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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.39 Rio de Janeiro Jully/Dec. 2019

 

TRABALHO CRÍTICO COM OS CONCEITOS

 

Da queda do pai à ascensão do canalha

 

From the fall of the father to the rise of the scoundrel

 

De la caída del padre al ascenso del canalla

 

De la chute du père à l'ascension de la canaille

 

 

Allisson Vasconselos Oliveira; Marina del Papa

 

 


RESUMO

A partir de um episódio da série de televisão Black mirror, analisa-se o fenômeno da ascensão do canalha na contemporaneidade, figura que, como comprova a experiência, aproveita-se do desamparo generalizado provocado pela queda do pai para impor-se ao sujeito como Outro absoluto, capitalizando suas reivindicações. A queda do pai indica a perda do balizamento fálico do sujeito na cultura, em razão da qual o sujeito não consegue encontrar mais nenhum ponto de ancoragem, sentindo-se à deriva no mundo. O canalha aparece não só como o substituto do pai, que pode servir-lhe de referência, mas também como sua versão desmedida, tributária do emburrecimento e da subordinação das massas para exercer sua dominação.

Palavras-chave: Canalhice; Função paterna; Queda do pai; Teoria dos quatro discursos.


ABSTRACT

From an episode of the television series Black mirror, we analyze the contemporary phenomenon of the rise of the scoundrel, a figure that, as experience shows, takes advantage of the widespread helplessness caused by the fall of the father to impose himself on the subject as an absolute Other, capitalizing on their claims. The fall of the father indicates the loss of the subject's phallic mark in the culture, due to which the subject can no longer locate any anchor point, feeling adrift in the world. The scoundrel appears not only as a substitute for the father, who may serve him as a reference, but also as his undue version, dependent on the stupidity and subordination of the masses to exercise his domination.

Keywords: Scoundrel; Paternal function; Fall of the father; Theory of the four discourses.


RESUMEN

A partir de un episodio de la serie de televisión Black mirror, analizamos el fenómeno del ascenso del canalla en los tiempos contemporáneos, una figura que, como lo demuestra la experiencia, se aprovecha de la impotencia generalizada causada por la caída del padre para imponerse al sujeto como un Otro absoluto, capitalizando sus reclamos. La caída del padre indica la pérdida del marco fálico del sujeto en la cultura, por el cual el sujeto ya no puede ubicar ningún punto de anclaje, sintiéndose a la deriva en el mundo. El canalla aparece no solo como el sustituto del padre, que puede servirle como referencia, sino también como su versión desmesurada, que depende de la estupidez y subordinación de las masas para ejercer su dominio.

Palabras clave: Canallada; Función paterna; Caída del padre; Teoría de los cuatro discursos.


RÉSUMÉ

À partir d'un épisode de la série télévisée Black mirror, on se propose d'analyser le phénomène de l'ascension dans la contemporanéité de la canaille, figure qui, comme l'expérience le montre, tire parti de la détresse généralisée provoquée par la chute du père pour s'imposer au sujet en tant qu'Autre absolu et en capitalisant sur leurs revendications. La chute du père indique la perte des balises phalliques du sujet dans la culture, en raison de laquelle le sujet ne peut plus repérer aucun point d'ancrage, et se sent à la dérive dans le monde. La canaille apparaît non seulement comme le substitut du père, qui peut lui servir de repère, mais aussi comme sa version démesurée, tributaire de l'abrutissement et de la subordination des masses, pour y exercer sa maîtrise.

Mots-clés : Canaille ; Fonction paternelle ; Chute du père ; Théorie des quatre discours.


 

 

A figura paterna é, segundo a psicanálise, crucial para a civilização. Ela coloca-se como um ponto de interseção entre o eu e o outro, servindo de medida para o sujeito em sua relação com a cultura. É por sua incidência que o sujeito cede aos instintos contrários à cultura, e é por meio dela que a cultura recebe o sujeito como seu mantenedor e transmissor (Freud, 1914/2010a, 1921/2011, 1930/2010b).

