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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.38 Rio de Janeiro Jan./June 2019

 

TRABALHO CRÍTICO COM OS CONCEITOS

 

 

Conceit in weakest bodies strongest works: notas sobre concetti, poética e interpretação1

 

Conceit in weakest bodies strongest works: notes on concetti, poetics and interpretation

 

Conceit in weakest bodies strongest works: notas sobre concetti, poética e interpretación

 

Conceit in weakest bodies strongest works: notes sur le concetti, la poétique et l'interprétation

 

 

Miriam Ximenes Pinho

 

 


RESUMO

A interpretação, na clínica analítica, "deve ser poética", diz Lacan ao poeta sino-francês François Cheng, quando do seminário L'insu que sait.... Muitos anos antes, em O desejo e sua interpretação, Lacan havia ressaltado o termo concetti, extraído de uma frase enigmática do fantasma dirigida ao príncipe Hamlet: Step between her and her fighting soul: Conceit in weakest bodies strongest works. Lacan reenvia o apelo do fantasma aos analistas, sugerindo, já naquela época, a poética como aquilo que bem poderia servir-nos para tocar esse espaço insondável do falasser entre ele e ele mesmo. Este trabalho investiga esses dois momentos, duplo canto do apelo à função poética na interpretação.

Palavras-chave: Concetti; Função poética; Interpretação.


ABSTRACT

The interpretation, in the psychoanalytic clinic, "must be poetic", Lacan writes to the Sino-French poet, François Cheng, during the seminar L'insu que sait.... Many years earlier, in Desire and its interpretation, Lacan had emphasized the term concetti extracted from an enigmatic phrase of the ghost directed to prince Hamlet: Step between her and her fighting soul: Conceit in weakest bodies strongest works. Lacan recalls the phantom's appeal to the analysts suggesting, even at that time, that poetics could well serve us to touch this unfathomable space of the speaking being between him and himself. This work investigates these two moments, double singing of the appeal to the poetic function in the interpretation.

Keywords: Concetti; Poetic function; Interpretation.


RESUMEN

La interpretación, en la clínica analítica, "debe ser poética", escribe Lacan al poeta sino-francés, François Cheng, en el seminario L'insu que sait.... Mucho años antes, en El deseo y su interpretación, Lacan había resaltado el término concetti extraído de una frase enigmática del fantasma dirigida al príncipe Hamlet: Step between her and her fighting soul: Conceit in weakest bodies strongest works. Lacan reenvía el llamamiento del fantasma a los analistas sugiriendo, ya en aquella época, la poética como lo que bien podría servirnos para tocar este espacio insondable del hablanteser entre él y él mismo. Este trabajo investiga esos dos momentos, doble canto del llamamiento a la función poética en la interpretación.

Palabras clave: Concetti; Función poética; Interpretación.


RÉSUMÉ

L'interprétation dans la clinique analytique « doit être poétique », écrit Lacan au poète sino-français François Cheng, lors du séminaire L'insu que sait.... Plusieurs années plus tôt, dans Désir et son interprétation, Lacan a souligné le terme concetti, extrait d'une phrase énigmatique du fantôme adressée au prince Hamlet : Step between her and her fighting soul : Conceit in weakest bodies strongest works. Lacan transmet l'appel du fantôme aux analystes en lui suggérant, déjà à cette époque, la poétique comme celle qui pourrait bien nous servir pour toucher cet espace insondable du parlêtre entre lui et lui-même. Ce travail explore ces deux moments, double chant de l'appel à la fonction poétique dans l'interprétation.

Mots-clés : Concetti ; Fonction poétique ; Interprétation.


