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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.38 Rio de Janeiro jan./jun. 2019

 

TRABALHO CRÍTICO COM OS CONCEITOS

 

Macondo é lalíngua: ensaio sobre Cem anos de solidão

 

Macondo is lalangue: essay about One hundred years of solitude

 

Macondo é lalíngua: ensaio sobre Cien años de soledad

 

Macondo est lalangue : un essai sur Cent ans de solitude

 

 

Francina Evaristo de Sousa

 

 


RESUMO

Este texto é um convite ao leitor para que, junto da autora, hospede-se em Macondo, a cidade fictícia criada pelo Nobel de Literatura Gabriel García Márquez em sua obra Cem anos de solidão. Propõe uma incursão psicanaliticamente orientada por essa obra-prima, na qual a saga de uma família, os Buendías, confunde-se com a fundação e o ocaso de uma cidade. Palavra sem significado, Macondo advém da lalíngua de seu fundador, o patriarca José Arcadio Buendía; é palavra sem sentido, que lhe ocorre em sonho, determina e funda um lugar. É palco, cenário, espaço psíquico no qual sete gerações vivenciam a solidão, significante ao qual a família está condenada, na insistência de fazer a relação sexual existir por meio do incesto, crime cuja punição é o nascimento de um bebê com rabo de porco.

Palavras-chave: Cem anos de solidão; Inconsciente; Lalíngua.


ABSTRACT

This text is an invitation for the reader to, alongside with the author, stay in Macondo, the fictional town created by the Nobel Literature winner Gabriel García Márquez in his work One hundred years of solitude. It proposes a psychoanalytic incursion guided by this masterpiece in which the saga of a family, the Buendías, is mixed with the foundation and the occasion of a city. Word without meaning, Macondo comes from the lalangue of its founder, the patriarch Jose Arcadio Buendía; it is a word without meaning that occurs to him in dream, it determines and founds a place. It is a stage, a scenario, a psychic space in which seven generations experience solitude, signifier to which the family is condemned, in the insistence of making sexual intercourse exist through incest, a crime whose punishment is the birth of a baby with a pig's tail.

Keywords: One hundred years of solitude; Unconscious; Lalangue.


RESUMEN

Este texto es una invitación al lector a que, con la autora, se aloje en Macondo, la ciudad ficticia creada por el escritor galardonado con el Nobel de Literatura, Gabriel García Márquez, en su obra Cien años de soledad. Se propone una incursión psicoanalítica orientada a través de esa obra maestra en la que la saga de una familia, los Buendía, se confunde con la fundación y el ocaso de una ciudad. Palabra sin significado, Macondo proviene de la lalengua de su fundador, el patriarca José Arcadio Buendía; es palabra sin sentido que le ocurre en sueño, determina y funda un lugar. Es platea, escenario, espacio psíquico en el que siete generaciones vivencian la soledad, significante al que la familia está condenada, en la insistencia de hacer la relación sexual existir por medio del incesto, crimen cuyo castigo es el nacimiento de un bebé con cola de cerdo.

Palabras clave: Cien años de soledad; Inconsciente; Lalangue.


RÉSUMÉ

Ce texte invite le lecteur à séjourner auprès de son auteur à Macondo, la ville fictive créée par Gabriel García Marques - prix Nobel de Littérature avec son roman Cent ans de solitude. On propose une incursion psychanalytique dans ce chef d'œuvre où la saga d'une famille - les Buendía - se confond avec la fondation et le déclin d'une ville. Le mot "Macondo" n'a pas de sens mais il est issu de lalangue de son fondateur, le patriarche José Arcadio Buendía. Ce mot lui est venu dans un rêve, et fini par délimiter et fonder ce lieu qui devient la scène, le décor et l'espace psychique où sept générations éprouvent la solitude, signifiant auquel la famille est condamnée - et persistent à faire exister le rapport sexuel par l'inceste. Ce crime entraîne la naissance d'un bébé à la queue de porc comme punition.

