SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 issue39The inconsistency of the other and the impossibility of the discourse universe on the Lacanian field author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.39 Rio de Janeiro Jully/Dec. 2019

 

CONFERÊNCIA BILÍNGUE

 

Conferências de Bernard Nominé

 

 

Bernard Nominé

 

 


RESUMO

Este texto é resultado do trabalho de duas conferências proferidas no Fórum do Campo Lacaniano de Fortaleza, em fevereiro de 2019, na ocasião de abertura dos seminários sobre topologia. No primeiro momento, Bernard Nominé falou sobre o encontro de Lacan com o nó borromeano e suas repercussões na psicanálise, apontando questões teóricas antes mal-entendidas que puderam ser reenlaçadas ao longo de sua prática. Depois, o autor se deteve na relação do nó borromeano com a escrita da clínica, lembrandonos de que nossas categorias de neurose, psicose e perversão muitas vezes não são suficientes para extrair a lógica de determinados casos. Assim, apresenta-se a necessidade de conhecer o manejo da cadeia borromeana, suas principais falhas, consequências e reparações possíveis. Para tanto, é preciso ir adiante naquilo que o autor denomina "solfejo do nó".

Palavras-chave: Jacques Lacan; Nó borromeano; Inconsciente.


ABSTRACT

This text is the result of the work of two conferences given at the Fortaleza Forum of the Lacanian Field in February 2019, during the opening of the seminars about topology. At first, Bernard Nominé spoke about Lacan's encounter with the Borromean knot and its repercussions on psychoanalysis, pointing out previously misunderstood theoretical issues that could be re-enlaced throughout his practice. Then the author focused on the relation between the Borromean knot and the writing of the clinic, reminding us that our categories of neurosis, psychosis and perversion are often not sufficient to extract the logic of certain cases. Thus, it is necessary to know the handling of the Borromean chain, its main failures, consequences and possible repairs. To do so, it is necessary to go further in what the author calls "Borromean knot solfeggio".

Keywords: Jacques Lacan; Borromean knot; Unconscious.


RÉSUMÉ

Ce texte est le résultat du travail de deux conférences dictées au Forum du Champ lacanien de Fortaleza, en février 2019, lors de l'ouverture des séminaires sur la topologie. Au départ, Bernard Nominé nous parle de la rencontre de Lacan avec le nœud borroméen et des répercussions qui en découlent par rapport à la psychanalyse, mettant l'accent sur des questions théoriques jusque-là mal comprises et qui pourraient être ré-entrelacés tout au long de sa pratique. Ensuite, l'auteur examine le lien entre le nœud borroméen et l'écriture de la clinique, nous rappelant que souvent nos catégories de névrose, psychose et perversion ne suffisent pas à extraire la logique de certains cas. Par conséquent, on doit savoir manier la chaîne borroméenne, ses principales failles, ses suites et ses éventuelles réparations. Pour ce faire, il faut aller plus loin dans ce que l'auteur appelle « le solfège des noeuds ».

Mots-clés : Jacques Lacan ; Nœud borroméen ; Inconscient.


RESUMEN

Este texto es el resultado del trabajo de dos conferencias impartidas en el Foro de Campo Lacaniano de Fortaleza, en febrero de 2019, en la ocasión de la apertura de los seminarios de topología. En el primer momento, Bernard Nominé habló sobre el encuentro de Lacan con el nudo borromeo y sus repercusiones en el psicoanálisis, señalando problemas teóricos previamente incomprendidos que pudieran entrelazarse a lo largo de su práctica. Luego, el autor pasó a relacionar el nudo borromeo con la escritura clínica, recordándonos que nuestras categorías de neurosis, psicosis y perversión a menudo no son suficientes para extraer la lógica de algunos casos. Así, se presenta la necesidad de conocer el manejo de la cadena borromea, sus principales problemas, consecuencias y posibles reparaciones. Para hacerlo, es necesario ir más allá en lo que el autor llama "solfeo del nudo borromeo".

Palabras clave: Jacques Lacan; Nudo borromeo; Inconsciente.


 

 

O encontro de Lacan com o nó borromeano1

(16/02/2019)

Tradução de Ana Carolina Borges Leão Martins e Lia Carneiro Silveira

É muito impressionante constatar que, desde muito cedo em seu ensino, a partir de 1953, Lacan magistralmente distinguiu três dimensões pelas quais o ser falante se situa: o Simbólico, o Imaginário e o Real. Quando pensamos bem e relemos seus seminários, no só-depois percebemos que ele tentou articular esses três registros de diferentes modos. O primeiro é, para mim, o esquema ótico, em que ele nos demonstra aquilo que do Real é invisível e substituído por uma imagem real no espelho esférico. Na sequência, essa imagem é traduzida pelo espelho plano, que representa o Outro, portanto o Simbólico.

Outra articulação é o esquema R, que representa a associação do ternário do Imaginário e do Simbólico graças à mediação de um espaço central, que representa o Real. Uma terceira é o grafo, esse trajeto complicado em que ele ensaia representar como um sujeito se vira com o Real, utilizando, para tanto, o instrumento da palavra, que se articula em demanda. Em seguida, para além da demanda, há o espaço do desejo e de tudo aquilo que escapa como Real: o resto da voz, o resto do olhar etc.

Mas será preciso esperar até 1972 para que Lacan encontre uma maneira, a mais simples do mundo, de enodar esses três registros. É a época do seminário ...Ou pior, no qual Lacan nos lança uma fórmula própria para indicar o que é a "carta de amor" (amour), ou, mais exatamente, a "carta de (a) muro" ((a) mur). Uma carta que sublinha que, entre o homem e a mulher, há o muro do amor. A fórmula é a seguinte: "Eu te demando que me recuses aquilo que te ofereço porque não é isso". Lacan está empenhado em tentar escrever, em um grafo complexo, a conjunção improvável entre esses três verbos, quando aprendemos com ele que certo Guilbaud, um de seus matemáticos de referência, tinha acabado de dar um curso sobre a cadeia que compunha o brasão da família Borromeo.