 

 

Texto

Os melhores atores do mundo, em tragédia,
comédia, história, no gênero pastoral, cômico-pastoral,
histórico-pastoral, trágico-cômico-histórico-pastoral,
com cenas indivisíveis ou com poema ilimitado.
(Shakespeare, 2016, ato 2, cena 2)

Em algum momento de minha longa incursão por Hamlet, tropecei no termo concetti, um detalhe ínfimo, realçado por Lacan na lição de 11 de março de 1959 do seminário O desejo e sua interpretação. Lacan o deduz de uma cena da peça na qual o príncipe, aflito, tenta convencer a mãe a deixar o tio-usurpador. No momento mesmo em que Hamlet começa a se perder em suas recriminações à mãe, surge o espectro do velho rei e lhe diz:

O, step between her and her fighting soul:
Conceit in weakest bodies strongest works;
Speak to her, Hamlet

Vai, põe-te entre ela e sua alma atormentada:
A imagem [conceit] afeta mais o corpo dos mais fracos.
Fale com ela, Hamlet!
(Shakespeare, 2016, ato 3, cena 4, grifo nosso)2

Na língua inglesa, conceit é frequentemente usado para predicar alguém que mostra "confiança excessiva"; em gíria brasileira, um "metido" ou "boçal" (Cambridge international dictionary of English, 1995). Na nota da edição inglesa da peça, conceit é dado como equivalente à "imaginação",3 e daí derivam as traduções propostas para o português (imagem, imaginação). Lacan (1958-1959/2002, p. 282), em seu apreço pelo detalhe, vai explorar a origem antiga da palavra: "O conceit é unívoco. Conceit é empregado todo o tempo nessa peça, e justamente a propósito disto que é a alma. O conceit é justamente o concetti, a ponta de estilo, e é a palavra que é empregada para falar do estilo precioso." Vejamos na transcrição francesa: "'Conceit' est univoque. 'Conceit' est employé tout le temps dans cette pièce, et justement à propos de ceci qui est l'âme. Le conceit, c'est justement le concetti, la pointe du style, et c'est le mot qui est employé pour parler du style précieux" (Lacan, 1958-1959/2002, p. 175).4

Importa aqui ressaltar na fala de Lacan duas palavras incomuns e não casuais: concetti e la pointe.

Etimologicamente, concetti deriva do latim conceptus e sobreviveu, na língua italiana, na forma singular, concetto, significando "concepção, pensamento, e, por extensão, pensamento brilhante" (Vaperau, 1861). Na passagem para o francês, foi a terminação em "i" que se consagrou (Dupriez, 1984). Em sua origem, concetti associa-se à arte literária barroca do século XVI à época do grande poeta italiano Giovan Battista Marino (1569-1625) - também chamado Marini -, celebrado pela delicadeza e musicalidade dos versos, pelas palavras refinadas e pelo abuso poético da metáfora, da hipérbole, da antítese - figuras clássicas de linguagem que singularizaram suas ideias.

Chama-se concetti um estilo de poesia que "impressiona pela sutileza e forma rebuscada (antítese, imagens curiosas, alusões mitológicas)", que, na França, "acabou por designar todas as pontas preciosas" (Dupriez, 1984, p. 126). As "pontas preciosas" [les pointes précieuses], Lacan sublinhou, no Seminário 6, como sendo "a ponta de estilo" [la pointe du style], expressão incomum em português, mas que designa, na literatura francesa, "a boa palavra", "o jogo de palavras", "os pensamentos sutis (em geral muito breves e densos, apresentados sob a forma de antítese) que visam desafiar a vivacidade de espírito do leitor" (Vaperau, 1861, p. 1620; Dupriez, 1984, p. 353).

Em outras palavras, concetti é essa mania de colorir as ideias com palavras sensíveis, delicadas, dispostas em um engenhoso jogo homofônico e espirituoso no melhor estilo do grande poeta italiano, que descreveu o rouxinol como "uma voz plumada, um som volátil, uma respiração viva revestida de penugem..." (Vaperau, 1861, p. 501). Importa dizer que o gosto por esses ornamentos linguageiros não começou com Marino. Ele pode ser encontrado em Ovídio, em Sêneca e em outros grandes poetas e filósofos da Antiguidade clássica. O orador romano Marco Quitiliano percebeu a habilidade, perigosamente sedutora, de Sêneca com as palavras e a qualificou de Dulcibus abundat vitiis, isto é, uma linguagem "abundante de vícios agradáveis", mais tarde consagrada como concetti (Vaperau, 1861).