Mots-clés : Cent ans de solitude ; Inconscient ; Lalangue.


 

 

Isto eu já sei de cor e salteado. É como se o tempo desse voltas sobre si mesmo e tivéssemos voltado ao princípio. (Cem anos de solidão)

O mundo avança. Sim, respondi, avança, mas dando voltas ao redor do sol. (Memórias de minhas putas tristes)

O primeiro da estirpe está amarrado a uma árvore e o último está sendo comido pelas formigas. (Cem anos de solidão)

O campo das artes, sem dúvida, é terreno fértil para o psicanalista, e, no caso desta que aqui escreve, as sementes da compreensão frequentemente germinam melhor na terra Literatura. Foi durante certas divagações e deslizamentos a respeito do conceito de repetição em psicanálise que me vi caminhando por uma obra-prima. Um dos nomes da repetição é encontro falho. Fruto de um trauma, o da entrada do sujeito na linguagem, a repetição advém justamente daquilo que não entra, mas insiste; futuro de uma ilusão, a de completude perdida, eternamente buscada, porém nunca realizada, a repetição é encontro marcado com a decepção, apoteose que não chega. Alguns a chamam de "destino". Lacan, de real (Soler, 2013).

Ao sujeito falta remédio para curar sua divisão. Falta algo que o complete, o que significa, a um só tempo, algo que complete o Outro. É em torno de uma posição alienada, de ser suposto completar o Outro, que o sujeito gravita em sua neurose. Na busca de ser Um, evitando reconhecer sua divisão, o sujeito percorre repetidamente os mesmos caminhos, sulcados por lalíngua. Na fantasia neurótica, a imagem e a encenação de tal encontro almejado com o/como objeto seguem roteiro edípico: é com o Outro parental que se supõe poder ser inteiro. Outro esse que não pode ser dissociado da cultura, e é desse lugar que provém lalíngua, que, no encontro com a carne, faz corpo.

Foi sob a luz dessas reflexões e sob os ecos da clínica que me instalei na mítica Macondo, "cidade dos espelhos (ou das miragens)" (Márquez, 1967/1995, p. 394) criada pelo Nobel de Literatura Gabriel García Márquez. Por lá, permaneci por cem anos, foram "Cem anos de solidão" acompanhando de perto, como testemunha ocular, a saga de sete gerações de uma família, os Buendías. Experiência impressionante, posto que nas últimas linhas desse magnífico romance publicado em 1967 ocorre uma subversão que arrasta o leitor para dentro da obra, situando-o sob as lentes do último Buendía, que estivera até ali decifrando o mito que forma e comanda as cadeias significantes de seu inconsciente. Sobre o mito, digamos que "é o que dá uma formulação discursiva a algo que não pode ser transmitido na definição de verdade" (Lacan, 1952/2008, p. 13), é tentativa de "dar forma épica ao que se opera da estrutura" (Lacan, 1974/1993, p. 55), é a história que se cria para dizer do impasse sexual, do impossível de onde tal história provém (Lacan, 1952/2008). As gerações que antecedem o sujeito permanecem vivas nos sentidos e no sem-sentido que é transmitido de pais para filhos; há aí um dizer que passa. Passemos a Cem anos de solidão.

 

Tudo começa com um crime

José Arcadio Buendía, o primeiro da estirpe, casa-se com Úrsula Iguarán, e estiveram unidos "até a morte por um vínculo mais sólido que o amor: uma dor comum de consciência" (Márquez, 1967/1995, p. 25). Cresceram juntos, e sua união era previsível. Entretanto, no momento em que decidem se casar, seus próprios parentes impõem obstáculos. Acontece que José Arcadio Buendía e Úrsula eram primos. Pairava sobre o casal o temor de que tal união pudesse resultar em algum tipo de desgraça encarnada em seus descendentes, que pudessem engendrar um "animal mitológico" (Márquez, 1967/1995, p. 394): um bebê com rabo de porco. Ou, quem sabe, iguanas. José Arcadio Buendía, "com a leviandade de seus dezenove anos" (Márquez, 1967/1995, p. 25), parece não temer essa possibilidade: "Não me importa ter leitõezinhos, desde que possam falar" (Márquez, 1967/1995, pp. 25-26). No entanto, aterrorizada pelos prognósticos de sua mãe, Úrsula recusa-se a consumar o matrimônio, passando a usar uma espécie de cinto de castidade confeccionado pela mãe.

