sujeito do inconsciente lacaniano e qual a importância de estudá-lo? Uma perspectiva teórica sobre o sujeito seria capaz de produzir efeitos na interpretação do analista e poderia nos levar a uma clínica mais ética?

 

A barra do significante

Aqueles que dizem que as pessoas que vemos na rua podem ser chamadas de sujeitos certamente não são psicanalistas. Algumas psicologias tomaram o termo sujeito para designar o individual, o indivíduo. Nessa perspectiva, toda e qualquer pessoa pode ser chamada de sujeito, haja vista que sua individualidade como pessoa singular faz com que ela já seja um sujeito. Para a psicanálise, o termo sujeito está colocado como um conceito, de modo que, em uma leitura psicanalítica, um sujeito não é o mesmo que uma pessoa.

Quando falamos de sujeito em psicanálise, falamos de um ser sujeitado. Mais precisamente, para Lacan, o sujeito não tem substância, ele não é um corpo vivo, mas algo que deve ser convocado para se fazer aparecer. Essa história começa com Freud, quando ele cria uma doutrina do inconsciente em que a principal contribuição é a descoberta da noção de que não temos controle sobre todos os nossos atos, que o eu é apenas uma superfície que esconde um sujeito de desejo, que escapa e se mostra nos sonhos, lapsos e sintomas.

Quando uma pessoa vai a um psicanalista, ela se dirige ao analista como alguém que sofre. Ela acredita que existe um saber sobre seu sofrimento e endereça uma questão ao analista como aquele que ele supõe saber. Para escutar o sujeito do desejo, a repetição e, sobretudo, o sujeito do gozo, o analista deve fazer advir o sujeito do inconsciente. Essa lógica é aquilo que determina o discurso do analista como uma relação entre a e S barrado, como nos mostra Lacan no Seminário 17 (Lacan, 1969-1970/1992). A fantasia, conceito bem trabalhado no Seminário 6 (Lacan, 1958/2016), também marca uma ligação entre o sujeito e o objeto a.

A descoberta freudiana do inconsciente opera uma descontinuidade, uma excentricidade em relação ao eu. Questionar a existência de algo além do pensamento consciente torna a psicanálise uma das três maiores decepções da humanidade. Darwin, Freud e Copérnico retiraram o homem da noção egocêntrica. Lacan, a partir de Freud, criou todo um percurso teórico e conceitual, com o objetivo de estruturar um sujeito da psicanálise. A princípio, uma abordagem com o mundo da linguística leva Lacan a interpretar o simbólico pelo significante. Quando nos situamos em 1958- -1959, com o Seminário 6 e a publicação de "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano" (Lacan, 1960/1998c), vemos uma definição de sujeito que se traduz por sua relação com o significante, a saber, S barrado.

Esse grande S com uma barra é uma criação lacaniana que marca uma fase do ensino em que o simbólico assumia um lugar fundamental, e o S barrado demonstra uma relação do sujeito com a linguagem. A primeira aparição do conceito S barrado no ensino de Lacan (1957-1958/1999) data de 1957-1958, no Seminário 5:as formações do inconsciente. Desse texto, podemos identificar uma noção de que a psicanálise propõe a convocação de um sujeito do inconsciente, uma vez que há uma diferença entre o que se diz e o que se quer dizer.

No final da década de 1950, encontramos também uma posição lacaniana que insiste no fato de que o inconsciente existe em relação com o Outro. É a introdução no mundo da linguagem que faz com que uma operação de divisão seja operada pelo significante, o que acaba por colocar a barra do lado do sujeito, mas também por barrar o Outro. Essa divisão é bem esclarecida por Lacan no texto "A direção do tratamento e os princípios de seu poder" (Lacan, 1958/1998a) e refere-se ao termo freudiano Spaltung. A fenda ou divisão operada pela linguagem resulta em um sujeito articulado a uma falta-a-ser, já que o produto dessa operação de divisão é o objeto a.

É em 1958, com o Seminário 6, sobre a lógica da fantasia, que Lacan faz a aproximação do S barrado com o objeto a. Esse seminário, muito rico, permite-nos entender a fórmula da fantasia: $ <> a, permitindo-nos definir justamente a relação entre o sujeito do inconsciente e o resto de sua divisão como fantasia. Dito isso, o nascimento do sujeito barrado é articulado à construção de uma fantasia. Essa fantasia, que se constrói na inscrição do sujeito no registro significante, mas que deve ser reconstruída novamente durante uma análise, uma vez que o sujeito não se reconhece nela. Voltaremos a isso.