O vício agradável de Marino propagou-se por toda a literatura barroca, dando origem a uma legião de amorosos das palavras. Entretanto, seus discípulos extrapolaram seu estilo, radicalizando o preciosismo da forma, o rebuscamento da linguagem, a valorização do pormenor com uso abusivo de trocadilhos e tiradas espirituosas, que basculam entre o sublime e o ridículo. Dependendo do país que o acolheu, o concetti foi batizado com diferentes nomes: marinismo (Itália), preciosismo (França), gongorismo (Espanha), cultismo (Portugal), eufuísmo (Inglaterra). Levado ao extremo, o concetti deixou de ser reconhecido como a "boa palavra" - arte de traço sutil e melódico - para ser considerado um barroquismo de mau gosto, uma ideia que sobreviveu no termo inglês conceit, quando usado para descrever o estilo de gente considerada convencida, afetada, desnecessariamente obscura. O concetti, quando reduzido ao pejorativo conceit, é visto com desconfiança, uma disfunção desagradável, um vício de linguagem. Resumiu Dupriez (1984, p. 128): "(...) por sua preciosidade, o concetti pertence ao barroquismo, com menos de preciosidade ele se torna o chiste, a boa palavra".

A partir dos fins do século XIX, o concetti foi reabilitado na literatura e retornou vibrante nos jogos engenhosos de espírito e na arte poética. O gongorismo, por décadas criticado arduamente pelo estilo rebuscado e obscuro, torna-se objeto de culto dos simbolistas, entre eles Paul Verlaine e Stéphane Mallarmé. Gongorismo deriva do nome de Luís de Góngara y Argote (1561-1627), um dos mais brilhantes poetas da literatura barroca espanhola, conhecido pela erudição, pelo cuidado extremado com a linguagem, pela valorização da sonoridade e do pormenor, pelo abuso de figuras de linguagem, trocadilhos e jogos de palavras. Não à toa, o estilo de transmissão de Lacan foi equiparado ao do grande poeta espanhol, que gostava de fazer seus leitores trabalharem, provocando neles a curiosidade de decifrar seus escritos. Sabemos que, para Lacan, esse estilo, dito gongórico, não se tratava de simples gosto estético, mas de fazer ressoar algo do modus operandi próprio do inconsciente e seus efeitos de aturdimento, quando de um sonho, uma mancada, um lapso...

De volta à tragédia shakespeariana, Hamlet foi chamado pelo poeta T. S. Eliot (1921/2015, p. 37) de "a Mona Lisa da literatura" (Eliot, 1921/2015, p. 37), não por sua perfeição estética, mas por aquilo que o torna inesgotável fonte de interpelação. Um "poema ilimitado"5 tecido por uma fina rede de metáforas e jogos polissêmicos, homofônicos e anagramáticos. Lacan (1958-1959/2002, p. 272) notou que "não há um verso em Hamlet, nenhuma réplica que não seja, em inglês, de uma potência de percussão, de violência de termos que é de fato algo em que, a todo instante, se está absolutamente estupefato". A poesia shakespeariana distingue-se justamente pela opulência linguística e pela versatilidade de composição, que oscila entre versos brancos, rimados e prosa cuja métrica, apesar de seguir o ritmo do chamado pentâmetro iâmbico,6 é usado com liberdade, alcançando uma excelência poética incomparável (Pereira, 2015, p. 45). Entretanto, nenhuma mensagem poética consegue produzir efeitos de equivocidade significante sem ser antes homologada pelo Outro, isto é, para produzir efeitos de duplicidade de sentido, é preciso que haja uma comutatividade semântica entre o sujeito da fala e o Outro da linguagem. Sabe-se, por exemplo, que, na época em que Hamlet foi encenado, os Ensaios de Montaigne circulavam livremente no ambiente cultural inglês e causavam grande admiração por seu estilo subjetivo, cético e autorreferencial, de modo que a retórica interrogante, dubitativa e espirituosa de Hamlet não era novidade para os ouvidos ingleses, conhecidos pela sensibilidade aos jogos de linguagem ressonantes de lalíngua.