Imediatamente, Lacan se apropria daquilo que lhe parece cair como uma luva, e o nó borromeano não lhe deixará mais. Então, o que ele supôs? Ele supôs que esses três verbos - que não se articulam naturalmente em sua fórmula um tanto especial, mas que bem descrevem a clínica da vida amorosa -, esses três verbos só podem se articular sob a condição de que assim se coloque: “o que eu te demando, não é isso que eu quero; o que eu te ofereço, também não é isso que tu queres; e é, portanto, ao título do 'não é isso' que tu tens todas as razões para recusá-lo a mim”. Se representarmos esses três verbos por rodinhas de barbante, veremos que a frase só faz sentido quando os três verbos estão articulados ao redor de um “não é isso” central, que os sustenta. O famoso “não é isso” representa o lugar do objeto a no centro do nó: “é de um nó de sentido que emerge o objeto a” (Lacan, 1971-1972, p. 64).

 

 

Dessa história da invenção da teoria borromeana de Lacan, retenho três coisas essenciais:

1) Lacan escolheu a cadeia borromeana para representar um dizer, não qualquer dizer, mas um dizer que faz acontecimento, o dizer do amor. O nó representa esse dizer.

2) Nesse dizer, que tem a estrutura da cadeia borromeana, os três anéis se articulam de tal maneira que, se alguém tira um, os outros dois perdem a solidariedade.

3) Mas não podemos esquecer que os três anéis se articulam em torno de um objeto que “não é isso”, e, no entanto, concerne aos três.

Agora, vou compartilhar com vocês aquilo que encontrei trabalhando essa questão da teoria borromeana com Lacan. É uma série de surpresas, mal-entendidos, vislumbres, em suma, coisas que eu acreditava asseguradas se desfazendo, para se reenlaçarem de outra maneira. Acredito que isso se deve à dificuldade de elaboração de uma lógica ternária - o que não diminui o interesse sobre esse momento apaixonante de seu ensino. Ele nos legou uma ferramenta para apoiar nossa reflexão sobre a psicanálise. É uma ferramenta preciosa, mas não um calço, que permitiria a todas as cavilhas entrarem em seus pequenos buracos. Sempre restará alguma coisa que "não é isso" nos empurrando para mais longe, o que nos é indispensável para pensar a psicanálise.

Primeiro ponto: Apresentei em Medelin o nó olímpico, que é o contraponto do nó borromeano, o qual Lacan (1973-1974) nos indicou ser o nó da neurose, no seminário Les non-dupes... (Os não-tolos... / Os Nomes-do-Pai...). Um desses anéis lhes falta, mas vocês não percebem, porque os outros dois estão enlaçados. Como consequência, os neuróticos são "incansáveis" (increvables). Lacan enuncia isso com muita ênfase, mas ele não retorna mais, nem para invalidar, nem para confirmar - o que tem, entretanto, em minha opinião, consequências fundamentais para considerar a dinâmica da transferência e o ato analítico.

É sobre a base do nó olímpico que Lacan faz suas considerações acerca da fobia do pequeno Hans. E, se vocês tiverem oportunidade de estudar o erro do nó em que consiste a realidade psíquica de Joyce, verão que o Real e o Simbólico estão enodados entre si, deixando o Imaginário à deriva. O que contradiz a tese de que, na psicose, os três anéis estão soltos, a menos que se considere que não é certo que Joyce tenha sido louco...

Segundo ponto: Quando se evoca a cadeia borromeana, localiza-se o Real como um de seus elementos, ao lado do Simbólico e do Imaginário. Mas aquilo que Lacan indica progressivamente em sua elaboração é que o Real se localiza pela necessidade do "três". Dito de outro modo, o Real não é apenas a rodinha de barbante do Real; o Real é o nó, e, precisamente, o nó a três. É algo em que Lacan (1973-1974) avança no seminário Les non-dupes..., algo que não mudará mais. Por exemplo, ele dirá, no seminário O sinthoma: "Ao Imaginário e ao Simbólico, às coisas que são muito estrangeiras, o Real traz o elemento que pode mantê-los juntos. É o que considero nada mais como meu sintoma" (Lacan, 1975-1976). E ele esclarece que esse sintoma é uma resposta à invenção do inconsciente freudiano. Aí se toca em um ponto fundamental da invenção lacaniana. Em resposta à invenção freudiana, Lacan isola a categoria do Real, que se define por ficar fora do Imaginário e fora do Simbólico, mas também por ser aquilo que os une e que, portanto, faz-lhes participar de seu caráter de real, uma vez que eles fazem parte da cadeia.

O nó a quatro

Quando Lacan nos conduz a distinguir o anel do Real e o Real do nó, ele introduz uma espécie de quarto elemento implícito. Pois nos é muito cômodo imaginar que o anel do Real e o Real do nó são duas entidades diferentes. Nesse caso, será preciso retornar à lógica de Richard de Saint Victor, em seu De trinitate, para ver como os teólogos escaparam dessa aporia. Mas, eu bem me lembro que Saint Victor recusa o quatro, e se apega ao três. Não é obra do acaso, nem do curso das minhas associações livres, que, na passagem do três ao quatro, eu terminei por fazer referência à função de Deus-pai.

Lacan (1974-1975) nos conduz forçosamente a esse ponto quando observa, em seu seminário RSI, que, em Freud, as três consistências não estão enodadas, e ele precisou inventar um quarto termo: a realidade psíquica, que não é outra coisa senão o complexo de Édipo. Para Lacan, o Édipo não é tão complexo quanto isso que ele preferiu nomear de Nome-do-Pai: "o que quer dizer apenas o Pai como Nome, o Pai como nomeante". E Lacan esclarece: "Quando eu digo o Nome-do-Pai, quer dizer que pode haver aí um número indefinido, como no nó borromeano."

De fato, supondo três anéis - vermelho, amarelo e verde -, é possível for-mar uma cadeia sob a condição de utilizar um quarto anel, que não terá nada de particular além dessa função de reuni-los em cadeia. "Tudo repousa sobre um, que, na qualidade de buraco, comunica sua consistência a todos os outros" (RSI, lição de 11 de março de 1975). Ao final do RSI, Lacan fala do quarto como uma nominação.

 

 

Na conferência na Universidade de Columbia, realizada em dezembro de 1975, Lacan disse o seguinte: "Será preciso se maravilhar com a terceira dimensão antes de fazer uma a mais. Não há nada mais fácil do que fazer uma a mais. Quando os três círculos se vão à deriva, é preciso fazer um quarto."