O S barrado é justamente aquilo que escapa ao simbólico, o que causa uma descontinuidade na cadeia significante. Novamente no texto "A direção do tratamento", Lacan aborda as especificidades do sujeito barrado como sendo aquele que é golpeado pelo significante, fazendo referência ao texto freudiano Bate-se uma criança (Freud, 1919/1978). A noção de que o golpe do significante opera a divisão do sujeito orienta Lacan para a construção da lógica da fantasia como aquilo que testemunha um gozo próprio do sujeito localizado no Outro.

O golpe significante que coloca a barra e opera a divisão do sujeito resulta em perda de gozo, o que inscreve a relação sexual como impossibilidade. A fantasia, então, é estruturada como uma tentativa repetitiva de recuperar o gozo perdido, de buscar no campo do Outro a possibilidade de relação sexual.

A importância da barra reside no fato de que o Outro também é barrado nessa operação, o que lhe dá inconsistência. Essa descontinuidade no Outro é aquilo que permite o laço social. Quando a operação de substituição do Desejo da Mãe pela Metáfora Paterna não se opera, a barra não é colocada no Outro, o que lhe confere um caráter de gozo invasivo, como se vê na psicose. A barra é definida como uma "marca invisível que o sujeito recebe do significante, aliena esse sujeito na identificação primeira que forma o ideal do eu" (Lacan, 1960/1998c, p. 822). O objeto a é aquilo que vem para preencher essa divisão e estruturar-se como causa do desejo. O $ é o sujeito sujeitado à linguagem, subordinado aos ditos do Outro. Bem entendido, o significante do Outro é aquilo que produz o sujeito barrado, dividido, falado antes mesmo de ele nascer.

Pode-se notar que, nesse primeiro momento do ensino, que começa em 1957--1958, Lacan define o sujeito ao mesmo tempo que define o significante. Cito-o: "Um significante é aquilo que representa um sujeito para um outro significante" (Lacan, 1960/1998c, p. 833). Essa definição, de acordo com Izcovich,

(...) designa, portanto, o sujeito da cadeia significante e confere, assim, sua estrutura, a partir da forma como a cadeia inconsciente exerce seus efeitos. A questão que isso levanta é a do lugar do corpo, que permanece pendente nessa doutrina e, portanto, mais precisamente, de sua articulação com o conceito de sujeito. (Izcovich, 2008, p. 35)

Dito isso, a primeira definição de sujeito como S barrado, como aquele que faz escansão na cadeia significante, não reconhece o corpo. Dar um corpo a esse sujeito inconsistente é uma questão que Lacan coloca-se nos anos 1960, e uma mudança de perspectiva põe-se em cena quando ele considera o gozo em relação ao significante. A partir dos anos 1960, o real ganha outro status, e se antes o sujeito era considerado como aquele que cai da continuidade da cadeia significante, em 1972 ele o define como "descontinuidade no real" (Lacan, 1960/1998a, p. 815).

Considerar o real e o gozo nesse segundo momento leva-nos a pensar que Lacan tem uma mudança de concepção de sujeito. O falasser, tema de seu segundo ensino, vem no lugar do S barrado. Esse conceito vem reunir o sujeito falado pelo Outro e o sujeito falante, o enunciado e a enunciação. O falasser finalmente introduz a dimensão do corpo, como algo vivo, o que faltava ao S barrado. Essa mudança de perspectiva muda o curso do ensino, e, no nível da clínica, o sintoma, que antes era considerado um simples retorno do recalcado, naquele momento pode ser lido como um acontecimento de corpo, como o ponto em que o corpo encontra o gozo. Segundo Miller:

O sujeito, como efeito de significação, "é resposta do real". Considerei essa frase de Lacan como surpreendente. Temos a impressão de que é algo denso. Mas é preciso perceber que o sujeito, isto é, essas diferentes elisões que passeiam por aí, é tudo o que temos como resposta do real. (...) O que é a resposta do real na psicanálise, se essa resposta é o sujeito e nada além disso? Bem, se a resposta do real é o sujeito, vemos o que podemos esperar no nível do sujeito. (Miller, 1983, p. 5)

O real, bem entendido, adquire um lugar importante no segundo momento do ensino de Lacan, o que também modifica as perspectivas clínicas e o ato do analista. Uma mudança de perspectiva no nível abstrato da teoria provoca também um refinamento no nível da escuta analítica. Como a concepção de sujeito produz efeitos na clínica?