Mestre do concetti, Shakespeare é genial na maneira de fazer Hamlet bancar o louco, colocando em cena um complexo jogo de palavras, alusões e metáforas, que segue acompanhado de um fino humor atordoante. Lacan, nos passos de Freud, soube valorizar e aproveitar muito bem, na interpretação da peça, as sutilezas desse engenhoso abuso de espírito, dando brilho e destaque a seus detalhes, como quando ressalta a palavra foil, uma palavrinha de nada dita por Hamlet a Laertes no duelo final. Bem na hora da distribuição de espadas, Hamlet diz ao oponente: I will be your foil, Laertes [Vou servir de realce, Laertes] (Shakespeare, 2016, ato 5, cena 2). Do falar precioso de Hamlet, Lacan (1958-1959/2002) extrai na palavra foil o jogo sutil entre "florete" e "configuração de fundo usada para realçar o brilho de uma joia". Lacan associa foil à feuille, antiga palavra francesa que designava "a folha na qual alguma coisa de precioso é levado, um 'porta-joias'" (Lacan, 1958-1959/2002, p. 350). Logo, I will be your foil equivoca "eu serei vosso florete" com "eu estou aqui para valorizar seu brilho", "serei vosso realce", "seu porta-joias". Lacan apoia-se nessa equivocidade significante para sustentar sua interpretação da trágica posição de Hamlet em relação ao desejo preso como estava em ser ou não ser o falo, razão principal de suas hesitações em cumprir o plano de vingança prometido ao fantasma do pai.

Retorno agora à ponta de estilo que abriu este texto e o orienta:

Ghost:
O, step between her and her fighting soul.
Conceit in weakest bodies strongest works;
Speak to her, Hamlet.

(Shakespeare, 2016, ato 3, cena 4)

O fantasma convida Hamlet a aproveitar-se do momento em que a rainha se mostra mais impactada para deslizar, de palavra a palavra, entre "ela e sua alma" por meio do bom uso do conceit. Lacan (1958-1959/2002, p. 282) reenvia essa convocação do fantasma aos analistas, passando do conceit ao concetti: "É significativo para nós porque é bem disso que se trata, de intervir por nós, between her and her, é nosso trabalho isto. Conceit in weakest bodies strongest works. Speak to her! é ao analista que é endereçado, este apelo!". Lacan sugere o concetti, o falar precioso, como aquilo do qual o analista bem poderia se servir, na interpretação, para tocar esse espaço insondável do falasser, "entre ele e ele mesmo". Insondável, porém sensível, ressonante ao canto poético.

Nos tempos do Seminário 6, época do inconsciente estruturado como uma linguagem, Lacan privilegiava a importância da função do significante (e não do significado) na prática interpretativa. Desde muito cedo em seu ensino, ele (Lacan, 1953/1998) apelou aos recursos inesgotáveis da língua - explorados, lapidados e reinventados nos textos literários e poéticos - na visada de renovar a técnica interpretativa. Comenta ele em Função e campo da fala e da linguagem, de 1953 (p. 296): "Essa técnica exigiria, tanto para ser assimilada quanto para ser aprendida, uma profunda assimilação dos recursos de uma língua, e especialmente dos que se realizaram concretamente em seus textos poéticos. Sabemos que foi esse o caso de Freud quanto às letras alemãs, incluindo-se nelas o teatro de Shakespeare...".