Tal recusa terá consequências: o assassinato de Prudencio Aguilar. O homem faz troça da situação do casal, afinal corria o boato de que José Arcadio Buendía era impotente. Este último, em nome da honra, atravessa o pescoço de Prudencio com uma lança e o mata. Após o assassinato de Prudencio, Úrsula cede à pressão do marido: "Se você tiver de parir iguanas, criaremos iguanas - disse. - Mas não haverá mais mortos neste povoado por culpa sua" (Márquez, 1967/1995, p. 27). Consente na consumação do casamento, enquanto os parentes de Prudencio Aguilar pranteiam o morto. O temor dos familiares e de Úrsula quanto à sua união com um Buendía, seu parente, orienta no sentido de que, intrínseco ao discurso da obra, subsiste a lei não escrita, mas que, no entanto, funda nossa civilização: a proibição do incesto. Lacan afirma que "não há relação sexual salvo entre as gerações vizinhas" (Lacan, 1978/1999, p. 1). Ao longo da obra, perambulando pelos cômodos da casa dos Buendías, é possível perceber os desejos incestuosos diluídos no ar e, por vezes, materializados na cama. O livro transmite a ideia de que a endogamia flerta com a morte, com a extinção.

A passagem pelo complexo de Édipo, Freud ensina, implica justamente que o sujeito abra mão do objeto proibido (pai/mãe) e oriente seu desejo para outro. No entanto, nisso de orientar-se para fora da esfera familiar em busca do amor, do objeto perdido, o sujeito termina por encontrar no outro a si mesmo ou os traços daqueles que ocuparam para ele o lugar do Outro (Freud, 1914/2010). Há um gozo implícito nisso, "goza-se um antigo gozo na repetição da fantasia edípica que sustenta o sujeito como desejante, o que faz sintoma" (Alberti, 2011, p. 23).

Pela via da identificação, "a mais antiga manifestação de uma ligação afetiva a uma outra pessoa" (Freud, 1921/2011, p. 60) ou escolha de objeto, os traços, ou, melhor dizendo, os significantes relativos a nossos ancestrais vão sendo transmitidos de geração em geração, encobrindo o impossível da relação sexual, e, não à toa, histórias e destinos reproduzem-se. Voltemos à obra.

Ligados pela culpa (motivada pelo assassinato ou pela relação proibida?), o casal passa a ser atormentado pela presença do fantasma de Prudencio Aguilar. José Arcadio Buendía decide deixar o povoado em que vivem e, acompanhados por outros casais, empreendem uma verdadeira travessia, uma "viagem absurda de quase dois anos, em busca da terra que ninguém lhes havia prometido" (Márquez, 1967/1995, p. 28). Junto "às margens de um rio pedregoso cujas águas pareciam uma torrente de vidro gelado" (Márquez, 1967/1995, p. 29), José Arcadio Buendía deixa-se inspirar por uma palavra desconhecida, palavra inconsciente, e com ela funda um povoado:

(...) sonhou essa noite que naquele lugar se levantava uma cidade ruidosa, com paredes de espelhos. Perguntou que cidade era aquela, e lhe responderam com um nome que nunca tinha ouvido, que não possuía significado algum, mas que teve no sonho uma ressonância sobrenatural: Macondo. (Márquez, 1967/1995, p. 29)