A particularidade do nó do sinthoma

Esse enodamento aparece nas palavras de Lacan em 13 de maio de 1975, na última parte de seu seminário RSI:

 

 

O que vocês veem desenhado é um círculo que, de algum modo, reduplica o círculo do Real. Lacan propõe considerá-lo como nominação do Real, quer dizer, a angústia. A angústia faz o nó nomeando o Real. Mas vocês podem facilmente reduplicar o círculo do Imaginário, chegando à nominação do Imaginário, que Lacan considera a inibição. A inibição faz o nó nomeando o Imaginário. Por fim, vocês podem reduplicar o anel do Simbólico, obtendo, então, a nominação do Simbólico, que Lacan considera como o sintoma. O sintoma faz o nó nomeando o simbólico. Por que Lacan considera que o quarto anel equivale a uma nominação?

A nominação implica o nome do pai

Será preciso sublinhar que houve uma mudança de perspectiva concernindo ao nome do pai no ensino de Lacan. No começo, o nome do pai é o nome dado pela mãe para responder ao enigma de seu desejo: é o pai nomeado. Em seus últimos seminários, notadamente no RSI, o nome do pai é o nome dado pelo pai ao fruto de sua união com a mãe: é o pai nomeante, e é também, pela mesma ocasião, o pai que diz não. Lacan nos convida a considerar que o quarto nó, reunindo os três outros que estão disjuntos, assegura essa função de nomeação.

Podemos nos perguntar: por quê? De fato, Lacan parte do princípio de que, na cadeia borromeana a três, os três anéis se equivalem completamente, a ponto de os confundirmos, caso não se utilize um artifício como a cor, por exemplo. Não é mais o caso na cadeia a quatro. O quarto nó se amarra necessariamente a um dos outros três e, por essa via, ele o particulariza. É nessa perspectiva que podemos dizer que ele o designa, logo que ele o nomeia.

Se o quarto nó vier em suplência ao anel do Simbólico, se ele vier corrigir um erro de escritura do nó nesse nível, Lacan falará do sintoma. Então, concernente ao sintoma, que seja o nome do pai ou outra coisa, ele assegura, portanto, a função de nominação.

Sobre esse tema, vou falar do caso de uma paciente que reencontrei no contexto de uma apresentação clínica. Trata-se de uma mulher que não se consola do suicídio de seu companheiro, ocorrido há nove anos. Alguma coisa destruiu seu impulso vital a partir daquela data. Ela não fez o luto desse suicídio, pelo qual se sentia culpada. Apesar de tudo, não era completamente melancólica. Ela sabia despistar: "Eu tenho uma máscara." Sentia-se culpada; era seu modo de responder ao enigma do gesto de seu companheiro: "Por que ele fez isso?".

Ela estava falando ao telefone com sua cunhada, queixando-se do alcoolismo de seu marido, e teria dito alguma coisa como: "Ele sempre diz que vai partir, mas não o faz." Logo em seguida, escutou um barulho inabitual, mas não se preocupou muito com isso. Algum tempo mais tarde, ao procurar o marido, ela o encontrou enforcado. Esse instante ficou fixado para sempre em sua memória; ela revia a imagem, que se repetia. Curiosamente, com a pequena quantidade de explicações que ela nos deu, não sabemos bem como esse homem conseguiu se enforcar, mas tive certo cuidado ao lhe perguntar os detalhes. O fato é que ela via a cena mesmo não podendo descrevê-la, não cessava de vê-la no presente.

O que ficamos sabendo é que ela escolheu esse homem - o sétimo de uma família de imigrantes - porque ele parecia gentil e também, sem dúvida, porque representava um traço estrangeiro. Mas descobrimos que ele foi criado por uma mãe solteira, e pudemos supor que o álcool lhe servia para afundar, e também para entreter, sua dor de existir.

Ao longo da entrevista, constatamos que esse luto impossível reenviava a outro luto impossível do lado de seus pais, mais especialmente do lado paterno. Os pais tinham perdido sua filha mais velha em razão de uma doença grave e - tão logo a paciente veio ao mundo, após a morte da irmã mais velha - o pai quis dar a essa segunda filha o nome da primeira, desaparecida. Ela disse que o pai tinha vivido isso em sua própria família, como para se desculpar. Na infância, ela se descreveu tranquila e bem-comportada. Mas, na adolescência, tudo mudou: ela se rebelou contra a autoridade paterna e começou a querer escrever seu nome de outro modo, mudando uma só letra, substituindo um "I" por um "Y". Com essa pequena mudança de letra, apenas perceptível na passagem ao escrito, conseguiu se distinguir da irmã morta e, portanto, corrigir o defeito de simbolização da morte que lhe foi impelido por seu pai.

Mas, com a melancolia e o suicídio de seu companheiro, foi tomada por essa questão que tinha sutilmente elucidado: "A partir de sua morte, tive a impressão de ter me tornado ele. Eu sou uma morta-viva."

Ela - que, sem dúvida, fizera sintoma -, crendo então representar o objeto, a causa do desejo desse homem que tinha dificuldades em viver, de um minuto para outro teve sua certeza entrando em colapso, reenviando-a a uma pergunta sem resposta: "O que eu sou, então, para ele?".

Na sequência da entrevista, foi apresentada a questão do diagnóstico quanto a seu estado depressivo, esse luto que se prolongava. Tratava-se de uma melancolia? Não creio. Alguma coisa a preservava do colapso, talvez a invenção dessa pequena letra que a destacou do destino funesto transmitido pelo pai.

Essa situação clínica um tanto particular foi comentada por Lacan (1960-1961, p. 215) em seu seminário sobre a transferência, em que ele evoca esse tipo de situação como

(...) um ponto de competição entre o luto e a melancolia. Trata-se de certo tipo de desfecho da ordem do suicídio do objeto. Remorso a propósito de um objeto que, de certa forma, entrou no campo do desejo e que, por seu turno, desapareceu. Analisem esses casos, sondem esses remorsos dramáticos nas situações em que eles emergem. Vocês encontrarão a fonte na qual esse objeto, se ele chegou ao ponto de se destruir, não valia a pena ser tomado com tantas precauções. Não valia a pena me voltar a ele a partir de meu verdadeiro desejo.

Vê-se que a fronteira é tênue entre o valor agalmático da criança morta - ser aquela que falta, assegurando-se de um valor fálico - e a nadificação do objeto que ela foi, esse que a reenvia ao suicídio de seu companheiro. Podemos pensar que, ao ter se renomeado, ela mesma, mudando uma letra do nome dado pelo pai, justamente por ser nomeada assim por seu pai, não se lhe estava assegurado o valor fálico, mas isso a reenviava à posição de objeto reduzido ao nada.

