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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.38 Rio de Janeiro Jan./June 2019

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO

 

Clínica da psicose em um hospital de custódia e tratamento psiquiátrico: sobre a transferência e os três registros

 

Clinic of psychosis in a custody and psychiatric treatment hospital: on the transfer and the three registers

 

Clínica de la psicosis en un hospital de custodia y tratamiento psiquiátrico: sobre la transferencia y los tres registros

 

Clinique de la psychose dans un hôpital de traitement psychiatrique et de garde : sur le transfert et les trois registres

 

 

Augusto Ribeiro Coaracy Neto

 

 


RESUMO

Após contextualizar o projeto conjunto entre o Fórum do Campo Lacaniano/São Paulo e um hospital de custódia, apresentamos um caso clínico a respeito de um sujeito de estrutura psicótica. O objetivo dessa transmissão é apontar certos impasses e possibilidades importantes com relação à clínica com a psicose. A forma com que se transmitem esses aspectos é por considerações sobre a transferência e os registros simbólico, imaginário e real, a partir dos quais elaboramos algumas questões. Tratamos da presença do analista como aspecto imaginário da transferência, da inversão da transferência específica aos casos de psicose, da possibilidade da autoria de músicas como um trabalho com o registro real e do trabalho com o delírio como um aspecto simbólico na transferência.

Palavras-chave: Psicose; Hospital de custódia e tratamento psiquiátrico; Instituição; Transferência; RSI.


ABSTRACT

After contextualizing the joint project between the Fórum do Campo Lacaniano/São Paulo and a custody and psychiatric treatment hospital, a clinical discussion is brought, regarding a subject with psychotic structure. The purpose of this transmission is to point out certain important clinical impasses and possibilities regarding psychosis. The way in which these aspects are transmitted is through considerations about the transference and the symbolic, imaginary and real registers, from which we elaborate some questions. We discuss the analyst's presence as an imaginary aspect of transference, the inversion of transference specific to cases of psychosis, the possibility of authorship of songs as a work with the real register, and the work with delirium as a symbolic aspect of the transference.

Keywords: Psychosis; Custody and psychiatric treatment hospital; Institution; Transference; RSI.


RESUMEN

Después de contextualizar el proyecto conjunto entre el Fórum do Campo Lacaniano/São Paulo y un hospital de custódia, presentamos un caso clínico realizado respecto a un sujeto de estructura psicótica. El objetivo de esta transmisión es señalar ciertos impasses y posibilidades importantes con relación a la clínica con la psicosis. La forma en que se transmiten estos aspectos es a través de consideraciones sobre la transferencia y los registros simbólico, imaginario y real, a partir de los cuales elaboramos algunas cuestiones. Tratamos de la presencia del analista como aspecto imaginario de la transferencia, de la inversión de la transferencia específica a los casos de psicosis, de la posibilidad de la autoría de canciones como un trabajo con el registro real y del trabajo con el delirio como un aspecto simbólico en la transferencia.

Palabras clave: Psicosis; Hospital de custodia y tratamiento psiquiátrico; Institución; Transferencia; RSI.


RÉSUMÉ

Après avoir contextualisé le projet commun du Forum du Champ lacanien de São Paulo et d'un hôpital de détention psychiatrique, nous présentons un cas clinique à propos d'un sujet à structure psychotique. Le but de cette transmission est de souligner certaines impasses et possibilités importantes en ce qui concerne la clinique avec la psychose. La façon dont ces aspects sont transmis passe par des considérations à propos du transfert et des registres symbolique, imaginaire et réel, à partir desquels nous posons certaines questions. Nous traitons de la présence de l'analyste en tant qu'aspect imaginaire du transfert, de l'inversion du transfert spécifique aux cas de psychose, de la possibilité que la composition de chansons soit un travail avec le registre réel et du travail avec le délire comme un aspect symbolique du transfert.

