SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 issue39Bernard Nominé's ConferencesFrom the fall of the father to the rise of the scoundrel author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.39 Rio de Janeiro Jully/Dec. 2019

 

TRABALHO CRÍTICO COM OS CONCEITOS

 

A inconsistência do outro e a impossibilidade de universo do discurso no campo lacaniano

 

The inconsistency of the other and the impossibility of the discourse universe on the Lacanian field

 

La inconsistencia del otro y la imposibilidad del universo del discurso en el campo lacaniano

 

L'inconsistance de l'Autre et l'impossibilité d'univers du discours dans le champ lacanien

 

 

Ingrid Porto de Figueiredo

 

 


RESUMO

Foi com Lacan que a psicanálise deslocou o inconsciente que diz a verdade para a verdade que fala por si mesma. Em seu ensino, a verdade foi situada como causa material diferente da ciência, que a tem como causa formal. Além disso, o lugar da causa é situado a partir sujeito - o sujeito da ciência, criado e foracluído pelo campo científico - em sua articulação com a materialidade do significante, com o objeto α e o campo do gozo, este batizado de campo lacaniano, por ter sido inaugurado a partir dos avanços de Lacan em relação à teoria pulsional freudiana. Então, o inconsciente estruturado como uma linguagem avança para o inconsciente em sua vertente real, trazendo o empreendimento lógico de demonstrar a inconsistência do Outro e a impossibilidade de universo do discurso.

Palavras-chave: Verdade; Causa; Gozo; Inconsistência; Discurso.


ABSTRACT

It was with Lacan that psychoanalysis shifted the unconscious that tells the truth to the truth that speaks for itself. In his teaching, truth was placed as having a material cause, different from science, which has truth as a formal cause. In addition, the place of the cause is situated from the subject - the subject of science, created and foreclosed by the scientific field - in its articulation with the materiality of the signifier, with the object a and the field of enjoyment (jouissance), this baptized as Lacanian field, for being inaugurated from the advances of La-can in relation to the Freudian drive theory. Then the unconscious structured as a language advances to the unconscious in its real strand, bringing the logical undertaking to demonstrate the inconsistency of the Other and the impossibility of the discourse universe.

Keywords: Truth; Cause; Enjoyment; Inconsistency; Discourse.


RESUMEN

Fue con Lacan que el psicoanálisis desplazó el inconsciente que dice la verdad a la verdad que habla por sí misma. En su enseñanza, la verdad fue situada como causa material diferente de la ciencia, que la tiene como causa formal. Además, el lugar de la causa se sitúa a partir del sujeto - el sujeto de la ciencia, creado y foracluido por el campo científico - en su articulación con la materialidad del significante, con el objeto α y el campo del goce, este bautizado de campo lacaniano, por haber sido inaugurado a partir de los avances de Lacan en relación a la teoría pulsional freudiana. Entonces, el inconsciente estructurado como un lenguaje avanza hacia el inconsciente en su vertiente real, trayendo el emprendimiento lógico de demostrar la inconsistencia del Otro y la imposibilidad del universo del discurso.

Palabras clave: Verdad; Causa; Goce; Inconsistencia; Discurso.


RÉSUMÉ

C'est avec Lacan que la psychanalyse déplace l'idée de l'inconscient qui dit la vérité vers la vérité qui parle par soi-même. Dans son enseignement, la vérité a été située comme cause matérielle autre que la science, qui la considère comme cause formelle. D'ailleurs, la place de la cause se situe à partir du sujet - le sujet de la science, créé et forclos par le champ scientifique - dans son articulation avec la matérialité du signifiant, avec l'objet α et le champ de la jouissance, celuici baptisé comme « champ lacanien », pour avoir été inauguré par les avancées de Lacan par rapport à la théorie de la pulsion freudienne. L'inconscient structuré comme un langage avance donc vers l'inconscient dans son incidence réelle, en y apportant une démarche logique qui démontre l'inconsistance de l'Autre et l'impossibilité même d'univers du discours.