Podemos dizer que seu pai lhe transmitiu um erro no nível do simbólico: a morte não foi simbolizada corretamente nessa família. Seu pai a nomeou como a filha mais velha morta. Isso poderia dar à nossa paciente um valor fálico inalterável. Mas, na hipótese em que haveria, pelo menos do lado paterno, uma foraclusão da morte como símbolo, então a nominação do pai só teria o valor de dar à sua segunda filha o estatuto de morta-viva. Sem dúvida porque ela percebeu que essa nominação não valia nada que lhe aconteceu de se autonomear para fazer o nó e, assim, reduplicou a nomeação simbólica falha. Pode-se acrescentar a esse registro do sintoma como nominação o fato de que essa paciente nos confiou que, pouco depois do suicídio de seu companheiro, ela adotou uma cachorrinha e lhe deu um nome feminino, no qual as duas primeiras letras são as letras de seu próprio nome. Essa cachorrinha tem uma função importante, porque esse animal a mantinha no laço social, uma vez que ela trabalhava com higienização e educação de cachorros.

Essa paciente, que herdou uma foraclusão, poderia ter desencadeado uma psicose. Mas não o fez. Toda a discussão do caso se sustentou sobre a questão de saber se esse luto impossível era considerado uma melancolia ou não. Eu não creio. Acho que a solução que ela encontrou para fazer suplência à nominação falha do pai pode ser considerada como seu sintoma.

Vou terminar sobre o caso de Joyce, do qual Lacan se serviu para examinar os diferentes modos de superar um erro do nó.

Lacan elabora duas hipóteses sobre o caso de Joyce.

Quando olhamos de perto o que Lacan disse sobre Joyce, percebemos que ele elaborou duas hipóteses diferentes. Mas não estou certo de que ele mesmo se deu conta disso. A primeira hipótese é a de corrigir, na estrutura de Joyce, um erro do nó que leva o Real e o Simbólico a se enlaçarem, deixando o Imaginário à deriva. Lacan situa o episódio de espancamento, descrito no Retrato do artista quando jovem, como um testemunho da relação de Joyce com seu corpo, não afetado pelos golpes, que deslizavam sobre ele como uma casca.

Quanto ao nó entre o Real e o Simbólico, Lacan o localiza na consequência das famosas epifanias de Joyce. Vocês sabem que são os significantes articulados de modo bizarro que relembram Joyce dos momentos de perplexidade por ele vividos e que se assemelham bastante àquilo que chamamos de "fenômenos elementares", clássicos para a nosografia psiquiátrica, dos pródromos do desencadeamento da psicose. Essas epifanias ligam o reencontro do Real inominável a certos significantes. Epifanias que não têm nenhum sentido para o leitor. Joyce se esforçou, ao longo de toda a sua carreira como escritor, para inserir essas frases em seus textos, para amarrá-las a um sentido. Pode-se considerar que se trata de um enlace particular do Real com o Simbólico.

Nessa hipótese, podemos sublinhar que Joyce herdou um nó bastante olímpico, nó vizinho àquele que Lacan atribuiu ao pequeno Hans, pelo qual o Real é ligado ao Imaginário, deixando o Simbólico à deriva. A fobia vem amarrá-lo aos dois outros.

Antes de examinar a segunda hipótese relativa ao nó de Joyce, será preciso lhes apresentar o nó de trevo. É o primeiro dos nós primordiais. Existem nós primordiais, assim como existem números primordiais.

Para transformar a cadeia borromeana em nó de trevo, será preciso lhe submeter a um pequeno tratamento, que consiste em seccionar os anéis em D, E e F, e fazer três remendos, que colocam em continuidade o anel amarelo com o azul, o azul com o vermelho e o vermelho com o amarelo. Obtemos o primeiro dos nós primordiais, que é o nó de trevo.

A cadeia borromeana a três responde ao mesmo princípio matemático do nó de trevo.

 

 

Se vocês fizerem essa operação sobre três círculos que não são encadeados de modo borromeano, obterão um falso nó de trevo; dito de outro modo, um nó trivial, que se reduz a um anel.

Na segunda hipótese do nó de Joyce, que podemos deduzir de um esquema que Lacan nos dá do falso nó de trevo, podemos supor que, se o centro da cadeia borromeana que caracteriza Joyce é um falso nó de trevo, então é porque nele os três anéis estão disjuntos, o que não é, de forma alguma, a mesma coisa.

Lacan considera, então, muitas maneiras de reparar o erro do falso nó de trevo, seja corrigindo o erro lá onde ele se produz ou mais além. Não obtemos o mesmo resultado.

 

O nó borromeano e a escrita da clínica psicanalítica

(17/02/2019)

O que é que se escreve na experiência analítica? Nada de tão interessante, nada que possa fazer literatura, e, no entanto, alguma coisa deveria poder se inscrever. É isso que nos esforçamos para fazer quando construímos um caso, quando refletimos sobre uma apresentação clínica. Frequentemente, produz-se algo nos momentos de debate entre nós, alguma coisa que, depois de ser construída pouco a pouco, toma de repente a forma de uma evidência. É isso! E esse "é isso!" testemunha que algo acaba de se inscrever da lógica que havíamos identificado, a lógica do trajeto particular de um sujeito.

É preciso dizer que os casos que submetemos à construção ou que apresentamos nas sessões clínicas são casos difíceis. Nossas categorias de neurose, psicose ou perversão não são suficientes para extrair a lógica do caso. Por outro lado, destaco que utilizo cada vez mais frequentemente a lógica borromeana para me orientar nesses casos e proponho, então, a vocês refletirem comigo sobre essa experiência de uma possível escritura borromeana da clínica.

Lacan (1977) disse, em sua Abertura da sessão clínica, que "a clínica é o real enquanto impossível de suportar". É por isso que é legítimo querer escrever, esboçar esse Real. E a ferramenta borromeana parece adequada a essa tarefa, que se situa no limite do possível, já que se trata do Real.

Várias vezes, em seu seminário Os nomes do Pai, Lacan (1973-1974) evoca uma escrita que não se presta à leitura, uma escrita do Real, que é a escrita do nó borromeano. O nó borromeano escreve a articulação entre as três dit-mensions (neologismo que, em francês, une dimensões e moradas do dizer), dit-mensions do espaço habitado pelo ser falante. Falar de dit-mensions implica o dizer, logo implica o acontecimento.