É em sonho que a palavra sem significado aparece ao patriarca. Macondo é o inconsciente, e é lalíngua. É palco, cenário, espaço no qual gerações e gerações "coexistem num mesmo instante" (Márquez, 1967/1995, p. 393) através dos significantes, dos ditos e não ditos transmitidos de pais para filhos. Pois em Cem anos de solidão o que se repete não são apenas os nomes das personagens, o que causa embaraço em muitos leitores, mas, junto com isso, repetem-se os sentidos ligados aos nomes repetidos. "Está posto que o inconsciente é lalíngua, e que ser falante é a coabitação com lalíngua. Deduzimos que ser falante e inconsciente são indissociáveis" (Izcovich, 2018, p. 102).

O primeiro filho do casal é José Arcadio, nascido durante a travessia; o segundo, o primeiro ser humano a nascer em Macondo, é Aureliano. Esses nomes vão se repetir ao longo das gerações presentes no livro: Arcadio, Aureliano José, os 17 Aurelianos, José Arcadio Segundo, Aureliano Segundo, José Arcadio, Aureliano e o último da estirpe: Aureliano. "Os Aurelianos eram retraídos, mas de mentalidade lúcida, os Josés Arcadios eram impulsivos e empreendedores, mas estavam marcados por um signo trágico" (Márquez, 1967/1995, p. 178). A terceira filha é a seca Amaranta, mulher que dedica sua vida à rivalidade mortal com Rebeca, enigmática criança comedora de cal e terra que chega à aldeia de Macondo carregando um saco de lona com os ossos dos pais, e que é adotada e criada como filha pelos Buendías. As mulheres dessa casa, "casa de loucos" (Márquez, 1967/1995, p. 145), segundo a matriarca Úrsula (e quantos não olham para sua própria família com essa impressão, de que são loucos?), com as quais um homem sequer deveria perder seu tempo, segundo Aureliano Segundo, "são piores do que as mulas" (Márquez, 1967/1995, p. 191), "dão-se menos às amizades, vivem mais isoladas, são menos gregárias que os homens em Macondo" (Llosa, 1971, p. 396). Não fazem conjunto. Entre elas, os nomes Úrsula, Amaranta e Remédios vão se repetir e se combinar ao longo desses cem anos.

 

José Arcadio e Rebeca. Arcadio

Ao longo da narrativa, histórias permeadas por não ditos e repetições. Há o Buendía que, ignorante quanto ao ofício do amor, experimentando um "abismo de desamparo" (Márquez, 1967/1995, p. 32), busca, no escuro do quarto e no claro de sua imaginação, o rosto da amante e não faz senão topar com o rosto da mãe: "Queria estar com ela o tempo todo, queria que ela fosse sua mãe (...) tentava se lembrar do rosto dela e topava com o rosto de Úrsula" (Márquez, 1967/1995, p. 32). Faz um filho nessa mulher, Pílar Terneira, mas foge de Macondo e à paternidade, essa mulher não é causa suficiente de seu desejo. Refiro-me a José Arcádio, primogênito do casal José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán. Seu filho, Arcadio, "nunca conheceu o segredo de sua filiação" (Márquez, 1967/1995, p. 92): é criado como filho adotivo pelos avós, por decisão da avó Úrsula. Cresce sob o significante "ilegítimo", acreditando não ser um autêntico Buendía, mas é. E não será o último da estirpe a ignorar sua origem: o bisneto de Arcadio vivencia destino semelhante, pois, também por decisão de sua avó, desconhece a verdade sobre sua filiação.