Mots-clés : Vérité ; Cause ; Jouissance ; Inconsistance ; Discours.


 

 

Lacan promoveu um deslocamento da técnica psicanalítica - criada por Freud - para a práxis psicanalítica, de modo a nomear o campo no qual opera o psicanalista na experiência da psicanálise, práxis essa que, na condição de direção do tratamento, como abordou no seminário A ética da psicanálise (1959-1960/2008a), é orientada para o real.

Ora, Lacan abordou o real em sua relação com sua invenção, o objeto α, e com o sujeito, o qual é alvo de uma destituição ao final do percurso de uma análise. Esse processo acontece em decorrência do ato para a entrada em análise com o endereçamento do sintoma analítico e também do ato como interpretação que se orienta para o real, a qual comporta uma lógica, nomeada uma lógica da interpretação, o que também levou Lacan ao caminho da formalização da práxis psicanalítica.

É por isso também que Lacan, no seminário De um Outro ao outro (1968-1969/2008b), recorreu à formalização a partir da lógica moderna, por identificar o real na própria estrutura, ou seja, que há uma lógica concernente ao real. É essa estrutura que passa a interessar a Lacan, por comportar um impasse que o autor aborda a partir da relação do par ordenado S1-S2 com o paradoxo de Russell, não com o objetivo de encontrar uma solução para o paradoxo, mas no sentido de mantê-lo no deslocamento entre o primeiro par de significantes que inaugura a cadeia.

Essas articulações entre psicanálise e lógica começaram a trazer para Lacan questões epistemológicas e concernentes à prática clínica; foi a partir da linguagem que ele estabeleceu as relações entre psicanálise e lógica, lembrando que a linguagem é a condição para o inconsciente. Já que a psicanálise opera com o ser falante, seu campo situa-se epistemologicamente a partir da linguagem. Freud inaugurou a psicanálise como um novo método de tratamento e investigação, mas foi Lacan quem estabeleceu as bases para situá-la epistemologicamente, ao apontar o símbolo e a linguagem como o fundamento e o limite para a psicanálise. Lacan, então, recorreu à lógica moderna a partir de Frege e Russell, por exemplo, pois o primeiro apresentou uma escrita ideográfica, para manter a exatidão na dedução, e o segundo demonstrou um paradoxo, o qual foi nomeado paradoxo de Russell, o qual possibilita compreender a inclusão da falta dentro da estrutura e a inconsistência do Outro.

Lacan empreende uma tentativa de formalização de seu campo a partir da lógica - pois estava interessado em um discurso sem fala, ou seja, um discurso que possa ser sustentado como pura escrita lógica e que prescinda do sujeito (D'Agord & Triska, 2009), lógica que Lacan nomeou ciência do real - e da matemática.

No seminário De um Outro ao outro (1968-1969/2008b), Lacan trabalha o par sujeito-saber, de modo a subverter o saber, estabelecer sua relação com o gozo e a verdade e articulá-los topológica e logicamente no campo do Outro. Essa formalização de Lacan diz respeito à construção de um discurso que tenha como consequência a constituição de outras consequências.

Seu retorno a Freud denota a busca de uma linguagem inequívoca e de um discurso que se sustente sozinho, a partir do que nomeia uma redução de material, ou seja, da inserção de uma sintaxe que prescinda da semântica, de modo a operar-se com letras, com uma escrita lógico-matemática.

Além disso, aborda a distinção entre dito e dizer e sua relação com o fato, este que é fundado por um discurso. Há ainda um dizer que se articula com o impossível e com a verdade, de modo a tocar o real. Assim, não há sujeito até que um fato seja dito, mas que não limita o dizer ao dito. E a verdade não é dita pelo sujeito, mas suportada por ele, além do que seu sofrimento, ao tornar-se sintoma, torna-se verdade.

Dessa forma, também se produz um axioma, pois este é fruto de um ato de violência a partir de uma verdade absoluta que funda um campo pelo qual algo pode ser dito.

