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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.38 Rio de Janeiro jan./jun. 2019

 

ARTIGO BILÍNGUE

 

A lógica da interpretação em Lacan: entre o significante-mestre e o Há Um

 

The logic of interpretation in Lacan: between the master-signifier and the there is something of One

 

La lógica de la interpretación en Lacan: entre el significante-maestro y el Hay Uno

 

La logique de l'interprétation chez Lacan : entre signifiant-maître et « Y a d'l'Un »

 

 

Brendali Dias; Isaías Gonçalves Ferreira

 

 


RESUMO

Segundo Lacan, o significante-mestre apresenta uma propriedade fundamental para a lógica da interpretação: seu ponto de estofo, que garante a função de legibilidade. Com isso, a ordenação dos laços sociais fixa um elemento (S1), que possibilita o efeito de leitura na interpretação da ordem discursiva. Freud, por exemplo, identificou um significante-mestre, o sintoma, que lhe permitiu "ler" a divisão subjetiva e descobrir o inconsciente. Lacan, por sua vez, localizou um efeito de degenerescência do significante-mestre no discurso universitário por meio de uma corruptela no discurso do mestre. Não obstante, postulou que no discurso do analista surge um novo estilo e uma nova função do significante-mestre (dimensão da singularidade), que produz um recurso contingencial essencial para a produção do giro discursivo em direção ao Há Um. Desse modo, a partir da política da falta-a-ser, é possível pensar uma estratégia que caminha para a dissolução do sujeito suposto saber, já que o analista, como semblante do objeto a, coloca o sujeito a produzir seus significantes-mestres. Assim, no discurso do analista, o lugar abrigado da verdade posiciona um saber sem sujeito. Com efeito, se, por um lado, os efeitos da análise produzem a travessia da fantasia fundamental e a destituição subjetiva, por outro, uma análise levada a seu término tem o efeito de produzir um analista solidário da política do sintoma que se extrai do Há Um.

Palavras-chave: Ordem discursiva; Decifração; Final de análise.


ABSTRACT

According to Lacan the master-signifier presents a fundamental property to the logics of interpretation: its quilting point guarantees the legibility function. With that, the ordering of social bonds fixes one element (S1) that enables the reading effect in the interpretation of the discursive order. Freud, for example, identified one master-signifier, the symptom, that enabled "reading" the subjective splitting and finding out the unconscious. Lacan, in his turn, located a degenerating effect of the master-signifier in the discourse of the university through a corruption in the discourse of the master. However, he postulated that in the discourse of the analyst a style and a new function of the master-signifier emerge (singularity dimension) that produce an essential contingent resource to the production of a discursive turn towards there is something of One. So, through the policy of lack-of-being it is possible to think of a strategy that moves towards the dissolution of the subject supposed to know, since the analyst as the semblance of the object a puts the subject ($) to produce his-masters signifiers (S1), and thus, in the discourse of the analyst, the sheltered place of truth positions knowledge without subject (a/S2). Indeed, if on one hand the effects of the analysis produce the fundamental fantasy traversing and subjective destitution, on the other hand an analysis taken to its end has the effect of producing an analyst in solidarity with the policy of the symptom extracted from there is something of One.

Keywords: Discursive order; Decoding; End of analysis.


RESUMEN

Según Lacan el significante-maestro presenta una propiedad fundamental para la lógica de la interpretación: su punto de tapón que garantiza la función de legibilidad. Con ello, la ordenación de los lazos sociales fija un elemento (S1) que posibilita el efecto de lectura en la interpretación del orden discursivo. Freud, por ejemplo, identificó un significante-maestro, el síntoma, que le permitió "leer" la división subjetiva y descubrir el inconsciente. Lacan, a su turno, localizó un efecto de degeneración del significante-maestro en el discurso universitario a través de una corrupción en el discurso del maestro. Sin embargo, postuló que en el discurso del analista surge un nuevo estilo y una nueva función del significante-maestro (dimensión de la singularidad) que produce un recurso contingencial esencial para la producción del giro discursivo hasta el Hay Uno. Así, a partir de la política de la falta en ser es posible pensar una estrategia que camina hacia la disolución del sujeto supuesto saber, ya que el analista como semblante del objeto a coloca al sujeto ($) a producir sus significantes-maestros (S1), en la medida en que en el discurso del analista el lugar abrigado de la verdad posiciona un saber sin sujeto (a/S2). En efecto, si por un lado, los efectos del análisis producen la travesía de la fantasía fundamental y la destitución subjetiva, por otro, un análisis llevado a su término tiene el efecto de producir un analista solidario de la política del síntoma que se extrae del Hay Uno.