Mots-clés : Psychose ; Hôpital de détention psychiatrique ; Etablissement ; Transfert ; RSI.


 

 

A partir da perspectiva psicanalítica, este trabalho tem por objetivo transmitir certos impasses clínicos que se apresentam em um hospital de custódia e tratamento psiquiátrico. Embora tenha necessariamente uma interlocução com o Sistema Único de Saúde (SUS), esse tipo de hospital tem sua finalidade inscrita na Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210, de 11 de junho de 1984), sendo o local para aplicar medidas de segurança a pessoas em conflito com a lei que são tomadas como inimputáveis ou semi-inimputáveis. Assim, discorreremos aqui sobre um analisante com quem se aposta em uma estrutura psicótica.

Primeiramente, falo do projeto em que esse atendimento se insere. Em uma parceria realizada entre o Fórum do Campo Lacaniano/São Paulo (FCL/SP) e o hospital de custódia em questão, salvaguardando todas as questões de segurança relativas a esse presídio/hospital, os psicanalistas do FCL realizam atendimentos semanais com alguns dos detentos ou pacientes. O "ou" aqui é inclusivo e ambíguo, o que atravessa de antemão o encontro clínico. Trata-se de um lugar em que, afinal, a punição é o tratamento. E não é de se desconsiderar a cronificação relativa a um uso massivo de medicações, aspecto em que a ambiguidade entre tratamento e punição parece muito evidente. Ademais, ressaltamos que cada analista faz supervisão de seus casos com outro analista do FCL.

O esforço de sustentar as diretrizes do SUS no que diz respeito a um trabalho multidisciplinar, procurando a construção de um espaço de discussão dos casos e dos respectivos projetos terapêuticos singulares, consiste em uma diretriz central de nossa entrada no hospital, constando no contrato de parceria entre as instituições em questão. No entanto, tais espaços não aconteceram propriamente, pois não tiveram alguma regularidade, ocorrendo apenas muito esporadicamente. Esse foi o motivo pelo qual a parceria entre o FCL/SP e o hospital em questão se encerrou, depois de dois anos de trabalho conjunto. Aprofundar nesse aspecto está além dos objetivos deste trabalho.

Mesmo assim, não são irrelevantes os efeitos dos atendimentos realizados, de nossa presença e de nossas eventuais intervenções no hospital. De antemão, ressaltamos a criação de transferências e a circulação dos dizeres entre os analistas do FCL, profissionais e pacientes desse hospital. Ainda que não tenha havido reuniões propriamente clínicas com regularidade, trocas em um nível clínico estabeleceram-se entre alguns profissionais e alguns analistas, nos corredores, por conversas de telefone e em alguns esbarrões. Pode-se dizer, portanto, que houve uma circulação de saberes e até provocações com relação ao uso ostensivo de medicações, o que só se tornou possível pelo fato de que transferências foram estabelecidas.

Um primeiro destaque dessas trocas. Alguns profissionais do hospital transmitiram-nos a dificuldade de comparecerem diante de um paciente por causa da mencionada ambiguidade. Por um lado, eles estão na função de agentes do Estado, guardando em si o poder de realizar um relatório para o juiz, que pode ou não levar isso em conta, no que diz respeito aos encaminhamentos do caso. Por outro, os profissionais têm a possibilidade de estabelecer algo terapêutico, que proporcione algum ganho para o paciente e para a instituição, inclusive no sentido de uma eventual desinternação ou até da "promoção de saúde", o que é uma diretriz do SUS. Assim, os analistas do FCL chegam já na possibilidade de ficarem principalmente no eixo "terapêutico", não estando tão tomados no centro do furacão institucional pela burocracia e pelos jogos de poder.

Por vezes, os pacientes espantam-se ao não poderem supor esse poder institucional em nós, o que é também eixo de possíveis táticas nossas na condição de analistas. Afinal, pela psicanálise, podemos trabalhar a construção e a subversão das demandas deles, muitas vezes dirigidas a qualquer pessoa que não esteja presa ou trabalhe lá, como a compra de cigarros, saber das perspectivas de saída ou da aquisição de apetrechos, como calçados ou rádios. Que sentido singular há nessas demandas?