Após fugir de Macondo com os ciganos, deixando para trás a família e o filho Arcadio no ventre de Pílar Terneira, José Arcadio regressa muitos anos depois apenas para, segundo sua mãe Úrsula, envergonhar a família. É que José Arcadio e sua irmã adotiva, Rebeca, não resistem à paixão: "Maninha, você é muito mulher (...) Ah, maninha; ah maninha" (Márquez, 1967/1995, p. 93). E esta sucumbe diante daquele "protomacho cuja respiração vulcânica se percebia em toda casa" (Márquez, 1967/1995, p. 92) e por quem "perdeu o domínio sobre si mesma" (Márquez, 1967/1995, p. 93). O noivo abandonado por Rebeca, Pietro Crespi, tragédia ambulante à parte, argumenta: "Mas ela é sua irmã. É contranatura e, além disso, a lei proíbe" (Márquez, 1967/1995, pp. 93-94). Ao que José Arcadio responde: "Estou cagando pra essa tal de natura" (Márquez, 1967/1995, p. 94). No sermão de domingo, o padre de Macondo revela que José Arcadio e Rebeca não são irmãos. A mãe (Úrsula, a não-toda centenária que atravessa viva praticamente toda a obra, convivendo com toda a estirpe) jamais perdoará o casal, que, daquele momento em diante, vê-se proibido de entrar na casa dos Buendías novamente.

Mais adiante ou enquanto isso - pois, atemporal como o inconsciente, em Macondo pode-se dizer dos Buendíad que "todos coexistiram num mesmo instante" (Márquez, 1967/1995, p. 393) - o filho de José Arcadio com Pílar Terneira, Arcadio, aquele que nunca soube da verdade sobre sua origem, vê-se, diante da ternura daquela mulher que ignora ser sua verdadeira mãe, aturdido. E esta, diante do desejo daquele que sabe ser seu filho, lhe diz, quase Jocasta: "Não posso, não posso. Você não imagina como eu gostaria de lhe dar prazer, mas Deus é testemunha de que não posso" (Márquez, 1967/1995, p. 111).

 

Aureliano, o coronel

Aureliano, o primeiro a nascer em Macondo, segundo filho de José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán, é um belo exemplar da Solidão, significante que representa a estirpe, ao qual os Buendías estão condenados. Deixo de lado certo ângulo de sua história: sua paixão por uma menina de nove anos, impúbere, Remédios, morta precocemente com um par de gêmeos atravessado no útero, menina que se converterá no futuro na "imagem apagada de alguém que podia ter sido sua [de Aureliano] filha" (Márquez, 1967/1995, pp. 167-168), "menina de saia pregueada, botinhas brancas e laço de organdi na cabeça", que as gerações futuras "não conseguiam fazer coincidir com a imagem acadêmica de uma bisavó" (Márquez, 1967/1995, p. 89). Tomo outro ângulo de sua narrativa, aquele que transmite algo sobre a metáfora paterna.

"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo" (Márquez, 1967/1995, p. 7). Essa é a frase de abertura de Cem anos de solidão. Diante da morte, o pensamento de Aureliano leva-o para seus seis anos de idade. Nessa época, o pai, "cuja desatada imaginação ia sempre mais longe que o engenho da natureza, e até mesmo além do milagre e da magia" (Márquez, 1967/1995, p. 8), "era o homem mais empreendedor da aldeia" (Márquez, 1967/1995, p. 15); vivia, como diz a sabedoria popular brasileira, "inventando moda", fechado em um quartinho, em torno de suas experiências. "Empresas delirantes", na linguagem de sua esposa, Úrsula. Fascinado por novidades, torna-se amigo do cigano Melquíades, que com sua tribo atravessa Macondo de vez em quando. A lembrança de Aureliano diante do pelotão de fuzilamento data da época em que começou a existir para seu pai: quando Úrsula diz a este que, em vez de se ocupar com maluquices, ele deveria era se ocupar dos filhos, José Arcadio toma ao pé da letra as palavras da esposa e, olhando pela janela, vê os dois meninos descalços "e teve a impressão de que só naquele instante tinham começado a existir, concebidos pelos rogos de Úrsula" (Márquez, 1967/1995, p. 19). Concebidos pelos rogos da mãe. Depois disso, passa a dedicar-lhes suas melhores horas. No lugar dos rogos da mãe, advém o interesse do pai pelos filhos. E o que invade a memória de Aureliano diante da morte é a tarde em que vê o pai fascinado a escutar mais uma chegada dos ciganos em Macondo. O pai leva os meninos para aquele "pânico de alvoroçada alegria" (Márquez, 1967/1995, p. 21) em que se transformaram as ruas e ali, junto aos ciganos, eles são apresentados à maior novidade: "um bloco transparente, com infinitas agulhas internas nas quais se despedaçava em estrelas de cores a claridade do crepúsculo" (Márquez, 1967/1995, p. 22).O pai, sem saber o que dizer, consegue apenas murmurar seu equívoco: "É o maior diamante de mundo." É corrigido pelo cigano: "É gelo" (Márquez, 1967/1995, p. 22). E consente: "este é o grande invento do nosso tempo" (Márquez, 1967/1995, p. 23). Sabemos com Freud que:

Os pais constituem para a criança pequena a autoridade única e a fonte de todos os conhecimentos. O desejo mais intenso e mais importante da criança nesses primeiros anos é igualar-se aos pais (isto é, ao progenitor do mesmo sexo), e ser grande como seu pai e sua mãe. (Freud, 1908/1909/2006, p. 219)

O desejo do homem é o desejo do Outro e, diante da estupefação do pai, Aureliano identifica-se com aquele objeto, o maior diamante do mundo - gelo -, o grande invento, Ideal do Outro. Maior - gelo - grande. Há uma marca inicial que nos funda, que nos dá lugar em uma ordem, que situa o eu simbolicamente. Aureliano torna-se, quando adulto, o importante coronel Aureliano Buendía, liberal que luta contra o regime conservador, promovendo 32 revoluções; perdendo todas. Admirado e respeitado inclusive pelos inimigos, chega a ser "o homem mais temido pelo governo" (Márquez, 1967/1995, p. 103), uma lenda. O maior diamante do mundo! Ao fim de 20 anos de guerra, Aureliano acorda uma bela noite gritando por um cobertor. "Um frio interior que lhe rachava os ossos e o mortificava inclusive em pleno sol impediu-lhe de dormir bem por vários meses, até que se transformou num hábito" (Márquez, 1967/1995, p. 163). Tal frio acompanha Aureliano até o momento de sua morte, não diante do pelotão de fuzilamento, mas esturricado junto ao castanheiro onde, segundo os manuscritos de Melquíades, "o primeiro da estirpe" (Márquez, 1967/1995, p. 392), José Arcadio Buendía, seu pai, "está amarrado" (Márquez, 1967/1995, p. 392). O maior diamante do mundo, "um homem incapacitado para o amor" (Márquez, 1967/1995, p. 240), não passa de gelo.

 

Amaranta e Aureliano José. José Arcadio

Aureliano José, filho de Aureliano com Pílar Terneira (sim, a mesma com quem seu irmão mais velho, José Arcadio, tem um filho), é reconhecido pelo pai e criado pelos Buendías. Remédios, a jovem esposa criança de Aureliano, recebe-o como um filho, mas, por causa de sua morte precoce, é Amaranta, tia de Aureliano José, quem o adota como "um filho que haveria de compartilhar da sua solidão" (Márquez, 1967/1995, p. 89). Na adolescência, o jovem Aureliano José, que mantinha o hábito de esgueirar-se por debaixo do mosquiteiro para a cama da tia, sente, em certa madrugada, os dedos da tia "como uns vermezinhos quentes e ansiosos que procuravam seu ventre", com suas mãos "mergulhando como um molusco cego entre as algas de sua ansiedade" (Márquez, 1967/1995, p. 140). Passam não apenas a dormir juntos, nus, acariciando-se de forma extenuante, mas também a se perseguir pelos cantos da casa, "num permanente estado de exaltação sem alívio" (Márquez, 1967/1995, p. 141). Quando Amaranta percebe-se "chafurdando numa paixão outonal, perigosa e sem futuro" (Márquez, 1967/1995, p. 141), põe fim àquelas brincadeiras (que não chegaram ao ponto da consumação do ato sexual). Aureliano José vai então embora com o pai.