O que o nó opera é isso que ele escreve, é uma amarração. A lógica do enodamento faz com que, se duas dimensões deslizam uma sobre a outra sem parar, seja necessária uma terceira, colocada do modo certo, para deter esse deslizamento infinito ou eterno. O nó põe um ponto de basta nessa eternidade. Alguma coisa para de não se inscrever e faz acontecimento. O nó, como escrita do acontecimento, implica o tempo. Lacan nos sugere que o nó mostra os "solavancos" do tempo. Solavancos entre o Simbólico, em que se inscreve o passado, o futuro que imaginamos e o Real do presente que corre entre nossos dedos. Esse nó sutil permite a cada um se desvencilhar do presente, escrevê-lo na história e, portanto, esquecê-lo. Certos fenômenos clínicos, como a lembrança traumática, podem ser vistos sob o ângulo de um defeito desse nó do tempo.

A memória traumática

Há dois anos, em São Paulo, dei uma conferência sobre a escrita do tempo com a cadeia borromeana, comentando, à minha maneira, uma frase extraída do livro XI das Confissões de Santo Agostinho (2001). Toda a sua argumentação repousa no fato de que o passado e o futuro só existem como representações no discurso do presente. Isso leva Agostinho a esta formulação: "há três tempos: o presente do passado, o presente do presente, o presente do futuro. O presente do passado é a memória, o presente do presente é a intuição direta, o presente do futuro é a expectativa".

Essa sutil estruturação trinária do tempo em Agostinho, combinada às três êx-tases da temporalidade em Heidegger, conduziume a inscrever a estruturação da temporalidade segundo os três registros com os quais nos orientamos na realidade: o Simbólico, já que ele é feito de representações que se organizam em história; o futuro, enquanto tendo existência apenas imaginado, é fácil de se assimilar ao Imaginário; resta-nos admitir que o presente é assimilável ao Real. É admissível, é por isso que ele foge permanentemente, ele só é "cessando de ser", como diria Agostinho.

Então, se o presente é assimilável ao Real, entendemos que o neurótico visa a escapar dele. No entanto, estar aberto ao presente tem suas vantagens; é saber aproveitar da contingência, é saber aproveitar a realidade. Estar na realidade é o que podemos desejar de melhor ao ser falante. É poder abordar o presente do Real com o presente do passado Simbólico - ou seja, com nossas representações, nossas lembranças - e o presente do futuro Imaginário, isto é, nossas expectativas, nossos desejos. Categorizar assim o presente Real, o passado Simbólico e o futuro Imaginário me conduziu a inscrever essa construção trinária do tempo subjetivo com a ajuda dos três círculos de Euler, representando as três categorias do presente, passado e futuro.

 

 

Na interseção entre presente e futuro, Agostinho nos aconselha a inscrever a expectativa, e podemos muito bem inscrever aí, igualmente, o desejo - seja quando esperamos boas coisas, seja na angústia, quando imaginamos o pior.

Resta saber o que poderíamos inscrever na interseção entre o passado e o futuro. A princípio, não conseguimos perceber para além do fato de que o passado e o futuro se articulam em parte graças ao presente do presente.

Mas há exatamente uma articulação que existe entre o passado e o futuro, para além do presente: é a hipótese do futuro anterior, isso que os faz dizer “teria sido”. É uma amarração particularmente importante do tempo, pois é ela que determina a significação, no só depois, de um acontecimento. A noção de “só depois”, sublinhada por Freud, mostra que o discurso pode produzir efeitos de significação que podem modificar as representações do passado, reorganizar as lembranças e, até mesmo, criar traumatismos après-coup.

Ouvi recentemente Boris Cyrulnik - perguntado sobre a memória traumática - dizer esta coisa simples: o traumatizado sofre duas vezes, sofre do golpe e da representação do golpe. Em definitivo, a memória traumática testemunha um passado que não passa, ou seja, um passado que não se esquece, que resta sob esse estatuto particularmente real do presente do presente agostiniano.

Dizer que o passado passa é dizer que, no momento presente, ele não está mais lá; ele é naturalmente esquecido, mesmo que esteja inscrito em algum lugar, e é justamente por estar inscrito em algum lugar, em termos de traços mnêmicos que adquirem sentido, que são inscritos em uma história em que o passado passa e fica em seu lugar.

Em resumo, essa escritura do nó do tempo que lhes proponho é uma escritura que enoda o Real do presente ao Simbólico do passado e ao Imaginário do futuro. É preciso fazer esse nó para se construir uma história e poder se acomodar na realidade presente.

Vocês devem ter observado que, quando tudo vai bem, quando temos um projeto, quando sabemos aonde vamos, quando o passado fica em seu lugar e não nos obriga a remoê-lo, não vemos o tempo passar. Ou seja, nós nos esquecemos de que ele passa. Enquanto, se vocês perguntarem a um melancólico, ele dirá que o tempo se eterniza, que não passa, ele não pode esquecê-lo; o melancólico não pode esquecer seu ser para a morte, ou seja, ele não pensa em outra coisa senão em morrer. Cioran disse muito justamente que, para ele, no auge de seus momentos de melancolia, "o tempo não se rebaixa ao acontecimento". Ao se inscrever no acontecimento, o tempo, como objeto real, é esquecido; ele passa sem que nos apercebamos, sem que nos inquietemos tanto.

Para voltar ao tema da memória traumática, podemos dizer que ela testemunha algo que não passa à escritura do acontecimento. Ou seja, é a repetição de algo que resta real, atrozmente presente. É uma página que não se vira e, se pensarmos bem, é uma página sobre a qual nada pôde ser escrito.

Freud não falava de outra coisa quando tentava compreender a significação dos sonhos traumáticos. Se esse gênero de sonhos se produzem e se repetem, é para reproduzir o trauma e tentar dominá-lo, ou seja, fazê-lo passar a uma escritura simbólica. Podemos conceber a memória-repetição - dito de outra forma, a memória traumática - como enodamento particular do Real do presente ao Simbólico do passado, ou, para ser mais preciso, é como se o Real do presente e o Simbólico do passado estivessem em continuidade, como se passássemos de um ao outro sem corte nem nó.

Essa hipótese se enquadraria bem com o que se chamava na época do Quattrocento: arte dell'oblio. Descrevia-se, assim, um remédio contra a invasão dessa memória repetitiva. Prescrevia-se ao paciente traduzir a imagem da lembrança inoportuna, traçar a imagem sobre um papel, que seria amassado e rasgado, queimado ou jogado na água corrente. Tratava-se, então, de reintroduzir o Imaginário, para permitir outra amarração entre Real e Simbólico, uma passagem pela escritura, para apagar esse fenômeno repetitivo.