Palabras clave: Orden discursiva; Descifración; Final de análisis.


RÉSUMÉ

Selon Lacan, le signifiant-maître présente une propriété fondamentale pour la logique de l'interprétation : son point de capiton qui garantit la fonction de lisibilité. De ce fait, l'aménagement des liens sociaux fixe un élément (S1) qui rend possible l'effet de lecture dans l'interprétation de l'ordre du discours. Freud, par exemple, a identifié un signifiant-maître, le symptôme, qui lui a permis de « lire » la division subjective et de découvrir l'inconscient. Lacan, lui, a repéré un effet de dégénérescence du signifiant-maître dans le discours universitaire par une modification dans le discours du maître. Néanmoins, il a postulé qu'un nouveau style et une nouvelle fonction du signifiant-maître (dimension de la singularité) surgit dans le discours de l'analyste, lequel produit une ressource circonstancielle essentielle pour la production du tournant discursif vers le « Y a d'l'Un ». Ainsi, à partir de la politique du manque-à-être, c'est possible de penser une stratégie qui va vers la dissolution du sujet supposé savoir, puisque l'analyste en tant que semblant de l'objet a fait le sujet produire ses signifiants-maîtres, de sorte que, dans le discours de l'analyste, la place de la vérité abritée place un savoir sans sujet. En effet, si d'un côté les effets de l'analyse produisent la traversée du fantôme fondamental et la destitution subjective, d'autre côté la fin de l'analyse a l'effet de produire un analyste solidaire de la politique du symptôme qu'on extrait du « Y a d'l'Un ».

Mots-clés : Ordre du discours ; Déchiffrage ; Fin d'analyse.


 

 

O significante-mestre e seu efeito de legibilidade da ordem discursiva

De acordo com Soler (2010), Lacan postula que o significante-mestre apresenta uma propriedade fundamental para uma lógica da interpretação: seu ponto de estofo, que garante a função de legibilidade. O significante-mestre comanda o ordenamento social (discursivo), na medida em que sustenta uma função coletivizante. Temos, assim, o Ideal de que há Um que faz andar o mundo, o que sempre exige uma renovação constante, isto é, uma mudança de mestres na ordem social.

O significante-mestre, nesse sentido, é o que define a legibilidade do princípio em que se sustenta a ordem discursiva. Esse princípio discursivo integra um aparelho de linguagem que ordena as relações sociais. Dessa forma, ao fixar o elemento que possibilita o efeito de leitura, torna a ordem discursiva interpretável. Marx, por exemplo, introduziu um significante-mestre, o fetichismo da mercadoria, que lhe permitiu "ler" o capitalismo em ascensão na sociedade burguesa do século XIX. Um significante, portanto, que fez aparecer uma ordem oculta: a expropriação da mais-valia. Freud, por sua vez, identificou outro significante-mestre, o sintoma, que o permitiu "ler" a divisão subjetiva e descobrir o inconsciente (Soler, 2010). Já Lacan localizou uma corruptela no discurso do mestre antigo, que lhe permitiu "ler" um efeito de degenerescência do significante-mestre no discurso universitário (discurso do mestre pervertido).