A função poética da linguagem serve como se fosse um "porta-joias" da mensagem. Roman Jakobson (1960/1985, p. 128) caracterizou-a como própria da arte literária e que teria o pendor de "dar melhor configuração à mensagem", promovendo sua eficácia pelo tratamento calculado, cuidadoso, da forma como algo pode ser dito. É próprio dessa função dotar a mensagem de várias possibilidades de sentido, rompendo com a expectativa de antecipação automática de respostas, capturando a atenção para os próprios signos da mensagem (Lopes, 1999). Ela surpreende ao desestabilizar significações programadas da língua. Assim, quando o poetghost diz: O, step between her and her fighting soul: conceit in weakest bodies strongest works, o que repercute e impacta, para além do conteúdo referencial, é a ênfase dada a seus elementos fônicos e sintáticos. O melodioso arranjo fônico apresenta a repetição do fonema vocálico "i" [betw(ee)n, fight(i)ng, conc(ei)t, w(ea)kest, bod(i)es], acompanhado pela sequência consonantal "t" [s(t)ep, be(t)ween, fih(t)ing, concei(t), weakes(t), stronges(t)]. O bom encontro de rimas assonantes e aliterantes com a combinação harmônica de palavras potencializa a eficácia e a impressividade de qualquer mensagem.

Ainda no Discurso de Roma, Lacan (1953/1998) ressaltou as duas formas de palavra, a palavra vazia e a palavra plena, para tratar da realização psicanalítica do sujeito em análise, aliás um dos nomes de um capítulo que anima esse longo texto. A palavra poética já aparece aí em oposição à palavra vazia; uma fala vazia, por essa época, é aquela amparada no eu [moi] e em suas miragens imaginárias. Porém, não se deve concluir apressadamente que o dito discurso vazio não comunica nada; ao contrário, diz Lacan, tal como uma tessera o blá-blá-blá é abundante em meias-palavras, alusões, deslocamentos, condensações, lapsos e pausas:

Aliás, o psicanalista sabe melhor do que ninguém que a questão aí é ouvir a que "parte" desse discurso é confiado o termo significativo, e é justamente assim que ele opera, no melhor dos casos: tomando o relato de uma história cotidiana por um apólogo que a bom entendedor dirige suas meias-palavras, uma longa prosopopeia por uma interjeição direta, ou, ao contrário, um simples lapso por uma declaração muito complexa, ou até o suspiro de um silêncio por todo o desenvolvimento lírico que ele vem suprir. (Lacan, 1953/1998, p. 253)

Anos depois, Lacan (1976-1977a, inédito) vai recuperar e precisar de outro modo as duas formas de palavra, dessa vez em franca relação com a poesia; "o próprio da poesia quando ela fracassa é justamente por não ter senão uma significação, por ser puro nó de uma palavra com uma outra palavra. Disso resta que a vontade de sentido consiste em eliminar o duplo sentido". Michel Bousseyroux (2014) explicita essa passagem dizendo que a palavra vazia estaria do lado da significação, isto é, limitada à função discriminativa do significante, enquanto a palavra plena é plena da duplicidade de sentido comum a todo significante: "A poesia se funda precisamente sobre essa ambiguidade da qual eu falo e que qualifico pelo sentido duplo" (Lacan, 1976-1977a, inédito).

Faço agora um salto vertiginoso em direção ao Seminário 24, ou seja, 17 anos após o Seminário 6, tempo em que muitas águas já rolaram por baixo das pontes da topologia. Em L'insu que sait de l'Une-bévue s'aile à mourre, Lacan (1976- -1977b) não recupera o termo concetti, ou lapointe, nem muito menos retoma a poesia shakespeariana. Por essa época, o recurso à função poética passa pelas mãos de François Cheng, o poeta sino-francês. Na aula de 19 de abril de 1977, ele evoca o livro de Cheng, A escritura poética chinesa, para dizer aos analistas que "pegassem daí a semente (...) vocês verão que esses forçamentos por onde um psicanalista pode fazer ressoar outra coisa, outra coisa que o sentido, porque o sentido é o que ressoa com a ajuda do significante, mas o que ressoa não vai longe, é antes de tudo fraco... o sentido isso tampona". E, ainda, "mas com a ajuda disso que se chama a escritura poética vocês podem ter a dimensão disso que poderia ser a interpretação analítica".