De acordo com Coelho (2014), Lacan tentará formalizar esses pontos. Extrai a semântica para abordar a questão a partir da sintaxe dentro da formalização lógica e da teoria dos conjuntos. Nas aulas III e IV do seminário De um Outro ao outro (1968-1969/2008b), Lacan formaliza, como tese, que não é possível universalizar o sujeito. E, para provar essa tese, levanta a hipótese de que o saber não é absoluto, que é a negação de "o saber é absoluto". A tradução matemática para o saber é absoluto é Ξ A ∈ A, e para o saber não é absoluto é = A ∉ A. Adiante, ele afirma que A contém os significantes S1, S2, S3, mas todos diferentes de A.

 

 

Destarte, ele faz a seguinte interrogação: é possível que o sujeito possa subsumir-se de tal maneira que não se reúna no universo do discurso e que possa estar certo de estar aí incluído? E a resposta de Lacan será negativa para essa questão. Então, abordará o sujeito como todo significante que não pertence a si mesmo. Ele tomará os significantes de A que não pertencem a si mesmo e usa a letra B para designar esse conjunto:

B = {S ∈ A tais que S ∉ S}

Esse conjunto B seria o próprio S2 como o primeiro par de significantes S1-S2. Assim, B seria o próprio sujeito.

 

 

Vejamos o esquema de Coelho (2014), a partir do paradoxo de Russell: vamos nos perguntar se B pertence a A; e vamos mostrar que não.

Suponhamos que B ∈ A; temos duas possibilidades: ou B ∈ B, o que leva à consequência (dada a definição de B) de que B ∉ B; ou B ∉ B, o que leva à consequência (dada a definição de B) de que B ∈ B. Em ambos os casos, temos uma contradição. Donde nasce a contradição? Da suposição de que B ∈ A. Logo, B não pertence a A. (Coelho, 2014, p. 2)

Sendo B o outro significante, S2, ele não poderia ser um elemento dele mesmo, nem não o ser, o que diz respeito a uma estrutura simbólica, pois, se o conjunto está dentro, é completo, mas inconsistente. Também não sendo um elemento de A, B só pode ser representado do lado de fora, o que diz respeito a uma estrutura real, a qual comporta um furo, pois, se o conjunto fica fora, é incompleto, mas consistente. Já temos uma indicação de uma lógica paraconsistente, da qual pode ocorrer que uma proposição e sua negação sejam ambas verdadeiras, ou seja, duas proposições podem ser contraditórias e verdadeiras, sem pôr em risco a teoria (Ramos, 2015). Lembremos que Costa (2014) adverte que o discurso analítico tem inferências que podem ser formalizadas a partir de lógicas que derroguem leis clássicas, como a lógica paraconsistente.

Dessa hipótese A ∉ A , depreende-se que o saber não é absoluto. Logo, o sujeito não pode ser universalizado, ou seja, B não pertence a A.

Assim, postula que o ponto em que o sujeito aparece é externo ao grande Outro, o que não significa que ele não está incluído no campo do Outro como universo do discurso. Dessa forma, sustentar a inexistência do conjunto universo porque um elemento sempre permanece fora desse conjunto apresenta um parentesco semântico com a inexistência do universo do discurso. No entanto, afirmar que não há universo do discurso não é o mesmo que dizer que não há discurso.

Além disso, Lacan toma o A como idêntico a S → A na condição de par ordenado.

 

 

De acordo com Coelho (2014), Lacan traduz o par ordenado (S1, S2) na forma de conjunto: {{S1}, {S1,S2}}. Como afirma Coelho (2014), "portanto, podemos assumir que ele traduziu S → A por {{S}, A}, e que é esse o conjunto com o qual ele está trabalhando no III". Além disso, como vimos anteriormente, A é idêntico a S → A. Ou seja, A = {{S}, A}. Do que se depreende que o sujeito só se manifesta aí, no saber, sob a forma de uma repetição infinita.