 

Desejo <> fantasia

A concepção de sujeito no ensino de Lacan não deve ser considerada uma abstração, uma vez que há importância clínica quanto ao conhecimento desse sujeito que a análise faz advir. Essa noção põe em questão o processo analítico e a posição do analista. Quando se compreende, a partir de Lacan, que a especificidade do homem é sua forma de perdurar por meio do significante, entende-se que uma escuta em psicanálise vai além do dito. Devemos levar esse sujeito o mais longe possível em sua singularidade; porém, como fazer isso?

Desde a primeira página do Seminário 6 (Lacan, 1958/2016), Lacan fala do trabalho da análise. As páginas seguintes apresentam o passo a passo da construção do grafo do desejo para enfatizar o fato de que a análise trabalha sobre e a partir do desejo. O desejo de saber do analisando é necessário para fazer surgir uma questão, o enigma do desejo, "o que ele quer de mim?". Por outro lado, é preciso o desejo operador, do analista, aquele que se desprendeu de sua própria fantasia, que opera para fazer surgir o traço de singularidade no sujeito, a diferença absoluta, como diz Lacan ao final do Seminário 11 (Lacan, 1964/1993).

De acordo com Lacan, o desejo é o ponto enigmático do sujeito, e a análise segue suas articulações no discurso do sujeito. É o trabalho do significante que nos permite acessar algo da ordem do desejo, isto é, os pontos de ruptura da cadeia significante revelam-nos a via do desejo. Cito-o:

O desejo é esse x do sujeito que é tomado na rede significante, nas malhas do significante, que é submetido à filtragem, à peneiração do significante. Nosso objetivo é revelá-lo, restituí-lo, restaurá-lo, em seu discurso. Como podemos fazer isso? O que significa que podemos fazer isso? Segundo a doutrina, a prática, a experiência freudiana, como lhes disse, a posição do desejo é a de ser excluído, enigmático. (Lacan, 1958/2016, p. 158)

A experiência analítica apresenta-nos, assim, uma articulação estrita entre o ser do sujeito e o significante, uma vez que ele é aquilo que constitui o sujeito como tal, e é a vacilação significante que faz surgir um sujeito do desejo localizado na escansão, nos pontos de ruptura da cadeia. "É fundamentalmente a linguagem que introduz a dimensão do ser para o sujeito e, ao mesmo tempo, a tira dele" (Lacan, 1958/2016, p. 159). Esse ponto é crucial na clínica, dado que a dimensão da existência de um sujeito é articulada à marca do significante.

A análise consiste, portanto, de uma reconstituição daquilo que já foi uma vez apagado, mas permanece indelével junto ao sujeito. Uma reconstrução da fantasia é necessária para conhecer o endereçamento desse discurso, o Outro desse sujeito, para quem ele fala. O analista, desprendido de sua fantasia e esvaziado de suas identificações imaginárias, é movido pelo desejo do analista, aquele da ordem de uma operação, que apela para o sujeito do desejo, por meio da interpretação. Segundo Lacan, "interpretar o desejo é restituir aquilo que o sujeito não pode acessar por conta própria, a saber, o afeto que designa seu ser e que se localiza no nível do desejo que é dele" (Lacan, 1958/2016, p. 159).

A relação com o ser do sujeito delineia-se no campo do significante. Essa perspectiva faz com que a psicanálise não proceda da ideia do corpo biológico ou do sujeito da necessidade, como várias correntes psicológicas. O sujeito da necessidade é aquele do impulso vital, no qual a medicina, por exemplo, baseia-se. Quando falamos de sujeito do inconsciente, consideramos aquilo que o sujeito quer no ponto mais longínquo de sua relação com o ser, isto é, aquilo que mantém sua existência no nível de seu desejo. O sujeito da necessidade é articulado ao eu, essa superfície de relação imaginária com o pequeno outro, que é em seguida tomada pelo Grande Outro. O eu, portanto, institui uma relação com o imaginário e o desejo, fixa-se em uma relação com a fantasia. De acordo com as palavras de Lacan:

O sujeito enquanto desfalecimento, na medida em que ele desfalece numa certa relação com um objeto eletivo - eis a relação [rapport] que designo a vocês por meio da fantasia. A fantasia sempre tem essa estrutura. Ela não é simplesmente relação de objeto. É algo que corta. É um certo desfalecimento, uma certa síncope do sujeito na presença de um objeto. A fantasia satisfaz uma certa acomodação, fixação, do sujeito com relação a um objeto que tem um valor eletivo. (Lacan, 1958/2016, p. 192)