Alguns dias depois dessa aula, em carta a Cheng, Lacan lhe diz: "Destaquei o seu livro em meu último seminário, dizendo que a interpretação - ou seja, o que deve fazer o analista - deve ser poética" (Andrade, 2015, p. 53). Diferentemente da época do Seminário 6 e de Função e campo - auge, como já dito, do inconsciente estruturado como uma linguagem -, a arte poética agora é convocada para inspirar a intervenção analítica muito para além da duplicidade de sentido que o significante (S2) carrega. Bousseyroux (2011, p. 438) propõe, nesse ponto preciso, uma formalização topológica (na qual não nos deteremos aqui) das três vias da palavra: a vazia, a plena e uma terceira "nem plena, nem vazia, que ele [Lacan] vai pesquisar no que François Cheng lhe ensina da escritura poética chinesa" em relação ao vazio mediano da palavra.

François Cheng mostra bem no seu livro [A escritura poética chinesa] por quais procedimentos o poeta introduz o vazio na linguagem, omitindo os pronomes pessoais, palavras vazias, criando uma espécie de vazio entre as palavras, e mesmo substituindo palavras vazias por verbos, de modo que, a palavra poética sendo movida pelo sopro do Vazio mediano, os poemas do T'ang vêm para "trans-escrever" como Cheng escreve, as coisas indizíveis. (Bousseyroux, 2011, p. 432, tradução nossa)

Mas como é possível uma abertura ao real da palavra ali mesmo onde o poema se faz recorrendo à estrutura da linguagem? Lacan interroga com insistência Cheng sobre o saber fazer do poeta com o vazio (mediano) que "trans-escreve" sem inflar de sentido as coisas indizíveis. O poeta sino-francês aponta um caminho no uso peculiar que ele faz de um procedimento estilístico cujo arranjo fônico, sintático e semântico é suplementado - e aí está a novidade que tanto atraiu Lacan - por uma disposição gráfica que cria uma leitura multidimensional do poema. Há uma disposição fônica e visual harmônica sem apelo a um-mais-de-sentido. Materializada na escrita, a poesia de Cheng (2011, p. 37) situa-se mais do lado da "carne" do que do "cérebro"; como ele mesmo a definiu, "trata-se de uma poesia da qual o pensamento reflexivo não está ausente, [porém] ela é carnal". Expressão artística da ideia de que as palavras são matéria, elas in-carnam, moterializam-se e gozam.

Um poema sensorial comum à tradicional arte literária chinesa quando escrita em caracteres ideográficos. Estes integram o poema de tal forma que criam uma leitura flexível, ilimitada, multidimensional, "propiciada tanto pelos próprios caracteres quanto por sua ordem na 'frase' ou no 'verso'. Assim, se estabelece entre eles um vai e vem, que dispõe o poema a uma diversidade de sentidos - significados, mas também direções -, extremamente rica poeticamente" (Palma, 2011). Cheng tenta traduzir para os versos franceses algo da multissensorialidade experimentada na escritura poética chinesa visível em um pequeno-grande poema extraído do livro Duplo canto em versão para o português:

À sombra da sombra
Que rasgam de leve
As cigarras
de asas transparentes
A raiz saída da terra
exausta de húmus
Ressoa ainda
Às queimaduras
dos galhos mais altos
A hora muda procurando suas palavras
Tu és
a espera
(Cheng, 2011, p. 209)

O predicativo "espera", ao final, desliza graficamente à distância do verbo "ser", para produzir, na extensão da folha em branco, uma suspensão espaçotemporal traduzida concretamente e em suplemento ao que está sendo dito. Sutil, reduzido e muito bem calculado, o escrito acompanha o ritmo do dito, abrindo múltiplas direções de leitura em um criativo interjogo de voz e olhar, tempo e espaço.