 

 

Por isso, Lacan interessa-se pelo paradoxo de Russell, o que consiste em uma contradição: para a interrogação "o conjunto de todos os conjuntos que não pertencem a si mesmos pertence a si mesmo?", tem-se a resposta "quando pertencer, não pertencerá. E, quando não pertencer, pertencerá!" (Doxiadis & Papadimitriou, 2010, p. 168). Esse paradoxo subverteu a noção de conjunto, como um grupo definido por uma propriedade em comum, e a própria lógica clássica. Tomemos o seguinte exemplo: imagine-se uma cidade que apresenta uma lei rígida sobre a utilização da barba, em que, de acordo com ela, todo homem adulto é obrigado a barbear-se diariamente. No entanto, ele não é obrigado a fazer isso por conta própria e, nesse caso, existe o barbeiro para barbeá-lo. Há a seguinte ordenação da lei: "o barbeiro deverá barbear aqueles que optarem por não barbear a si mesmos". E, então, deparamo-nos com o seguinte questionamento: "e quem vai barbear o barbeiro?", pois ele não tem a opção de fazer a própria barba porque é o barbeiro, o que significa ser barbeado pelo homem que faz a barba só daqueles que optaram por não se barbearem. E ele não pode optar por ir ao barbeiro, pois acabaria fazendo a própria barba. Então, encontramo-nos diante de um paradoxo, o qual interessou a Lacan para abordar a relação entre o par ordenado e a impossibilidade de universo do discurso e a existência de uma inconsistência no campo do grande Outro.

Por conta disso, é necessário perguntar-se se o Outro faz uma classe, um Um. Se A (campo do Outro) é 1 (Um), é preciso que inclua S (significante) como representante do sujeito perante A (campo do Outro). Além disso, sustenta esse A como predicado, como uma tentativa de cópula com o sujeito, e o 1 já não é o do traço unário, senão o Um unificador do campo do Outro. Daí, extrai-se que:

S → A

E aí está situada uma reprodução infinita, que remete a uma coisa sem nome (o qual só pode ser dado de forma arbitrária). Essa coisa, Lacan nomeia, arbitrariamente, justamente pela impossibilidade de nomeá-la, letra α. Esse objeto αremete ao furo na estrutura. Também tem a ver com a tentativa de formalização matemática de Lacan. O que significa isso e quando se produz esse processo que é de escolha?

O jogo em questão diz muito mais respeito não a jocus, como jogo de palavras, mas a ludus, em referência aos jogos mortais, dos gladiadores romanos, e aos jogos de circo. Há nesse jogo algo interrogando o 1 acerca daquilo no que ele se transforma quando o Eu, como objeto α, falta-lhe (ao 1). Então, coloco-me como Eu no ponto em que falto ao 1 para interrogá-lo sobre o resultado dessa falta. Assim, Lacan (1968-1969/2008b) retoma a série decrescente que tem um limite: (1+a).

Essa série tem uma dupla condição: ser de Fibonacci e impor a si mesma, como lei uniforme, o que é produzido pela série de Fibonacci, que é a relação entre o 1 e o α (1+α). Trata-se de uma série que tende ao infinito e que é composta pela soma dos diferentes termos da série, em ordem decrescente. Nesse caso, o α é subtraído de algo, e a série encontra um limite. O objeto α assume o estatuto de função, assim como x.

Na ordem lógica, ocorre um estreitamento, em que se tenta fazer o objeto αaparecer como um resto dentro do todo; no caso, introdução do todo em relação à inconsistência do Outro. Aqui, o pensamento aparece como efeito da função do objeto α. A partir da perda do objeto α, na introdução do jogo do quem perde, ganha, é possível uma identificação do objeto αcom o Outro, de modo a encontrar no α, a essência do Um do pensamento.