A dimensão do desejo e a constituição da fantasia são detalhadas por Lacan por meio do grafo do desejo; ainda no Seminário 6, ele explica a passagem de um ponto a outro, o que nos permite lê-lo assim:

O x que é o desejo se situa em algum lugar na linha que vem do código inconsciente, na direção oposta à linha intencional que está diante dela, ou seja, o segmento de retorno ($ <> D) ---> d. O desejo está ali, flutuando em algum lugar no além do Outro. No entanto, sabemos também que o desejo está sujeito a uma certa regulamentação. Isto nos é representado aqui por sua altura de fixação, se pudermos dizer, no nível de um determinado ponto da linha que, voltando da mensagem do inconsciente, vai na direção de s(A), a mensagem do Outro no plano imaginário. Essa linha para a meio caminho sobre o $ <> a, pois é a fantasia que regula a altura de fixação do desejo, que determina sua situação. (Lacan, 1958/2016, p. 307-308)

Isto é, o produto do desejo que sofre uma regulação articula-se com o campo do Outro e com a fantasia. A fantasia, em seu papel de regulação do desejo, cria uma realidade suportável de viver para o sujeito. Essa janela do real determina como o sujeito vê o mundo, a partir de um mito em que ele constrói sua relação com o mundo. O final da análise foi associado ao trabalho de atravessar a fantasia. O início da análise propõe uma construção da fantasia que deve vir antes de sua travessia, simultânea à queda radical do Outro.

 

A clínica: do falado ao falante

A importância do estudo da concepção de sujeito em Lacan e de suas diferentes interpretações reside no fato de que, a partir de um esclarecimento daquilo que é o sujeito em questão em psicanálise, é possível melhorar uma escuta clínica e, por fim, cristalizar a prática do analista. Quando um sujeito conta-nos sua história, ele é impregnado pelos significantes do Outro, o que lhe confere seu lugar no mundo. Lembro-me de uma paciente em St. Anne que, tendo perdido 32 quilos depois de se aposentar, solta uma máxima de seu pai: "aqueles quenão trabalham não comem". E eis o significante que marca o corpo e que faz diz-mansão [dit-mansion] da existência do sujeito.

O ato analítico consiste justamente em passar de um momento ao outro. Quando se fala de ética do desejo e ética do sujeito, confirma-se a ideia de que a psicanálise é uma contracorrente aos discursos pragmáticos, adaptativos ou médicos. O que nos interessa na fala de um analisando é, na verdade, o ponto em que ele não está lá. O intervalo dos significantes, o ponto de ruptura de um discurso expõe a dimensão de sujeito pela qual nos interessamos.

A associação livre, método freudiano, atesta desde sua origem que, entre os ditos do Outro, há um dizer do sujeito que escapa à alienação radical, um traço de singularidade e de inventividade que o analista tenta fazer surgir. Uma mudança subjetiva de posição acontece durante uma análise, o que Lacan dá destaque em 1956:

Eu dizia isso esquematicamente no tempo arcaico destes seminários - o sujeito começa por falar dele, e não fala com você - a seguir, ele fala com você, mas não fala dele - quando ele tiver falado dele, que terá sensivelmente mudado nesse meio-tempo, com você, teremos chegado ao fim da análise. (Lacan, 1955-1956/1985a, p. 186)

Essa era a noção de fim de análise, segundo Lacan, na primeira fase de seu ensino. A perspectiva do sujeito adotada por Lacan nessa época era sempre a do sujeito barrado. Sobre a posição do analista, ainda no Seminário 3, ele afirma que se trata de ter de ser "bastante morto para não ser pego na relação imaginária" (Lacan, 1955-1956/1985a, p. 186).

As concepções de Lacan sobre o fim de análise mudaram à medida que seu ensino progrediu, assim como a concepção de sujeito também sofreu modificações. O S barrado era o resultado de uma perspectiva baseada no simbólico, o Lacan da cadeia significante. Ou seja, essa concepção de sujeito foi formulada por meio daquilo que Lacan tinha na época como fonte, a saber, a estrutura da linguagem. O problema é que essa perspectiva não leva em conta o corpo desse sujeito, não lhe dá consistência corporal.

Em um segundo momento do ensino, o corpo e o gozo adquirem um peso diferenciado, e Lacan abre um caminho para a construção de um sujeito mais do lado do real do que do simbólico, do gozo e da alíngua. O falasser integra as dimensões do dito e do dizer em um único conceito, o sujeito borromeano, que, a partir de um traço de singularidade, sustenta os três registros do RSI. Lacan passa de uma noção estrutural e linguística para uma perspectiva mais matemática e real no segundo ensino.