Entretanto, longe de Macondo, ao ouvir "a velha história do homem que se casou com uma tia que, além disso, era sua prima, e cujo filho acabou sendo avô de si mesmo" (Márquez, 1967/1995, p. 146), Aureliano José retorna decidido a se casar com Amaranta. "Eu sou sua tia, não posso, é quase como se eu fosse a sua mãe, não só pela idade, mas também porque a única coisa que faltou foi dar a você de mamar" (Márquez, 1967/1995, p. 146). Aureliano José, insiste. "Não é só isso", a tia argumenta, "é que os filhos nascem com rabo de porco" (Márquez, 1967/1995, p. 147). Aureliano José assemelha-se ao avô em sua resposta-súplica: "Mesmo que nasçam tatus" (Márquez, 1967/1995, p. 147). Enquanto isso, em outro cômodo, outro momento, afinal todos coexistiram em um mesmo instante, José Arcadio, sobrinho-bisneto de Amaranta, que em sua infância fora acariciado por esta "não como uma avó acaricia um neto, mas como teria feito uma mulher com um homem" (Márquez, 1967/1995, p. 265), morre pensando apaixonadamente na tia-bisavó.

 

Amaranta Úrsula e Aureliano. Aureliano

Aqui, um salto que leva aos últimos da estirpe: Amaranta Úrsula, tataraneta de José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán e neta de Arcadio Buendía; e Aureliano Buendía, bisneto desse mesmo Arcadio e sobrinho de Amaranta Úrsula. Assim como o bisavô, Aureliano tem sua origem velada por sua avó, não se sabe um Buendía. Na infância, é companheiro de brincadeiras de Amaranta Úrsula, e, quando adultos, reconhecem "a verdade de que tinham sido felizes juntos desde que tinham memória" (Márquez, 1967/1995, p. 386). Ambos desconhecem o fato de que a irmã de Amaranta Úrsula, Remédios Buendía, é mãe de Aureliano. Meme (apelido para Remédios) fora apartada da família ao ser levada pela mãe para um convento, isso após a descoberta de seu caso com Maurício Babilonia, personagem fascinante, cuja presença é sempre precedida por centenas de borboletas amarelas. É nesse convento que nasce Aureliano, que, em seguida, é levado para Macondo, para desgosto de sua avó. Com a chegada de Aureliano à cidade, começa-se a vislumbrar "os acontecimentos que haveriam de dar o golpe de morte em Macondo" (Márquez, 1967/1995, p. 279). Algo do ritmo, da velocidade da narrativa altera-se nesse momento; há uma aceleração, momento de concluir.

Amaranta Úrsula e Aureliano, esse é o casal Buendía que, após gerações perseguindo-se "pelos labirintos mais intricados do sangue" (Márquez, 1967/1995, p. 394), realiza o destino solitário da família, após cem anos de repetição encoberta por significantes que insistem no sentido de burlar a interdição relativa ao incesto. Amaranta Úrsula e Aureliano vivem uma paixão intensa, avassaladora, insensata, que se converte em um "universo vazio, onde a única realidade cotidiana e eterna era o amor" (Márquez, 1967/1995, p. 385). Sua união faz tremer na cova os ossos da mãe de Amaranta Úrsula, avó de Aureliano. Juntos, o casal engendra "o animal mitológico que haveria de pôr fim à estirpe" (Márquez, 1967/1995, p. 394), o bebê Aureliano, que nasce com rabo de porco e termina morto, "comido pelas formigas" (Márquez, 1967/1995, p. 392). Após o parto, a mãe esvai-se em sangue até a morte. O pai perde-se no desespero, até se encontrar nos pergaminhos de Melquíades.