Eu pratico há bastante tempo, sem o saber, essa arte do esquecimento na clínica com crianças. Quando elas me falam de pesadelos repetitivos, eu as convido a tentar desenhá-los; isso geralmente faz surgir elementos significantes, nos quais tento fazê-las entender o valor da equivocidade, que geralmente as faz rir e desloca o acento terrificante. Na maior parte do tempo, é bem eficaz, a repetição do pesadelo cessa. Hoje, compreendo o porquê: é que eu lhes proponho a passagem pela imagem para amarrar de outro modo o Real ao Simbólico. Algo se escreve e pode então passar ao esquecimento. Isso cessa porque, enfim, isso se escreveu. Lacan definia assim a categoria modal do possível: o que cessa, de se escrever. É isso que se distingue do necessário que não cessa de se escrever e que se opõe radicalmente ao impossível que não cessa de não se escrever.

Na literatura psiquiátrica, podemos ler o caso de um paciente do neuropsiquiatra russo dr. Alexandre Romanovitch Luria, um paciente que sofre de uma hipertrofia da memória e que tira dela um benefício substancial, ao se apresentar em público como mnemonista profissional. Ele, que se apresentava várias vezes por noite, precisava limpar a memória. Ele adotou uma estratégia: anotava por escrito aquilo que queria esquecer. Quando esse truque não bastava para apagar a lembrança inoportuna, rasgava o papel, queimava ou jogava na água. Vocês observarão que esse paciente utiliza a mesma estratégia proposta pela arte dell'oblio. Mas, ao mesmo tempo, percebemos que a estratégia utiliza a escrita, que normalmente serve para não esquecer algo.

Todo mundo que busca reforçar a memória utiliza-se também de estratégias desse tipo. Os sujeitos que sofrem da síndrome de Asperger, que estão condenados a não esquecer nada, testemunham isso facilmente: trata-se sempre de associar um algarismo a uma cor, uma imagem. O que chama atenção é constatar que o esforço feito para memorizar um significante que consiste em relacioná-lo com uma imagem é da mesma ordem do truque preconizado pela arte dell'oblio para se livrar de um significante inoportuno. O que nos leva a considerar que memória e esquecimento são, sem dúvida, duas faces de um mesmo processo que coloca em jogo a escrita, ou seja, uma forma de prender o significante em uma rede segundo as três coordenadas essenciais da estrutura: o Real, o Simbólico e o Imaginário, o que efetiva a escrita de uma história e faz uma seleção entre o que se passa, o que se passou e o que vai se passar.

O inconsciente freudiano faz precisamente a junção entre memória e esquecimento. O que é recalcado é escrito em algum lugar. E é exatamente porque há um nó de escritura, porque um significante é preso em uma cadeia, que ele é retido cativo e não é mobilizável pela rememoração.

O recalcamento não consiste em um apagamento do traço. Freud (1901/1991) consagrou boa parte de sua Psicopatologia da vida cotidiana ao esquecimento. Como, por exemplo, no célebre caso do nome Signorelli; ele mostra como esse nome resta prisioneiro de uma cadeia significante que o associa a pensamentos que Freud desejaria esquecer, notadamente questões concernentes à sexualidade e à morte. É por uma relação metonímica que o nome de Signorelli é retido fora do alcance da rememoração. Ele é retido em um nó de representações interditadas.

É de propósito que utilizo esse significante retido, pois ele se presta ao equívoco. Ao mesmo tempo, diz que esse significante não está disponível e, ao mesmo tempo, dizer que ele é retido assinala bem que não é apagado por isso, que é preso a uma memória que não é nada mais que o inconsciente. A maioria dos exemplos que Freud (1901/1991) nos dá em sua Psicopatologia da vida cotidiana sobre esse esquecimento de nome mostra que um nome é esquecido porque é retido em um nó de associações. Algumas vezes, ele nos mostra que no lugar do nome esquecido uma imagem se impõe. É o caso também do esquecimento do nome Signorelli.

Freud destaca que, quanto menos consegue se lembrar do nome, mais a figura do pintor se impõe em sua memória. Ele vê o autorretrato do pintor que se representa ele mesmo em um de seus famosos afrescos. Quando seu companheiro de viagem lhe sopra o nome do pintor que faltava, Freud observa que o autorretrato se desvanece. Podemos deduzir daí que a imagem serve para esconder o nome a ser esquecido. Freud destaca também que suas lembranças de infância têm sempre uma característica visual. Isso o levará a estudar a questão da lembrança encobridora, questão particularmente interessante, já que combina um significante esquecido e uma imagem. Ressaltemos simplesmente a função da imagem nesse nó feito pelo inconsciente para reter no esquecimento uma representação censurada pela consciência.

Para esquecer, o inconsciente retém certos significantes em sua escritura. O inconsciente escreve para que o sujeito possa esquecer. Mas há o inesquecível; é toda a questão do traumatismo. Como fazer para passar isso ao inconsciente?

Sobre essa questão, posso evocar uma lembrança, para mim inesquecível, de uma garotinha de 5 ou 6 anos que me apresentaram em Medelin, na Colômbia. Sua psicóloga queria minha opinião sobre a conduta a adotar com essa garotinha que havia sido excluída da escola por problemas de comportamento. Deve-se dizer que seu comportamento era particularmente inadaptado, já que ela propunha fazer felações aos meninos. Ela era tão intratável que a escola não havia conseguido outra saída a não ser excluíla. Deve-se dizer que essa garotinha havia sido criada por uma mãe solteira que se envolvia com a prostituição dentro de casa.

Eu me lembro mais exatamente do que ela pôde me dizer. Ela tinha sobretudo questões simples da vida cotidiana, que denunciavam o fato de sua falta de marcas. O que, por outro lado, eu me lembro perfeitamente é a frase com a qual se terminou nosso encontro: "Eu gostaria que você me ensinasse a escrever."

Nós também devemos aprender a escrever a partir do real da clínica, e vou tentar agora lhes mostrar a ferramenta de que me sirvo para aprender a escrever.

Para poder se servir da escrita borromeana corretamente, é preciso extrair os princípios. O princípio essencial é que cada dit-mensão - que Lacan chama também de consistência - pode servir de maneira a amarrar as outras duas. Nenhuma consistência tem privilégio a esse respeito. No que tange à cadeia borromeana de três, é porque dois não estão enodados que um terceiro, qualquer que seja ele, pode fazer o nó. Quanto à cadeia de quatro, é porque três não estão enodados que um quarto pode fazer o nó.