Essa possibilidade de trabalho dá notícias da extraterritorialidade do psicanalista, posicionamento clínico por excelência. Vislumbra-se o campo das demandas, sejam as dos pacientes, sejam as da instituição. Ainda que o psicanalista possa tomar parte da construção delas, direciona o tratamento, tendo em vista que o desejo singular opera sempre além e aquém das demandas - uma possibilidade de subverter o circuito demandante, que pode ser infernal (Lacan, 1960/1998a). Então, para além de ser um elemento na paisagem do hospital, o encontro dos analistas com os pacientes, por detrás ou além das grades, nos gramados e bancos das áreas externas, tem efeito mobilizador de afetos, dizeres e transferências. Visto esse enquadre a que nosso trabalho comparece, passemos ao objetivo deste texto: certos impasses na clínica possível com a psicose.

Apresento o caso Z. Na ocasião em que o tratamento se encerrou, em abril de 2019, Z. tinha 70 anos de idade, um senhor com longa história de institucionalização em hospitais psiquiátricos e que estava sob o efeito de muitas medicações, com certas lentificações na fala e nos gestos. Em janeiro de 2019, verifiquei que ele estava tomando cinco antipsicóticos: Amplicitil 25 mg, Quetiapina 100 mg, Anatensol Decanoato 5 mg, Olanzapina 10 mg e Clonazepan 2 mg, além das outras medicações relativas a seu estado de saúde fragilizado.1 A cronificação medicamentosa é patente nesse caso, aspecto que perpassa todo o manejo clínico, naquilo que orienta o estilo da escuta e das intervenções, exigindo bastante paciência e lentidão.

Fumando um cigarro atrás do outro, ao contrário do que poderia dar a entender essa primeira descrição, Z. por vezes pode trazer um dizer muito bem articulado e enérgico, abrangendo uma vasta gama de assuntos. Está preso nesse hospital há cerca de quatro anos. No entanto, esteve anteriormente em outro hospital de custódia também por um período de quatro anos, esse outro um tanto mais semelhante a um presídio do que o atual, que tem a finalidade de proporcionar a alta e a reintegração do paciente. No total, somam-se próximos de oito anos de internação em hospitais de custódia na ocasião do encerramento do projeto.

Z. foi preso por tentar matar a mãe. Para ele, essa tentativa constituiu, antes, um gesto de proteção contra as ameaças dos vizinhos. Hoje, essa mãe é uma senhora de seus 90 e tantos anos e é a única possibilidade de contato sua com o mundo externo - pelo menos no que ele considera, pois ainda lhe restam outros familiares e relações em sua cidade. Vale lembrar que a articulação e o laço com uma família e/ou um domicílio acabam por ser condição para a desinternação, ao pautar-se pela lógica jurídica e técnica do hospital, tanto mais se observarmos a ausência de residências terapêuticas na rede do Estado.

Essa mãe comparece na fala de Z. com os mais variados matizes, mas, em geral, ele lhe dá uma consistência de ser toda, um Outro não barrado. Para ilustrar isso, cito uma estrofe de um de seus inúmeros sambas, "Sábia sabiá". Todos os sambas são composições suas, letra e melodia:

Minha mãe é sábia sabiá
Ela é puro sentimento
É a forma mais inteligente
Que existe nesse universo

E depois, no mesmo samba:

Minha mãe é toda minha alegria
Quando a vejo, a escuridão se torna dia
Minha mãe é também toda minha tristeza
Quando não a vejo, o mundo não tem beleza

Está claro que grande volume de sua fala é sobre a mãe. Queixa-se de que sua aposentadoria por uma "síndrome de pânico" deu-se porque sua mãe "não esteve ao seu lado", isso quando ele tinha seus 20 e poucos anos. Ela não confiaria nele, especialmente quanto ao uso de medicações. De lá até aqui, acumulando diagnósticos, até o último, de "bipolar", esteve diversas vezes internado em clínicas.