O gozo, segundo Lacan, é "aquilo que não serve para nada" (Lacan, 1972- -1973/1985b, p. 11), mas que não cessa de insistir. No Seminário 20, Lacan evoca que a substância do corpo é o gozo, e que a experiência psicanalítica supõe apropriadamente que a substância de um corpo é definida "somente por aquilo que se goza" (Lacan, 1972-1973/1985b, p. 35). Nessa lógica, ele insere o significante como substância gozante e afirma que "o significante é a causa do gozo. Sem o significante, como mesmo abordar aquela parte do corpo? Como, sem o significante, centrar esse algo que, do gozo, é a causa material?" (Lacan, 1972-1973/1985b, p. 36).

O sinthoma, de forma simples e resumida, é justamente o ponto de captura daquilo que há de mais singular em cada sujeito, e essa noção é fundamental para compreender o fim de análise, de acordo com Lacan nos anos 1960. Tendo em conta que nos anos 1950 o fim de análise tinha uma relação com o significante, nos anos 1960 Lacan propõe que, no fim de análise, o sujeito confronta-se com o objeto, pequeno a. Esse objeto, que ao mesmo tempo tem uma função de resto da divisão de sujeito e de preenchimento, é integrado na noção de fim de análise. Não apenas isso, a noção de gozo é também acrescentada no esquema significante, que é esclarecido com Joyce (Lacan, 1975/2003b), aquele que pode gozar da letra.

"O tratamento analítico lacaniano é uma experiência rigorosamente singular que coloca em jogo as invenções excepcionais de um sujeito" (Pernot, s.d., s.p.), e o segundo ensino tem como foco a experiência do singular de cada sujeito e a possibilidade de bem-dizer seu sintoma, isto é, estabelecer uma nova forma de falar de sua história.

O sujeito do segundo ensino é borromeano, e a topologia dá consistência a esse sujeito que faz com que três registros se sustentem e que maneja esse nó durante um processo analítico. O nó borromeano é uma "escrita que suporta um real" (Lacan, 1974-1975, p. 12), e, nessa perspectiva, o fim da análise coincide com a possibilidade de escrever algo singular diante da impossibilidade, da relação não sexual.

Com o Seminário 20, Lacan põe em causa a estrutura da linguagem, ele evoca "um Outro modo do falante na linguagem" (Lacan, 1972-1973/1985b, p. 252), o que muda tudo, dado que o sintoma não é mais considerado simples retorno do recalcado, mas o efeito do simbólico no real, o ponto em que o corpo junta-se ao gozo. Ou seja, a partir dessa época, o fim de análise está mais do lado de um confronto com o gozo, e o analista é aquele que faz um esvaziamento de sentido para levar o sujeito a alcançar o real do sintoma, a opacidade do gozo.

Essa operação desenrola-se por meio do equívoco como fonte de interpretação. O equívoco e a posição do analista são evocados por Lacan em "Televisão", quando afirma que a posição do analista pode ser comparada à de um santo. Não no sentido em que o santo faz caridade [charité], mas que ele faz descaridade [décharite]. Cito-o: "O santo, para que me compreendam, não faz caridade. antes, presta-se a bancar o dejeto: faz descaridade. Isso para realizar o que a estrutura impõe, ou seja, permitir ao sujeito, ao sujeito do inconsciente, tomá-lo como causa de seu desejo" (Lacan, 1973/2003c, p. 518).

No mesmo texto, ele afirma que "o sujeito do inconsciente, ele engrena sobre o corpo" (Lacan, 1973/2003c, p. 535), e essa noção mostra-nos que o falasser é uma junção do gozo e da fala, esse sujeito devastado pelo verbo, que faz do corpo litoral. O analista é aquele que faz bom uso da letra e consegue esvaziar o significado e fazer cair a fantasia, o que faz com que o sujeito seja obrigado a confrontar o real de seu gozo. Quando o sujeito não usa mais sua fantasia, ele pode finalmente ter outra relação com seu sintoma. Essa queda abre as portas para a possibilidade da introdução do novo, da ordem da inventividade. Essa clínica convida os analistas a não recuarem diante do real e a se orientarem pelo desejo ao pé da letra [à la lettre].

 

Referências bibliográficas

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Recebido: 06/03/2019
Aprovado: 15/05/2019

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