O problema é que, dado que não há mais que três consistências, o quarto círculo será forçosamente uma duplicação de um dos outros três. Lacan resolve essa dificuldade designando esse quarto termo, seja como nominação - simbólica, imaginária ou real -, seja como sintoma.

Em seu livro Letras do sintoma, Erik Porge (2010) extrai um teorema eficaz ao dizer que cada cadeia com n consistências pode ser considerada como reparação de um nó falho com n-1 consistências. Então, a cadeia com três compensa o fato de que dois não estejam enodados; a cadeia com quatro compensa o fato de que três não estejam enodados; e assim por diante. Esse ponto me parece importante, pois permite ver que o borromeano começa com três e que o nó com quatro é apenas uma questão de versão, ele obedece à mesma lógica.

Um segundo princípio é que, se as três consistências são equivalentes no nível de sua função de amarração, o fato de se servir dos três anéis do brasão Borromeu para designar, distinguindo as três consistências simbólica, imaginária e real, obriga-nos a localizarmos na experiência clínica, o mais justamente possível, o que é do Simbólico, o que é do Imaginário e o que é isso que resta da ordem do Real.

Se, em uma localização clínica tradicional, nós nos esforçamos por localizar - no nível das relações de cada sujeito com a cadeia significante que o constitui - a metáfora paterna ou sua foraclusão, a função fálica, os pontos de basta, a metonímia. Aqui, para poder escrever em termos borromeanos os elementos da história de cada um e os momentos cruciais de seu trajeto em um tratamento analítico, devemos saber categorizá-los, sem preconceito algum, nas três ordens: simbólica, imaginária ou real.

Um terceiro e último princípio que proponho a vocês é que se faz necessário conhecer o manejo da cadeia borromeana. Conhecer suas principais falhas, medir suas consequências e conhecer as reparações possíveis. Entramos aí, um pouco, nisso que eu chamo de "solfejo do nó".

 

 

A cadeia borromeana com três comporta seis pontos de cruzamento. Mas, para cada anel, há quatro pontos de cruzamento com os dois outros. Cada um desses cruzamentos responde a uma alternância por cima e por baixo, e, para respeitar a lógica borromeana, cada um desses anéis deve cruzar os dois outros da mesma maneira - seja sempre por cima, seja sempre por baixo -, senão dois anéis vão se enodar entre eles, o que não pode acontecer.

Já que queremos favorecer um trabalho de oficina, vou lhes propor um pequeno exercício ao qual tenho me dedicado para me localizar nas principais falhas do nó e medir suas consequências.

Observem que há pontos de cruzamento centrais - vou chamá-los A, B, C -, além de cruzamentos periféricos - chamemo-los D, E, F.

Comecemos por estudar os erros na periferia.

Erro no ponto F: O anel vermelho, depois de passar sob o amarelo, passa sob o azul em vez de passar por cima, respeitando a sucessão por baixo/por cima. Se observarem bem, esse erro libera o anel amarelo. Outra consequência: o vermelho e o azul se interpenetram.

 

 

Com os pontos E e D ocorre o mesmo: Um erro no ponto E libera o anel azul e encadeia o vermelho e o amarelo. Um erro no ponto D libera o anel vermelho e encadeia o azul e o amarelo.

Agora, examinemos os erros no centro. É mais fácil de ver.

Erro no ponto A: O anel vermelho, após haver passado sob o amarelo, passa agora sob o azul. Esse erro libera o anel amarelo, e o vermelho e o azul se interpenetram. É o erro que Lacan atribui ao caso de Joyce - essa é ao menos uma versão, pois, se vocês lerem atentamente o seminário sobre o sinthoma, constatarão que Lacan dá, sem necessariamente se dar conta, duas versões distintas do nó falho em Joyce.

Não vou detalhar os erros em B ou C; eles respondem à mesma lógica: liberação de um anel, encadeamento dos dois outros.

 

 

Em seguida, eu me dediquei a estudar as consequências da conjugação de dois erros no centro e na periferia.

Erro entre A e F: Vocês veem logo que os três anéis se liberam.

 

 

Erro em E e C ou em B e D: É a mesma coisa: os três anéis se liberam. A única diferença é a ordem de superposição dos três anéis, mas ela é estritamente sem consequências.

Podemos concluir daí que um anel resta amarrado sob a condição de que os dois cruzamentos nos quais ele não está diretamente implicado não estejam falhos: por exemplo, cruzamento A&F para o anel amarelo, cruzamento B&D para anel vermelho e cruzamento C&E para o anel azul. É um ponto interessante, pois os pontos nevrálgicos são esses três espaços que Lacan define como: gozo fálico - concernente a A&F; sentido - concernente a C&E; e gozo do Outro - concernente a B&D. É a amarração resultante do entrelaçamento desses três gozos que assegura a amarração borromeana.

Há outras combinações de erros possíveis. Elas dizem respeito a nós complexos, que não são borromeanos nem verdadeiramente olímpicos também. Existe uma tabela de nós iniciais, à qual seria necessário se referir, para poder definir esses outros nós, mas é um trabalho enorme, ao qual eu não tive o tempo de me dedicar.

O que destaco é que a escrita de um nó borromeano não falha tão facilmente assim. Eu tive que fazer um esforço para escrever essas falhas. É interessante como experiência, porque isso parece contradizer o que Lacan nos diz, pois ele, em seus primeiros passos na lógica dos nós, passava bastante tempo se enganando em sua escrita. Não sei bem o que tirar dessa constatação, mas é assim.

Como quer que seja, um nó borromeano pode falhar. E isso não é necessariamente um drama; isso pode dar a oportunidade ao sujeito, a quem transmitimos a escrita dessa falha, de encontrar uma solução.

Se evoco uma transmissão possível da falha do nó é porque Lacan a sugere em uma pequena observação sobre a sucessão. Ele desliza da escrita da sucessão dos em cima/embaixo na cadeia borromeana para obter a boa forma, nisso que tratam os notários nos negócios de sucessão, ou seja, a herança. E é lá - na lição do dia 19 de março de 1974 do seminário Les non-dupes errent - que ele fala do "título de nobreza, a antiguidade da família, que é, para o genealogista, sempre encontrável, para qualquer imbecil e, portanto, para qualquer imbecilidade".