Agora está preso nesse hospital de custódia e com pouquíssimas possibilidades materiais de sair vivo, pois seu estado de saúde foi visivelmente se agravando até nossa despedida, suas perspectivas de saída permaneceram parcas e, afinal, não lhe faz sentido viver fora do hospital em algum lugar sem a mãe - convivência essa que não parece possível, visto que ele de fato representa alto grau de "periculosidade" para ela. Isso é algo que lhe dificulta uma eventual alta hospitalar, por não ter outra rede afetiva e material. Nesse contexto, coloco-me como analista, trabalhando pela transferência e pela palavra. Para fins de formalização do percurso clínico, proponho um diálogo com a temática do RSI, elencando eixos do trabalho que foi realizado e inversões na transferência.

É muito interessante quando Soler (2007) trabalha a noção de que a transferência com um psicótico pode ser invertida, especialmente em seus momentos iniciais. A autora trabalha essa noção a partir da leitura de Freud do caso Schreber, do trabalho de Lacan em cima da escrita de James Joyce e, especificamente, no extenso relato do tratamento realizado entre Marion Milner, psicanalista supervisionanda de Winnicott, e sua paciente Suzanne. A posição de Soler é de que essas inversões são "naturais", pensando que o psicótico pode ser um "duplo" das questões singulares do analista neurótico que o atende. A respeito disso, Soler comenta a leitura de Freud do livro de Schreber: "Isso é o que Freud evidencia nas premissas do caso Schreber, sob a capa, é verdade, da homossexualidade" (Soler, 2007, p. 153).

Essa inversão se dá nas ocasiões em que o engodo do sujeito suposto saber, esse furo no saber que causa um enigma para um neurótico, não comparece sob o semblante da função do analista, mas no delírio do analisante. Isso configura uma especificidade da transferência psicótica. Como sabemos, é próprio da noção de transferência em psicanálise que não se trata de gerar uma suposição de complementariedade entre um analista e um analisante. Antes, é na não complementariedade sustentada nesse "entre" que é possível comparecer o sujeito do inconsciente, em fading, evanescente, na fala do analisante (Lacan, 1960-1961/1992).

Em um passo a mais, vislumbremos a inversão da transferência, que ocorre em certos momentos com psicóticos. Soler (2007, p. 153) transmite isso falando que Schreber, por exemplo, torna-se "o Saber de Deus", ao colocar os leitores imaginários/imagináveis de seu Memórias de um doente dos nervos (Schreber, 1903/1995) no lugar de sujeitos barrados, o que a autora apresenta colocando Schreber na posição de objeto a no matema do discurso do psicanalista.

Trata-se de uma forma de fazer um laço social, portanto. Sem leitores instigados pela produção de saber de Schreber, que seja Freud-leitor, não haveria o "entre" em torno do qual seu delírio teve ocasião de se estruturar. Claro, não se trata de se satisfazer com um ingênuo fascínio pelo suposto saber do psicótico, tomando-o como exótico. Um saber sobre Deus, no caso de Schreber, ou a imputação, por Freud, da persecutoriedade como elemento homossexual em meio ao delírio de Schreber, são produções de saber que engendram possibilidades de laço social e de formalização teórica, malgrado qualquer fascínio que possam causar. Assim, na construção de uma transferência com psicóticos, há de se aprender com eles, sem perder a direção clínica de uma possível constituição de um delírio. Tal inversão na transferência com psicóticos tem, portanto, sua potência e função clínica.