Desse modo, nota-se como no Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, Lacan (1969-1970/1992) dedica muitas páginas para analisar o discurso universitário e a subsequente degenerescência do significante-mestre. Com efeito, localizou uma passagem do discurso do mestre (antigo) para o discurso da universidade (mestre moderno). Em seu entendimento, o discurso universitário produziu uma espécie de "tirania do saber", envelopada pela burocracia, culminando em uma forma pervertida de estruturação do laço social (o mestre pervertido). O universo da crítica de Lacan ao discurso universitário estava amplamente marcado pela burocracia, que envolvia, especificamente, a situação da universidade na França, a tal ponto que reduzia a experiência do ensino a uma mera unidade de valor. O estudante havia se tornado um astudado,1 isto é, um produto do saber tirânico da universidade, tendo em vista que, no discurso universitário, o significante-mestre está escamoteado pelo saber.

Consequentemente, o significante-mestre (S1) tornou-se o nome do autor que garantiria a tirania do saber (S2). O princípio de legibilidade é suspenso, e em seu lugar aparece uma forma de promoção pessoal, sustentada na hiperindividualização da era moderna. Com isso, o nome do autor atrapalha o ordenamento do laço social, que é reduzido às sociedades de autores (Soler, 2010). Da mesma forma, promove-se um campo inflacionado de citações, referenciamentos e autorreferenciamentos, assim como se produz um esgotamento do campo da criatividade e da originalidade - a singela marca da singularidade.

Lacan (1969-1970/1992) observou, de forma muito auspiciosa, que a contestação, chamada de revolucionária em Maio de 1968, havia caído em uma demanda histérica, que exigia a substituição de um significante-mestre por outro, produzindo, assim, uma espécie de hipertrofia discursiva. Aqui, de certo modo, reside o âmago da crítica de Lacan aos estudantes franceses: "É ao que vocês aspiram como revolucionários, a um mestre. Vocês o terão" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 218). E isso sendo que a revolução havia sido reduzida a uma mera efusão, que reproduzia palavras de ordem. Em sua opinião, o termo revolução era representativo de um giro em seu próprio eixo, ou seja, um retorno ao ponto de partida. O exemplo comumente retomado por Lacan dizia da revolução dos planetas, que giravam entorno de seu próprio eixo (rotação) e em torno do sol (translação). De certa forma, foi nessa referência que Lacan estruturou o núcleo de sua crítica aos universitários franceses, os quais bradavam ao som de latidos que as estruturas deveriam descer às ruas e fazer a revolução. Lacan interpreta esse gesto como uma demanda que exigia a substituição de um mestre por outro, fazendo com que o discurso histérico perdesse sua mobilidade diante da força do mestre em plena corruptela. Pelo contrário, o que se poderia esperar no plano da transformação discursiva não era a revolução, mas, sim, a subversão do sujeito pela via do significante - que se produziria na função do saber (Lacan, 1971-1972/2000-2001).

 

A dimensão da vergonha produtora do significante-mestre em sua singularidade

Diante desse cenário, nota-se que a histerização no plano discursivo implica sujeitos desejantes, mobilizados pela insatisfação estrutural. O discurso da histérica, dessa forma, desponta como índice de contestação das ordens estabelecidas, assim como produtor de movimentos transformadores. Contudo, ele depende de um quarto de giro, para que o significante-mestre alcance seu estatuto de singularidade.

Nessa perspectiva, por intermédio do discurso analítico ocorre uma transformação no plano discursivo, tendo em vista a instauração da função de legibilidade e o efeito de interpretação do significante-mestre, o que possibilita, diante da condição de desejante, a produção singular de cada um (Lacan, 1969-1970/1992).

O discurso analítico, portanto, faz emergir o sujeito desejante, que se contrapõe a uma forma de vida individualizada e amplamente dominada pelo discurso capitalista. Vale lembrar que o desejo é o que faz laço, é o que permite a expressão das coisas do amor em um mundo (neoliberal), que tenta a todo custo rejeitá-las.