Observa-se que o poema de Cheng, assim como uma análise, não vai sem o sentido, mas há um esforço do poeta de redução, de introdução do vazio (mediano) na própria estrutura do poema. De modo que a terceira forma da palavra, ainda que portadora de uma potência de sentido, a ele não se restringe, possibilitando vislumbrar um desencaixe na comutatividade do sujeito com o Outro. "Pois, que faz o fato de falar?", indaga Bousseyroux (2011, p. 434, tradução nossa), "ele fura isso que, do espaço fechado do sujeito, enlaça-se no não menos fechado espaço do Outro do sentido, interpondo esse vazio mediano por meio do qual somente a poesia pode liberar a palavra de seu confinamento no sentido pleno, assim como do vazio da significação". É a essa terceira forma da palavra, sua via poética, que o analista deveria ater-se na interpretação, para abri-la a "um possível jogo do real" (Bousseyroux, 2011, p. 435, tradução nossa).

Entretanto, essa terceira via não deve ser entendida como exclusiva à arte poética chinesa; há outras igualmente criativas e ressonantes em nossa poética ocidental. Mas, vale destacar, foi o encontro com esse estilo de escritura com caracteres ideográficos, tão estrangeiro à nossa escrita ocidental, que possibilitou a Lacan interrogar de outro modo as ressonâncias da interpretação para além do duplo canto da palavra (plena): "Interrogar a linguagem a partir da escrita é ir além do encontro com um significante esvaziado de significação, equivale a pensar de que modo ela pode tocar o campo pulsional, o campo de gozo" (Andrade, 2015).

Freud já havia antecipado algo dessa terceira via nos ditos espirituosos, nos quais se desfruta uma satisfação inexplicável por extrapolar o puro campo semântico. Nos jogos de linguagem, algo para além do simbólico afeta o corpo, sacode-o e se satisfaz. Se o jogo infantil triunfa em fazer arte pela arte, quando diz "une, dune, trê, salamê, minguê", em vez de "um, dois, três, salame, mingau", é simplesmente porque a primeira forma evoca o puro deleite onomatopeico de lalíngua, de que as crianças pequenas sabem muito bem como (usu)fruir, habituadas como estão às piruetas e aos truques linguísticos descompromissados dos sentidos reconhecidos. É a esse tipo de brincadeira, nem sempre agradável, que o analista convida os corpos fatigados a se entregarem na associação livre, na visada de que, no gozo do blá-blá-blá, o corte interpretativo venha colocar em jogo o une, dune, trê esquecido por trás do que se ouve, em uma virada do sentido ao real.

Se a linguagem, sigo com Conrado Ramos (2011, p. 16), "com seu arbitrário e efeito de significação incide na novela do neurótico (S1 → S2)", a virada ao estilo passa necessariamente por lalíngua: "para dar conta do estilo, isto é, daquilo do blá-blá-blá que tem valor de uso (S1 → a), ou seja, de gozo, e não mais valor de troca, é preciso avançar em relação ao arbitrário do significante, posto que é preciso buscar o que o significante apresenta (referência), e não mais o que ele representa (sentido)". Por meio da associação livre, lalíngua manifesta-se não por se chegar à

(...) essência das primeiras marcas do falasser, mas por levá-lo ao abandono dessa busca, a ponto de fazê-lo falar por falar ["a arte pela arte", como dizíamos do jogo infantil e como a estética literária parnasiana se qualifica], sacar da linguagem sua expressão mais real: aquela pelo qual o inconsciente goza. Não é daí que Lacan nos sugere extrair o de que se trata na interpretação? (Ramos, 2011, p. 16)