Assim, a partir desse ponto a que chegamos, o objeto α merece ser chamado de causa, uma causa privilegiada, não qualquer uma: a-causa. Como assinala Gianesi (2011), Lacan avança da teorização do objeto αcomo causa de desejo para sua formalização como objeto mais-de-gozar que busca a reiteração da perda de gozo, em que a materialidade sofre uma mutação para o gozo, o que não significa que ele o abandona como causa de desejo. O objeto α como causa de desejo tem uma anterioridade lógica, demarcada pela ação do significante, além de uma torção temporal a partir de um a posteriori que sustenta seu lugar como causa. Constitui-se em um objeto metonímico e inatingível, de modo que o que se revela na análise é sua função de causa, a qual se encontra encoberta pela fantasia fundamental. Assim, apresenta-se em uma exclusão interna em relação ao sujeito, o que já havia sido apontado quando Lacan abordou a Coisa freudiana em articulação com Das Ding, em seu seminário A ética da psicanálise (1959-1960/2008a), que mantém parentesco com o real.

Assim, extrai-se a seguinte interrogação: qual seria a sequência lógica, interrogada da maneira como Lacan a examinou no nível das diferenças progressivas? O correlato de 1+a é o menos-infinito (menos-infinito -∞), o que nos permite entrever que o que falta ao desejo é o infinito como infinitização da demanda, voltas infinitas da demanda, desejo de desejo do Outro e o desejo enquanto indestrutível .

Adiante nesse seminário, Lacan discute o que o zero representa em uma análise e o que se origina desse furo.

Na última parte da lição XVI do seminário A ética da psicanálise (19591960/2008a), Lacan propõe-se falar da neurose e da clínica da perversão e retomar a identificação em Freud, a partir do texto Observações sobre o relatório de Daniel Lagache, de 1960, presente em seus Escritos, e o mais-de-gozar.

A confrontação do neurótico com os problemas do narcisismo ocorre por conta de seu desejo de ser o complemento no campo do Outro, ou produzir o Um no campo do Outro. A idealização aqui se faz extremamente presente e tem relação com o narcisismo primário, este que é do nível de uma imaginação. Esse efeito imagético, a posteriori, ocorre com o neurótico, ao tentar situar-se no campo do Outro.

No neurótico, está em jogo um lugar de complemento de Um no campo do Outro - no qual se situa a pulsão oral, por exemplo -, e não um lugar de suplemento, como no caso do perverso.

Nem mesmo a criança, no período gestacional, forma um só corpo com a mãe. Ambas são separadas pela placenta; já há uma separação de saída. Lacan relaciona a placenta com os conflitos presentes no período bizantino, atrelados à mistura de sangues e incompatibilidade entre grupos, o que nos diz dos processos constitutivos de alienação e separação ao campo do grande Outro.

Na pulsão, é impossível eliminar o objeto terceiro, o qual Lacan chamou de "placa". Suas versões podem estar também nos objetos que penduramos na pare-de. E aí está a questão da experiência do neurótico: recuperar a experiência mítica de unidade primitiva. Trata-se da impossibilidade de reinserir o objeto α no plano imaginário, constituindo conjunção com a imagem narcísica.

Nenhuma representação sustenta a presença do representante da representação em jogo nesse processo. Não há equivalência entre o representante e a representação. Tudo será reordenado na terceira linha do grafo do desejo, a linha da retroação simbólica, que, por uma concatenação simbólica, relaciona-se com o imaginário. Nessa terceira linha, já no grafo completo, serão encontrados: o eu, o desejo, a fantasia e a imagem especular. Nessa linha, é inscrita a ilusão retroativa do narcisismo primário, e, justamente, por isso, o sujeito neurótico está fadado ao fracasso da sublimação, exatamente por essa retroação simbólica em direção à ilusão do retorno ao narcisismo primário.

O neurótico busca igualar-se à pergunta formulada por ele. Interroga a verdade do saber, justamente porque o saber está incorporado ao gozo, já que extrai sua condição de origem a partir de sua dependência do gozo. Além disso, o fato de o discurso do neurótico ser verídico não exclui a dependência do saber ao gozo, ou seja, entre saber e verdade está a barreira do gozo.