Isso implica que o analista, por se guiar pela ética do desejo, deve indagar-se constantemente sobre a possibilidade de colocar um limite nos efeitos catastróficos do discurso do mestre pervertido, isto é, em seu cinismo estrutural, temperado por manifestações segregacionistas. É por isso que a vergonha de viver é uma forma de o psicanalista atuar na cultura. Lacan considera a importância do lugar da vergonha na produção do giro discursivo. Dirá Lacan (1969-1970/1992, p. 191): "morrer de vergonha é um efeito raramente obtido". A vergonha, embora em uma época que não se cessa de depreciá-la, pode dar suporte para promover a mudança de um laço social degradado. Dito de outro modo, nomear a vergonha, pelo discurso analítico, seja de seus excessos, seja dos excessos dos laços sociais de nosso tempo, pode conferir dignidade ao significante, por evocar a dimensão da singularidade. Para Lacan (1969-1970/1992), isso ocorre porque a vergonha é o buraco do qual brota o significantes-mestre, pois ela é designada pelo que singulariza um sujeito no campo do Outro. Ter vergonha, por conseguinte, é uma espécie de marca da dignidade humana e da potência do laço social, uma vez que representa um recurso contingencial essencial para a produção do giro discursivo. Dessa maneira, a vergonha dos excessos produzidos no laço social de nosso tempo tem a potência de produzir um corte no campo do gozo e do discurso cínico, retraçando uma direção ética no laço social.

 

A singularização e o efeito de interpretação do significante-mestre no discurso analítico: a decifração

Nos anos 1950, Lacan estabelece um programa de investigação sob a rubrica do retorno a Freud, já que em seu entendimento havia ocorrido um afastamento declarado do que residia no âmago da obra freudiana. A psicanálise pós-freudiana - nesse contexto, expressamente antifreudiana - estava envolvida por uma ortopedia e uma rigidez da prática clínica, que se sustentava pelo exercício de um poder. No diagnóstico de Lacan, a experiência da análise havia sido reduzida a uma dialética intersubjetiva, na qual o analisante (ego fraco) buscava continente no analista (ego forte), produzindo, assim, uma adaptação deste à realidade (Lacan, 1958/1998b). Todavia, para Lacan, o percurso analítico obedece a uma política da falta-a-ser, que implica, por um lado, a emergência do sujeito do desejo (analisante) e, por outro, a tática marcada pelo efeito de interpretação (analista).

Nesse sentido, a experiência analítica segue uma estratégia transferencial (efeito simbólico da lógica do significante), que caminha para sua dissolução, na medida em que o analista ocupa a posição de des-ser (queda imaginária da pessoa do analista), encarnando com seu silêncio o semblante do objeto a (função que produz um efeito real de causa do desejo).

Nessa perspectiva, a função de objeto a encarnada pelo analista, diante das queixas esparsas do analisante, produz uma histerização do discurso, que marca a entrada no labirinto da análise, isto é, "a introdução estrutural, mediante condições artificiais, do discurso da histérica" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 33). Nesse momento, o que se produz é a verdade do discurso do mestre (discurso do inconsciente), tendo em vista que a dominância do significante-mestre imiscui, no lugar abrigado da verdade, o sujeito dividido. Clinicamente, o analista, pela semblantização do objeto a (causa do desejo), coloca o sujeito dividido ($) - o inconsciente em pleno trabalho - a produzir os significantes-mestres (S1) ordenadores de sua vida (efeito da interpretação). Enquanto isso, a verdade do discurso do analista posiciona um saber sem sujeito, a/S2 (Lacan, 1969-1970/1992). Em suma, no discurso do analista, surgem um novo estilo e uma nova função do significante-mestre: sua produção singular.

Nessa esteira argumentativa, a função do enigma coaduna-se pelo semidizer da verdade. Um saber que ocupa o lugar da verdade e que promove a vetorização da estrutura da interpretação. Dessa maneira, a interpretação, no âmbito analítico, responde ao equívoco de um saber como verdade que a lógica significante estabelece pela via da enunciação de um enigma (Lacan, 1969-1970/1992).