Com isso, pode-se pensar na ênfase imaginária que se dá à transferência estabelecida com o psicótico, o que exige uma direção e um manejo muito diferentes daquele que se faz com o neurótico. Afinal, certo contorno e consistência imaginários podem dar ensejo a um ganho de mundo, especialmente em um cenário como esse, que é bastante esvaziado de perspectivas, em uma verdadeira "perda de mundo", tal como verificamos no hospital e no caso em questão. No entanto, essa ênfase imaginária inicial é também o motivo pelo qual o analista facilmente se torna o próprio objeto persecutório do psicótico, aspecto muito recorrente com Z. A partir de cerca de um ano de tratamento até o final, ele me agrediu com palavras e murmúrios no início de quase todas as sessões, os quais eram quase inaudíveis. Esses solavancos e sobressaltos servem como um excelente momento para marcar que a ética do tratamento com o psicótico na psicanálise, se assumimos essa diferença, está em não procurar neurotizar o psicótico, sobretudo por meio de interpretações de seus ricos dizeres.

Essa vasta consistência imaginária na transferência, ademais, está em favor de certa direção do tratamento com psicóticos, qual seja, a possível estabilização imaginária desse sujeito. É de se enfatizar que a palavra "estabilização" não quer dizer normalização, assepsia ou tentativa de adaptação, mas, sim, a criação de possibilidades para que o dizer sobre o delírio ocorra. Um efeito possível disso é a colocação do delírio como forma de estar no laço social, o que implica que o psicótico possa levar o objeto a, forjado pelo delírio, no bolso (Lacan, 1967). Aqui, estamos abrindo uma ênfase simbólica da transferência com psicóticos, de que trataremos adiante.

Em um passo além, apostamos que há uma dimensão real da transferência muito importante no trabalho com Z. Durante grande parte desse mais de um ano de atendimento, o trabalho se deu em permitir que os sambas por ele compostos se tornassem presentes, fossem cantados. Eu, no gesto de analista e de aprendiz, segui registrando esses sambas em um caderno, que foi intitulado por ele "Desabafos sentimentais". Vários dos sambas eram declaradamente sobre a mãe: "Me guardei no violão", "Meu samba é triste por você", "Máfia da solidão", esse sobre a briga com a mãe que o levou a ser preso, "Sábia sabiá", "Estrela guia", o favorito da mãe. Outros poucos sambas apontam para aquilo que apostei serem elementos de seu delírio, tratando dos animais e do vegetarianismo como formas de estar perto de Deus: "Negue" e "Queixa".

Entendo que o processo de produção desses sambas, mais além de ter dado ocasião para Z. dizer de sua história, traz uma dimensão real da transferência, na medida em que coloca em jogo sua autoria, impressa em sua voz, cantando. A questão da autoria veio à tona quando compareceu o ímpeto de registrar seus sambas, que brotou em sua fala a respeito do finado pai, que tinha o desejo de justamente registrá-los.

Em meio a essa temática do registro e da autoria, Z. produz um nome artístico: "Antony Brazil". E explica o nome: "EUA e Brasil, duas mães, dois filhos. Juntar as duas Américas! Brasil, o filho. EUA, o filho." As "duas mães" (América do Sul e América do Norte) e "dois filhos" (Brasil e EUA) dão notícias de outra consistência desse Outro não castrado, ao forjar outro nome para si por meio da autoria e da voz? Essa hipótese clínica nos acompanhou no trecho que segue adiante, restando, ao final do tratamento, a noção de que é melhor manter essa pergunta aberta, como instigação.

Mas é nessa ocasião também em que se viu a mencionada inversão na transferência. O empenho que tive em registrar no caderno e em "priorizar" os sambas de Antony Brazil em minha escuta excedeu a própria demanda de Z. de registrá-los. Mantendo-me nesse papel de registro e de secretariado, também me coloquei dividido por minhas questões endereçadas ao caso. Por um lado, a dimensão real da transferência, que o trabalho com a autoria e com o canto dos sambas traz, ganha uma consistência imaginária com minha presença, escuta e registro, o que dá mais ensejo ao laço social. Mas também encontrou nessa ocasião uma resistência minha em ouvir outros assuntos e pautar-me por outras potências, inclusive por meu ímpeto de querer dar mais consistência àquela fala dele, anterior, que passou em um instante, sobre o Antony Brazil ter duas mães e ser dois filhos.