 

Melquíades

A travessia por Cem anos de solidão implica, ao final da obra, uma subversão. Há uma subversão na forma narrativa que provoca uma mudança de posição daquele que lê: ainda que o leitor não se dê conta desses meandros formais relativos à obra, o efeito de ler e envolver-se com Cem anos de solidão é catártico! Ao final do livro, a partir de um giro belíssimo dado pelo autor, desvela-se o fato de que a história está dentro da história: o que até ali foi contado por um narrador que parecia estar fora da obra, narrador onisciente, está contido nos pergaminhos de um importante personagem, que se converte então em narrador: Melquíades.

Ao longo da narrativa, das sucessivas gerações, há sempre um Buendía empenhado em decifrar tais pergaminhos. E quando o último deles a caminhar sobre a Terra consegue, vê-se diante da "história da família, escrita por Melquíades inclusive nos detalhes mais triviais, com cem anos de antecipação (...) de modo que todos coexistiram num mesmo instante (...) nos pergaminhos de Melquíades estava escrito o seu destino" (Márquez, 1967/1995, p. 393). Melquíades, personagem enigmática, sobrenatural, cigano presente vivo ou morto ao longo de toda a narrativa, muito admirado pelo patriarca José Arcadio Buendía. A certa altura, passa a morar na casa dos Buendías e ali fica "horas e horas garranchando sua literatura enigmática nos pergaminhos que trouxera consigo" (Márquez, 1967/1995, p. 73). A despeito das sucessivas tentativas dos membros da família de tentar decifrar tais pergaminhos, o cigano é profético: "Ninguém deve conhecer a sua mensagem enquanto não se passarem cem anos" (Márquez, 1967/1995, p. 180).

Ao final da obra, o leitor coincide-se com Aureliano lendo sua própria história, que até então permanecera cifrada. Não à toa, como mencionado linhas antes, após a chegada de Aureliano a Macondo há uma aceleração narrativa; é ele próprio lendo sua, em parte, conhecida e, em parte, desconhecida história. Aureliano está, sugiro, lendo o que se poderia ler de seu próprio inconsciente.

Lo que Melquíades escribó dentro de la historia que cuenta Cien años de soledad es Cien años de soledad (...) Melquíades es el narrador (...), al final sabemos que el narrador era pieza integrante de la realidad ficticia, es decir alguien que va a desaparecer con Macondo, que va a ser destruido junto con lo narrado. (...) En el instante en que el narrador y lo narrado coinciden, ambos desaparecen. (Llosa, 1971, pp. 540-541)

Os Buendías terminam por extinguir-se no momento em que Macondo é "arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens" (Márquez, 1967/1995, p. 394), momento em que Aureliano termina de ler sua história. O ser falante é, por definição, solitário em sua incompletude, pois não há, de fato, um objeto que o complete. "Cada um fala sua própria língua, desde o começo da vida, o que suscita muitos mal-entendidos", e assim "a linguagem é o próprio agente da interdição" (Gerbase, 2007, p. 18 e 28), permanecendo algo de indizível que se veste com o significante e insiste, insiste no tempo e espaço de uma família. Ao impossível da relação sexual, real, estrutural responde a lei simbólica da proibição do incesto.

Macondo é lalíngua, é a lalíngua dos Buendías transmitida e inscrita no inconsciente de Aureliano Buendía, inconsciente esse representado pelos pergaminhos de Melquíades. No momento em que Macondo é varrida da face da Terra, Aureliano, pela primeira vez, é referido sob o nome do pai, Aureliano Babilonia:

Antes de chegar ao verso final já tinha compreendido que não sairia nunca daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante que Aureliano Babilonia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra. (Márquez, 1967/1995, p. 394)

Desvendado os pergaminhos de Melquíades, desvendado seu inconsciente, poderia Aureliano, antes Buendía, agora Babilonia, não fosse a morte, ser outro? Ou seria sua morte apenas uma metáfora?

 

Referências bibliográficas

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Recebido: 17/03/2019
Aprovado: 06/05/2019

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