O sujeito da enunciação, portanto, não se resume a uma mera categoria de análise linguística, pois expressa um ato que está além de todo o cálculo simbólico que direciona as coordenadas do sentido. A psicanálise, dessa forma, situa-se como um "discurso sem fala", e a própria essência do discurso analítico implica a irredutibilidade da enunciação ao enunciado, do dizer ao dito. Dessa forma, o real que orienta a práxis clínica manifesta-se como o impossível no plano do discurso analítico. Logo, o real é refratário ao conceito totalizador, manifestando um impasse à formalização conceitual, mesmo sendo ele que sustenta o caráter ficcional da verdade. A verdade não se manifesta apenas na pura negatividade do indizível, mas, ao contrário, surge estreitamente conectada à superfície do dizer, ou, precisamente, em sua estrutura não-toda, que se expressa no semidizer (Lacan, 1968-1969/2008a).

Desse modo, nota-se como em "O aturdito" o sujeito está identificado como resposta do real. Isto é, Lacan procurou formalizar a estrutura do sujeito aturdido diante do "significante da falta do Outro". Nesse momento, a própria lógica matemática e o recurso à topologia situam a impossibilidade mesma de dizer a verdade do real, da qual a psicanálise fundamenta seu campo como um discurso sem palavras, naquilo que constitui a estrutura do não-todo da significação. Assim, o simbólico não se confunde com o real, no sentido exato, de que a estrutura sendo o próprio real posiciona o impossível que subsiste como ex-sistência do dizer (Soler, 2012).

 

A queda dos significantes-mestres no final de análise: Há Um que resiste

Sob a pena de Freud, verificou-se a irredutibilidade da castração para o homem (angústia de castração) e para a mulher (inveja do pênis). Portanto, no percurso de uma análise freudiana, o que se encontra em seu horizonte "é uma falta que desvela a negativização do falo para ambos os sexos" (Quinet, 1991/2009, p. 96), ou seja, o encontro inevitável com a indestrutível rocha da castração.

Todavia, Lacan propõe uma retomada teórico-clínica dessa problemática freudiana, buscando questionar a irredutibilidade dessa constatação. Nesse expediente, ele se perguntou sobre uma análise levada a seu termo, isto é, um final de análise e os modos para verificá-lo. Para tanto, foi preciso que o conceito de fantasia fosse explorado, tendo em vista que esta "sustenta o desejo para o sujeito, constituindo a ficção ('fixão') do gozo ao qual está subordinado" (Quinet, 1991, p. 97).

Desse modo, no processo analítico, os significantes-mestres identificatórios do sujeito vão declinando de sua mestria, isto é, de sua função de assujeitamento em um modo de gozo. Portanto, é tarefa da análise fazer com que o sujeito (falta-a-ser) experimente-se como falta diante do irredutível e incurável "rochedo da castração". É diante desse impasse que Lacan pensará a possibilidade de um passe. Desse ponto de vista, o "rochedo da castração" não é um beco sem saída, mas, sim, um momento da análise em que a falta é evidenciada em sua dramaticidade, na medida em que a divisão subjetiva emerge como inquebrantável.

Não obstante, o percurso analítico não conduz o sujeito a uma resignação do desejo como falta, na qual a castração (-φ) é o símbolo impotente, muito menos se propõe completar sua hiância subjetiva, ou ainda reforçar sua alienação estrutural a uma suposta alienação aos ideais do analista como Outro do saber. Antes, sua função de objeto a (causa de desejo) conduz o tratamento analítico para uma destituição subjetiva, uma travessia dos envelopes imaginários do fantasma ($ ◊ a). Diante desse movimento, o sujeito separa-se dos significantes de sua falta-a-ser. Fazendo isso, nessa separação, o tratamento analítico acentua a densidade do ser, já que o objeto a, ser de gozo para o sujeito, desponta como o que causa o desejo e como aquilo que condensa o gozo. Desse ponto de vista, a separação diz da divisão do sujeito, na medida em que o percurso analítico tende a privilegiar um sentido da falta sobre o Outro, S(Ⱥ).