E, por fim, uma nota po-ética. Se a interpretação analítica deve ser poética, não se trata de apelar ao concetti ou outras pontas de estilo extravagantes ou preciosas para produzir uma interpretação que seja bela. Para ser eficaz, sublinhou Jean- -Jacques Gorog (2018), é preciso enlaçar o dizer interpretativo com seus referentes, isto é, tocar, ressoar, refletir a sintaxe própria do inconsciente daquele que nos fala. De outro modo, o recurso à função poética da linguagem no ato interpretativo não deve visar a si mesma, e, sim, endereçar-se, articular-se ao poema-analisante, afinal "a interpretação não se dobra a todos os sentidos", enfatizou Lacan em 1964 (2008, p. 204). E, seguindo o trilhamento de Lacan com a poética de Cheng, ainda que a interpretação dobre-se a alguns significantes, a visada interpretativa deve ir além do duplo sentido para afetar outra coisa, o campo "entre ti e ti mesmo" de um gozo irredutível ao jogo significante, por mais belo e precioso que seja: "É isso mesmo que precisaríamos superar, e a primeira coisa seria expulsar a noção de belo, nós não temos nada a dizer de belo. É de outra ressonância que se trata de fundar sobre o chiste" (Lacan, 1976-1977a, inédito). Ele insiste: "o chiste não é belo"; ele nos interessaria precisamente por seu valor econômico, isto é, por articular-se ao gozo. Do mesmo modo, vou entendendo que, se a interpretação "deve ser poética", o apelo a certo uso do concetti visaria a ressoar, para além da fala, algo daquele vício enigmaticamente agradável (dulcibus abundat vitiis) e, por vezes, perturbador.

 

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Recebido: 03/03/2019
Aprovado: 24/04/2019

 

 

1 Trabalho apresentado na Jornada de Encerramento do Fórum do Campo Lacaniano São Paulo, 3 dezembro de 2018.
2 Para este estudo, consultou-se a seguinte versão original: Shakespeare (2016). Em português, optou-se por Shakespeare (2015).
3 Cf. nota editorial da The Arden Shakespeare: "Conceit: imagination. The ghost seems to assume that the Queen is particularly vulnerable to the amazement, caused either by Hamlet's previous behaviour or by his present reaction which is incomprehensible to her" (Shakespeare, 2016, p. 375). Na versão para o português, Lawrence F. Pereira seguiu essa tradição e traduziu conceit por "imagem".
4 Reproduzo aqui a transcrição do Seminário 6 que consta no site Starfela. Na edição oficial dirigida por Jacques-Alain Miller, publicada em 2013, aparece o termo "concetto" (no singular), e não "concetti", forma plural muito provavelmente ditada por Lacan e conservada na edição de Starfela. Bernard Dupriez (1984), no clássico dicionário de literatura francesa, esclarece, em nota, que concetto é a forma (singular) italiana, mas a forma com "i" foi como a palavra se afrancesou. Indaga ele se, por essa razão, concetti não seria a forma preferível em francês.
5 "Poem unlimited", no original. Segundo a nota da edição The Arden Shakespeare, "poem unlimited: poetic drama unrestricted by rules, all-inclusive, unclassified".
6 Pentâmetro iâmbico: um tipo de métrica muito utilizado em poesias dramáticas e épicas inglesas, composto por cinco pares de sílabas curtas/longas ou átonas/tônicas, um som fraco seguido de um som forte (de-DUM de-DUM de-DUM). O que importa, nesse verso, é o ritmo medido em pequenos grupos de sílabas, chamados "pé". A palavra iâmbico descreve o tipo de pé usado, e o pentâmetro indica que um verso tem cinco pés. Recuperado de https://pt.wikipedia.org/wiki/pentametro_iambico

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