Gianesi (2011) traz a abordagem de Lacan da fantasia a partir do grafo do desejo. Há duas respostas diante do desejo do Outro, a partir da fantasia no grafo, que são divergentes: uma se endereça ao S(Ⱥ), que concebe a própria estrutura e diz respeito à inconsistência do Outro, em que se responde com a recusa, com um "não que dá a forma da falta de respostas" (Gianesi, 2011, p. 197); e outra dirige-se ao s (A), que corresponde à significação alienada do sintoma. Esse sintoma é a sede do gozo, de modo que o sujeito inscreve sua relação com o gozo mediante o mais-de-gozar. Aí estaria situada a fantasia como causa do sintoma.

Desta feita, Lacan interroga: por que o neurótico não traduziria uma forma de aporia (paradoxo, contradição) - como o exemplo do paradoxo de Russell, do catálogo de todos os catálogos que não contêm a si mesmos - por meio de uma posição diante dos impasses da lei do Outro, no nível do sexual?

No nível da natureza, estaria a solução para os impasses da lei do Outro. Lacan situa a identificação com o Pai simbólico - que é uma função mítica - como a única que satisfaz a posição do gozo viril na conjunção sexual (a partir da natureza). Ele articula essa identificação com o ser o mestre/senhor. Por exemplo, o obsessivo recusa-se a ser o mestre, porque está interessado na articulação do saber com o gozo, ao defrontar-se com a verdade do saber. Desse saber, o obsessivo tem o objeto α. Também estabelece uma relação com um Outro inteiro por meio de um tratado que o levará a um possível acesso ao gozo. Esse gozo apenas lhe é autorizado a partir de um pagamento, como no tonel das Danaides, ou seja, o obsessivo acessa o gozo por meio de uma dívida impagável, o que se demonstra pelo desejo impossível do obsessivo. A histérica, por sua vez, recusa-se ser a mulher por colocar-se na posição de sujeito de desejo (a histérica banca o homem), de modo a construir uma aporia (contradição), pois o ser a mulher é oferecido a ela, na conjunção sexual, como objeto de desejo. Ela atinge o gozo absoluto quando recusa qualquer outro gozo, o que recai no nível da suficiência ou da insuficiência. O neurótico, a partir desses arranjos, interroga a fronteira entre saber, gozo e verdade, o que, em "Lituraterra" (1971/2003), Lacan sustentará que essa fronteira, na realidade, é o litoral entre o saber e o gozo, como função da letra. Pacheco (2014) nos traz a valorosa articulação entre a verdade e a letra, no limite entre o saber e o gozo, a partir da formulação de Lacan, a qual traz a letra como o que faz litoral entre o simbólico e o real.

O histérico recorre a esta operação: subtrai o α do 1 absoluto do Outro, ao interrogá-lo se esse Outro entregará esse 1. Ao interrogar o Outro a partir do α, o sujeito descobre que é igual a esse a, o que traduz a hiância da castração realizada e a castração no nível do Outro. O impasse do famiele imposto pela histérica e o pensamento obsessivo - como nos rituais religiosos - dizem do encontro com a castração e, no nível da enunciação, sobre a relação entre saber e gozo. O saber sobre a relação sexual é um paradoxo e leva a um impasse, mas também aponta para um limite. Na aposta de Pascal, por exemplo, é o Outro que é interrogado, no nível do par ou ímpar, do é ou não é, interrogação essa que passa pela questão do saber em sua articulação com o gozo, não sem consequência para a questão da verdade.

Dessa maneira, o Outro tem uma falha lógica que se articula com o furo [trou] na topologia das superfícies. Resulta em um limite imposto, como vimos, pelo próprio significante e que está relacionado com o objeto αno campo do Outro. Além disso, o saber, por não ser absoluto, denota um ponto faltante do universo do discurso, relacionado com o saber perdido [Urverdrängung]. Esse furo está relacionado com o lugar vazado da verdade.