De acordo com Quinet (2002/2004), é possível pensar o final de análise, quando o sujeito, após um longo percurso, consegue deslocar o quadro da fantasia que recobria sua janela para o real. Dessa forma, coloca-se em posição de se "confrontar com o furo do Outro que o torna inconsistente (S(Ⱥ)) e deixar cair nesse intervalo o objeto a figurado no quadro da fantasia" (Quinet, 2002/2004, p. 163). O sujeito, diante do impasse de sua fantasia, produz um passe pelo final de análise, que desvela "a equivalência da falta constitutiva do sujeito com o vazio do objeto a, ($ a), fórmula que se distingue do quadro da fantasia em que se coloca em cena a relação do desejo do sujeito com o objeto ($ ◊ a)" (p. 163).

 

 

Surge, desse modo, uma falta na ordem do saber causada pelo objeto a caído da fantasia. Com isso, o desejo de saber não se dirige mais ao Outro horripilante de um saber totalizador; pelo contrário, o sujeito produz um desejo inédito, um desejo de saber sem Outro, um saber marcado pela solidão. Esse desejo de saber sem Outro coloca o analista em uma posição de rebotalho, pois esse saber vem antes do desejo, e não depois, como um horizonte especulativo (Quinet, 2002/2004).

Nessa perspectiva, o final de análise instaura uma disjunção entre o gozo e o Outro. Há Um (y a d'l'Un), resto de gozo não interpretável pelo Outro, de um gozo fora de sentido. Essa disjunção é a face não programável e não manipulável do encontro amoroso. O Um que se escreve na ordem da contingência - que "cessa de não se escrever" - demonstra o "impossível da relação que não se escreve, que não cessa de não se escrever no decorrer da análise" (Soler, 2012, p. 177, grifo nosso).

O gozo resiste à duplicação, sua expressão encontra refúgio na mesmidade pulsional da repetição (diferença absoluta), índice da busca pelo Um, que em uma verificação repetida estabelece a série dos uns. Aqui temos o Há Um, privilégio de um gozo que se instaura na experiência pela não relação com o Outro. Desse modo, "o inconsciente abordado pelo fantasma é solidário do 'não há relação sexual', ou seja, do real próprio ao inconsciente do Há Um [y a d'l'Un]" (Soler, 2012, p. 184).

O sintoma, portanto, apesar de dizer do real, traz sua inscrição no simbólico. Com efeito, as reformulações na concepção do sintoma, em sua dimensão de verdade, articulam-se ao campo do gozo, o que "incide na relação entre significante e gozo, que é uma relação de causalidade" (Quinet, 2000/2008, p. 142). Em "A ciência e a verdade", Lacan (1966/1998a) apresenta sua leitura sobre as quatro causas aristotélicas descritas no livro II da Física.2 Nesse momento, a verdade é definida como causa. Desse modo, para Lacan, a essência aristotélica (ousia, a substância) é da ordem do gozo para os seres falantes, já que "o significante é a causa do gozo". Com essa elaboração, Lacan realiza uma declinação perspicaz das quatro causas aristotélicas, permitindo, assim, situar o significante como causa do gozo (Quinet, 2000/2008).

Com isso, na causa material, temos o significante como materialidade que permite abordar o gozo do corpo: "o corpo gozante tem como material o significante" (Quinet, 2000/2008, p. 142). Já na causa eficiente o significante canaliza e efetua o gozo, é a chamada abertura dos canais por meio dos quais o corpo goza. A causa formal é o estreitamento que incide sobre o gozo. O significante, portanto, estreita o gozo na gramática. "A causa formal promovida pelo significante produz uma gramática de gozo, cuja melhor ilustração encontramos no verbo. A gramatização do gozo como causa formal não deixa de evocar uma gramática pulsional" (Quinet, 2000/2008, p. 142, grifos do original). E, por fim, a causa final, na qual o significante é o limite interno que exerce uma barreira ao gozo. Contudo, isso desvela que a estrutura do significante, própria ao poder e ao comando, convoca o retorno de um gozo que encarna o próprio Ideal, pois indica o imperativo de comando do supereu: goza! (Quinet, 2000/2008).