Resistência e transferência são, afinal, dois operadores da clínica psicanalítica que não se separam. Desse momento em diante, instaura-se um processo de elaboração e de supervisão que sucedeu esse afã dos sambas. Então, temos um esbarrão com a contingência: o adoecimento de Z. e a breve internação em outro hospital local. De seu retorno em diante, o trabalho segue pouco centrado no cantar e registrar, sem que isso deixe de comparecer esporadicamente, embora não mais com o direcionamento de ir ao cartório registrar. Cumpre ressaltar que, desde essa breve internação até o encerramento do tratamento, cerca de um ano depois, a saúde de Z. ficou visivelmente mais abalada e por diversas vezes com uma fala mais confusa e agressiva.

Do adoecimento em diante, sua fala começa a retomar certos assuntos que já apareciam aos poucos, inclusive nos sambas. Trata-se da aproximação entre o vegetarianismo e Deus. Para Z., o "vício de comer carne" passa a ser tratado como inclusive mais grave que seu vício de fumar - e a doença que o levou a ser internado foi uma bronquite. Ao ouvi-lo cada vez mais sobre isso, Z. lança a seguinte ideia: "Tem muito Jesus animal". E complementa: "Égua, piranha, galinha... porca!". Chama atenção tal sequência de significantes, que, de maneira geral, nomeiam na cultura machista as mulheres não-todas, que colocam o desejo sexual em cena. Mas sequer está em questão trazer uma interpretação assim, malgrado o ímpeto neurótico de dar sentido a uma sequência tão caricata de animais, enunciada por um senhor que diviniza a mãe.

Na transferência em questão, atravessada por inversões na posição da suposição de saber e com suporte imaginário de minha presença, tal sequência parece estar na ordem de um revestimento simbólico da transferência, em que o que estamos entendendo por delírio passa a tomar um lugar. Então, segui o tratamento até o encerramento do projeto, apostando na escuta sobre o vegetarianismo, vendo aí produções de outros inícios de cadeia significante, em sentidos que podem ou não permear égua, galinha, piranha e porca. Nesse possível revestimento simbólico da transferência, estamos com Soler (2007), quando a autora diz que o trabalho com o delírio é uma aposta em contornos simbólicos diante da invasão do gozo. Isso, afinal, é uma grande contribuição da psicanálise, com evidentes incidências políticas, na medida em que a clínica com o delírio não tem por objetivo normatizá-lo ou suprimi-lo.

De fato, sequências quaternárias começam a pulular à medida que ele segue falando sobre o vegetarianismo e Deus. Por exemplo, ao falar de sua própria família de origem, "Mãe, pai, eu e minha irmã", ele encadeia a noção de que a santíssima trindade tem, na verdade, quatro elementos: "Pai, filho, Espírito e Santa". Tensionar esses elementos que estiveram compondo a constelação de seu delírio foi a aposta nessa dimensão simbólica da transferência, ocasião rara, na qual pude ouvir de Z. uma presumível suposição de saber endereçada ao analista, na produção de exclamações tais como "que boa pergunta!".

Com isso, não se pretende marcar que um enigma ou um furo de saber lhe movimentou o desejo de saber em análise, tal como o faria um neurótico. Antes, pareceu consistir a composição de um entre - as inversões e os reposicionamentos entre mim e Z. -, agenciando a produção de um dizer que pode realizar um trabalho com seu delírio.