A busca de uma verdade do inconsciente como uma teoria psicanalítica verdadeira encontra seu limite no furo e no real da estrutura demonstrado pela formalização da impossibilidade de universo do discurso e da inconsistência do Outro. Essa verdade seria justamente o ponto de criação de um saber, correlato da falha, que origina o desejo de saber.

Destarte, no seminário De um Outro ao outro (1968-1969/2008b), o autor aborda a inconsistência no campo do grande Outro, de modo a apontar que a estrutura é real, crítica formalizada em torno do estruturalismo, conforme comentamos anteriormente, já introduzindo o campo do real - o qual não é o mesmo real do campo da ciência - e do gozo. O mais-de-gozar - outra maneira de abordar o objeto αem sua vertente positiva - está relacionado com a mais-valia em Marx, o que leva alguns autores, como Pierre Bruno (2011), a afirmar que Lacan é um passador de Marx. Lacan, além de utilizar-se da teoria marxiana, também recorre à matemática e à lógica para essa formalização, da qual também depreende que não há universo do discurso, o que culminará na escrita dos quatro discursos nos dois anos seguintes de seu ensino no seminário O avesso da psicanálise (1969-1970/1992). Nesse momento, Lacan abordará melhor as relações entre saber, verdade e gozo, ao formalizar a teoria dos quatro discursos, com seus lugares e elementos, com seu objetivo e interesse por um discurso sem palavras, ou seja, pela escrita da lógica formal. No seminário O avesso da psicanálise (1969-1970/1992), aponta a relação entre saber, verdade e gozo, e sustenta que a verdade tem estrutura de ficção, pois guarda uma inacessibilidade, o que formaliza por meio do lugar da verdade no matema dos discursos.

 

Referências bibliográficas

Bruno, P. (2011). Lacan, pasador de Marx: la invención del síntoma. Barcelona: Ediciones S&P.         [ Links ]

Coelho, S. P. (2014). Anotações da aula sobre o seminário, livro 16: De um Outro ao outro de Jacques Lacan, capítulo III: A topologia do outro e capítulo IV: O fato e o dito. Trabalho inédito.         [ Links ]

Costa, N. (2014). Psicanálise & lógica. Entrevista histórica com Newton C. A. da Costa falando sobre a lógica paraconsistente e sua contribuição na teoria lacaniana. Leitura Flutuante, 6(2),51-77. Recuperado de https://revistas.pucsp.br/index.php/leituraflutuante/article/view/20671/16186        [ Links ]

D'Agord, M. R. L. & Triska, V. H. C. (2009). A topológica da verdade. aSEPHallus, 7(4),12-22. Recuperado de http://www.isepol.com/asephallus/numero_07/revista_7.pdf        [ Links ]

Doxiadis, A. & Papadimitriou, C. (2010). Logicomix: uma jornada épica em busca da verdade. São Paulo: WMF Martins Fontes.         [ Links ]

Gianesi, A. P. L. (2011). Causalidade e desencadeamento na clínica psicanalítica. São Paulo: Annablume.         [ Links ]

Lacan, J. (1992). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Trabalho original publicado em 1969-1970)        [ Links ]

Lacan, J. (1998). A ciência e a verdade. In J. Lacan, Escritos. (Vera Ribeiro, trad.) (pp. 869-892). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

Lacan, J. (2003). Lituraterra. In J. Lacan. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1971)        [ Links ]

Lacan, J. (2008a). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-1960)        [ Links ]

Lacan, J. (2008b). O seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1968-1969)        [ Links ]

Pacheco, A. L. P. (2014). La letra: de la carta al nudo. Medellín: Asociación Foro del Campo Lacaniano de Medellín.         [ Links ]

Ramos, C. (2015). Paraconsistência e paracompletude nas fórmulas da sexuação. Trabalho apresentado na Jornada de Encerramento de Formações Clínicas do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. Inédito.         [ Links ]

 

 

Recebido: 01/11/2019
Aprovado: 07/04/2020

 

 

1 As Figuras 1, 2, 3 e 4 foram retiradas do trabalho de Coelho (2014).

Creative Commons License