Nesse itinerário, constata-se na clínica que o significante não é apenas o que "representa o sujeito para outro significante", pois no significante também Há Um, já que o "significante é a causa de gozo" (Lacan, 1972-1973/2008b, p. 30), isto é, signo de um gozo fora de sentido. Essa elaboração de Lacan não tem alcance apenas conceitual, mas antes de tudo clínico. O "significante como substância gozante" evidencia não apenas os efeitos do tratamento no terreno da fantasia, mas também do que se extrai no terreno da repetição. Se, por um lado, por meio da construção da fantasia, temos um corpo mortificado pelo significante, por outro, na perspectiva do Há Um, trata-se de outra coisa distinta da mortificação, pois permanece nela a repetição do gozo pela insistência da cadeia significante, na medida em que o Há Um instala-se no corpo e faz dele um aparelho de gozo.3

Nota-se como a semblantização na ordem discursiva estabelece uma diversidade galopante no âmbito das multiplicidades. Assim, torna-se necessário, no terreno analítico, produzir uma margem de cálculo orientado do sentido e de sua fuga incessante (nonsense), tendo em vista que a política do sintoma é avessa à proliferação insensata do semblante pelo semblante, já que um semblante é sempre índice de que Há Um.

Assim, a repetição do Um sozinho convoca a irrupção de um gozo fora de sentido, com o qual o sintoma letra vê-se às voltas. O sintoma letra faz dele sulco do Um no real do corpo e faz surgir uma modalidade de gozo sem as amarras do Outro. O que fica evidenciado é a repetição do gozo pela função do Há Um, do Um que aparece na forma do real do gozo letrificado. Em função disso, se, por um lado, é produzida uma insistência dos significantes que não fazem sentido, por outro esses significantes declinam-se como signos de um gozo que não fazem relação com o Outro (Soler, 2012).

Com efeito, o que resta dessa odisseia analítica levada a seu término é o singular radical, é a diferença absoluta, sendo sua expressibilidade um saber-fazer (savoir y faire) com o sintoma. Esse saber-fazer no processo analítico oferece uma margem de cálculo, que se torna possível a partir do Um-Dizer, índice da série dos Uns. Cada vez mais percebemos que esse Um fora de série é uma dedução lógica a partir do impossível que se subtrai da própria operação analítica. Inclusive, podemos dizer que é esse Um que se decanta pela satisfação da identificação ao sintoma, sendo, portanto, consubstancial ao caráter intratável e indecidível do sintoma, suporte do real do gozo letrificado e fora de sentido (Soler, 2012). Em suma, a análise levada a seu termo (final de análise) pode esclarecer que a política do sintoma extrai-se do Há Um, ou ainda que a política do sintoma do Há Um é verificada pelo final de análise no dispositivo do passe.

 

Referências bibliográficas

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Recebido: 23/04/2019
Aprovado: 09/05/2019

 

 

1 Há, portanto, um corolário entre o sujeito capitalista (siderado pela mercadoria) e o estudante como astudado - referido como uma mera unidade de valor, como um objeto astudado do discurso universitário.
2 Aristóteles propõe certo funcionamento para a operação das quatro causas e, para tanto, utiliza a confecção de uma estátua por um escultor. Isto é, a causa material é a matéria, no caso, o bloco de mármore; a causa eficiente é o agente-escultor, que atua sobre a matéria, transformando-a em um objeto estético; já a causa formal é a ideia, ou seja, o modelo que o escultor tem da estátua, um a priori que se efetiva no ato da causa eficiente sobre o bloco de mármore; e, por fim, a causa final é a finalidade da operação, e o que se pretende alcançar, a posteriori, é um efeito do Belo (Quinet, 2000/2008).
3 O mistério do corpo falante para além do vivente (função do corpo vivo) posiciona que é somente no fato de falar que se pode perceber o que se fala. O parlêtre fala com seu corpo. É nessa injunção entre a fala e o corpo que se infere o sintoma. Dito de outra maneira, o incômodo do corpo falante apresenta-se na clínica pelas palavras que se recortam nas vias da repetição de gozo. Em suma, Isso fala no sintoma, do corpo afetado pela linguagem, tendo em vista que o parlêtre, ao falar com o corpo, permite a infiltração do gozo (Soler, 2012).

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