As dimensões real, simbólica e imaginária não se desenlaçam uma da outra, mas podemos pensar na formalização do percurso desse caso tendo como eixo a prevalência de cada registro, inclusive em face dos diversos momentos desse caso. Então, entendemos que a própria presença do analista e a escuta dos dizeres, que passa por samba, pelo delírio e por uma recorrente violência contra mim, permitem pensar que a presença, por vezes aproximada ao Outro persecutório dele, tem essa ênfase imaginária. Ao sustentar essas oscilações, estaríamos realizando um trabalho de estabilização imaginária, o que pode comparecer como forma de manter seu discurso de modo público, compondo laços sociais?

De outra forma, quando sirvo de suporte para o cantar e a escrita das letras dos sambas, sigo apostando em uma abertura e ex-sistência real da transferência. Esse apontamento vem de dois momentos: o primeiro é quando ele se dá um nome artístico, o que produz algum deslocamento no papel do filho (Antony Brazil, que seriam dois filhos, a junção de dois países, os EUA e o Brasil) e da mãe (que também seriam duas, correspondendo às duas Américas).

O segundo momento é quando, na ocasião de despedir-me dele, entreguei dois volumes em capa dura com o título "Desabafos sentimentais", título forjado por ele. Trata-se de um livreto que confeccionei com seus sambas transcritos. Ele logo se apropria desse livreto, cantando seus sambas, agora escritos e registrados. Mas o que lhe chamou mais a atenção são as páginas avulsas no final: "aqui posso escrever os sambas que estão faltando nesse livro".

Dessas considerações, levanto duas hipóteses: estaria aí um possível forjamento de um objeto condensador de gozo por meio do suporte material da voz e da autoria? Teria isso levando a um trabalho de ciframento singular por parte do sujeito, algo como levar o objeto a no bolso, de que fala Lacan (1967)?

Na esteira das oscilações que comparecem na consistência do significante mãe, cumpre lembrar que, em determinado ponto do tratamento, ao me propor que sentássemos em uma árvore, ato contínuo, Z. diz: "Estamos sentando junto à mãe natureza. Minha mãe não acredita na mãe natureza." Esse fragmento de oscilação em torno da figura da mãe permitiu que nessa sessão falar sobre o vegetarianismo marcasse algumas diferenças suas com relação à mãe. Sessão essa a partir da qual começa uma contínua sequência de encontros sem fumar, nos quais Z. enfatizou que é capaz de abrir mão de seu "vício".

Então, por último, no trabalho que segue em torno do que compreendi como delírio (vegetarianismo e Deus), na estrutura e tessitura dos sentidos que aí comparecem em suas séries quaternárias, vemos a ênfase e as aberturas de um trabalho simbólico com a transferência. Seria um possível litoral para o mar de gozo que pode atravessá-lo, segundo a indicação de Soler (2007)? São essas questões em que incorro ao formalizar os impasses e as apostas a respeito dessa experiência clínica com um sujeito psicótico nesse hospital de custódia.

 

Referências bibliográficas

Lacan, J. (1967). Pequeno discurso aos psiquiatras. Inédito. Recuperado em 18 abril, 2019, de em http://www.ecole-lacanienne.net/pastoutlacan60.php        [ Links ]

Lacan, J. (1992). O seminário, livro 8: a transferência (1a ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1960-1961)        [ Links ]

Lacan, J. (1998a). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In J. Lacan. Escritos (1a ed., pp. 807-842). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1960)        [ Links ]

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Schreber, D. P. (1995). Memórias de um doente dos nervos (3a ed.). São Paulo: Paz e Terra. (Trabalho original publicado em 1903)        [ Links ]

Soler, C. (2007). O inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

 

 

Recebido: 19/03/2019
Aprovado: 08/05/2019

 

 

1 Durante minha passagem pelo hospital, enfaticamente na saída, pude marcar minha discordância diante desse volume tão grande de medicações em um diálogo com a diretoria e outros profissionais. Compreendo que tal circulação de dizeres sobre esse tema não é sem consequências, o que se soma aos efeitos desse projeto no hospital em questão.

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