É certo que herdamos um título de nobreza que vale como reconhecimento puramente simbólico, mas não há necessidade de ir muito longe na história para demonstrar que um título de nobreza não garante que essa herança não seja acompanhada da transmissão da falha do nó. Os exemplos em que o título de nobreza cobre a falha do nó não são raros.

Depois que Lacan descobriu a cadeia borromeana, a matemática dos nós evoluiu. Sabemos agora escrever um nó com uma fórmula matemática. Para abordar esse sistema de escrita, podemos partir do primeiro dos nós, ou seja, o nó de trevo.

É a propósito desse nó que podemos começar a considerar um solfejo do nó, quer dizer, uma escrita matemática da sucessão de cruzamentos encontrados quando nos imaginamos percorrer o nó. Escolhemos um ponto de partida e vemos que encontramos primeiro um túnel 1, depois uma ponte, um segundo túnel 2, depois uma ponte e, enfim, um terceiro túnel 3, um último ponto e terminamos. Encontramos, então, seis cruzamentos: três túneis e três pontes. Caracterizamos cada túnel pelo ponto que paira sobre ele e o sentido do trajeto sobre esse ponto segundo passemos por esse ponto pela direita ou pela esquerda. Obtemos, assim, a matriz do nó, que servirá de base para a escrita de um polinômio, quer dizer, uma escrita lógica que diz da natureza do nó. E já que o nó é real, temos então uma escrita real. Entendemos por que Lacan cismou em extrair a lógica do nó. É esse o ponto no horizonte a que ele visava ao procurar elaborar uma escrita que dá conta da clínica psicanalítica.

De qualquer forma, o que é importante para nós nesse nó de trevo que está no coração da cadeia borromeana é que ele corresponde ao entrelaçamento dos três tipos de gozo, que Lacan situa no coração da cadeia borromeana. Com cada princípio de gozo puxando de seu lado, o nó se amarra em torno do objeto a, que se encontra no centro, e essa amarração evita que um princípio de gozo se imponha sobre os outros dois.

 

Referências bibliográficas

Freud, S. (1991). Psicopatología de la vida cotidiana (sobre el olvido, los deslices en la habla, el trastrocar las cosas confundido, la supertición y el error). In S. Freud. Obras completas de Sigmund Freud (Vol. VI, pp. 1-284). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1901)

Lacan, J. (1960-1961). Séminaire 8: le transfert. Recuperado em 15 agosto, 2019, de http://staferla.free.fr/S8/S8%20LE%20TRANSFERT.pdf

Lacan, J. (1971-1972). Séminaire 19: ...ou pire. Recuperado em 15 agosto, 2019, de http://staferla.free.fr/S19/S19...OU%20PIRE.pdf

Lacan, J. (1973-1974). Les non-dupes errent. Recuperado em 15 agosto, 2019, de http://staferla.free.fr/S21/S21%20NON-DUPES....pdf

Lacan, J. (1974-1975). R.S.I. Recuperado em 15 agosto, 2019, de http://staferla.free. fr/S22/S22%20R.S.I..pdf

Lacan, J. (1975). Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines. Recuperado em 15 agosto, 2019, de http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/1975-12-01.pdf

Lacan, J. (1975-1976). Le sinthome. Recuperado em 15 agosto, 2019, de http://sta-ferla.free.fr/S23/S23%20LE%20SINTHOME.pdf

Lacan, J. (1977). Ouverture de la section clinique. Recuperado em 15 agosto, 2019, de http://traco-freudiano.org/tra-lacan/abertura-secao-clinica/abertura-clinica.pdf

Porge, E. (2010). Lettres du symptôme: versions de l'identification. Toulouse: Erès.

Santo Agostinho (2001). Confissões. Lisboa: IN-CN. Recuperado em 15 agosto, 2019, de http://www2.uefs.br/filosofia-bv/pdfs/agostinho_01.pdf

 

 

Recebido: 15/01/2020
Aprovado: 15/01/2020

 

 

Tradução de Ana Carolina Borges Leão Martins e Lia Carneiro Silveira
1 Este texto é resultado da junção de duas conferências realizadas por Bernard Nominé na cidade de Fortaleza, nos dias 16 e 17 de fevereiro de 2019, por ocasião da Abertura dos Seminários de 2019 do Fórum do Campo Lacaniano de Fortaleza. Parte da fala foi retirada, a pedido do autor, por mencionar vinhetas clínicas. (N.R.)

Freud, S. (1991). Psicopatología de la vida cotidiana (sobre el olvido, los deslices en la habla, el trastrocar las cosas confundido, la supertición y el error). In S. Freud. Obras completas de Sigmund Freud (Vol. VI, pp. 1-284). Buenos Aires : Amorrortu. (Texte original publié en 1901)        [ Links ]

Lacan, J. (1960-1961). Séminaire 8 : Le Transfert. Retrouvé en 15 août, 2019, de http://staferla.free.fr/S8/S8%20LE%20TRANSFERT.pdf        [ Links ]

Lacan, J. (1971-1972). Séminaire 19 : ...Ou pire. Retrouvé en 15 août, 2019, de http://staferla.free.fr/S19/S19...OU%20PIRE.pdf        [ Links ]

Lacan, J. (1973-1974). Les Non-dupes errent. Retrouvé en 15 août, 2019, de http://staferla.free.fr/S21/S21%20NON-DUPES....pdf        [ Links ]

Lacan, J. (1974-1975). R.S.I. Retrouvé en 15 août, 2019, de http://staferla.free.fr/S22/S22%20R.S.I..pdf        [ Links ]

Lacan, J. (1975). Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines. Retrouvé en 15 août, 2019, de http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/1975-12-01.pdf        [ Links ]

Lacan, J. (1975-1976). Le Ainthome. Retrouvé en 15 août, 2019, de http://staferla.free.fr/S23/S23%20LE%20SINTHOME.pdf        [ Links ]

Lacan, J. (1977). Ouverture de la section clinique. Retrouvé en 15 août, 2019, de http://traco-freudiano.org/tra-lacan/abertura-secao-clinica/abertura-clinica.pdf        [ Links ]

Porge, E. (2010). Lettres du symptôme : versions de l'identification. Toulouse: Erès.         [ Links ]

Santo Agostinho (2001). Confissões. Lisboa : IN-CN. Retrouvé en 15 août, 2019, de http://www2.uefs.br/filosofia-bv/pdfs/agostinho_01.pdf        [ Links ]

Creative Commons License