Ainda que tenha esses encargos, o pai não pode garantir que eles obtenham êxito. Conforme Lacan, citado por Rosa (2008, p. 440), "(...) o pai tem que ser o autor da Lei, e, todavia, não mais que qualquer outro, ele não pode garanti-la, pois ele também deve sofrer a barra, que faz dele (...) um pai castrado". Ou seja, ainda que o pai desempenhe a função paterna correspondente àqueles encargos, ele, assim como qualquer outro, é um sujeito, que, se é legitimado como tal, como pai, é porque há quem lhe atribua esse papel.

Nesse seguimento, a figura do pai pode ser enquadrada no discurso do mestre, que é também o discurso da civilização. Em O avesso da psicanálise, Lacan (1969-1970/1992) descreve tal discurso como aquele em que a mestria (S1) está no lugar da dominante, ocultando como verdade um sujeito castrado ($). A mestria dirige-se ao escravo que detém o saber (S2), do qual ela extrai seu sustento, o mais-de-gozar (a). O pai, no discurso do mestre, localiza-se como seu agente. Seguindo a indicação lacaniana supracitada, ele é um sujeito como qualquer outro, ou seja, sua verdade oculta sob a barra é o $, o sujeito dividido. O outro do pai é o filho (S2), que produz o que o legitima como uma autoridade para ele: o respeito, a concessão e a renúncia ao incesto e ao projeto parricida.

O sujeito não precisa da figura paterna apenas na infância. Embora atualizado em outras entidades, como o presidente da República, o líder religioso, o empregador etc., o pai faz-se presente durante toda a trajetória do homem na Terra. Freud (1930/2010b), em "O mal-estar na civilização", denuncia essa posição de dependência paterna ao falar das necessidades religiosas:

Quanto às necessidades religiosas, pareceme irrefutável a sua derivação do desamparo infantil e da nostalgia do pai despertada por ele, tanto mais que este sentimento não se prolonga simplesmente desde a época infantil, mas é duradouramente conservado pelo medo ante o superior poder do destino. Eu não saberia indicar uma necessidade vinda da infância que seja tão forte quanto a de proteção paterna. (Freud, 1930/2010b, p. 25)

Podemos dizer que a dependência dos "filhos" ao pai está referida no discurso da histérica, cujo agente é o sujeito dividido ($). Trata-se de um sujeito que, por ser não-todo, ampara-se no pai e em suas versões (S1), demandando um saber (S2) que o apazigue. O que se esconde sob o $ é a falta e, portanto, o consequente desejo de que ela encontre alguma satisfação (a), sua verdade.

No ensino lacaniano, encontramos indícios de um declínio da figura paterna. Conforme Rosa (2008), Lacan menciona a queda do pai em três momentos de seu percurso: o primeiro, em 1938, quando se refere ao declínio da imago paterna, embora não deixe de situar o pai como a encarnação da Lei; o segundo, na década de 1950, quando trata da inoperância da função paterna, cujo efeito é a feminização dos homens, em razão da identificação com a mãe; e o último, como uma consequência do segundo, entre 1969 e 1975, em que o pai é pensado como um significante entre tantos outros, o qual o sujeito pode tomar ou não como baliza.

Lacan (1938/2008), em Os complexos familiares na formação do indivíduo, já antecipa as consequências desse declínio da imago paterna. Ele vislumbra, ainda na primeira metade do século XX, a expansão do campo do gozo que presenciamos hoje, que serviria ao sujeito como medida substituta à do ideal paterno. Lacadée (2007/2011) lembra que a substituição do ideal pelo gozo implica um conjunto de fenômenos que testemunham o desmembramento do laço social, cujos efeitos são as sensações de desamparo e impotência.

A queda do pai, conjugada à dependência paterna que se mantém ativa, dá margem ao canalha. A canalhice, segundo Lacan (1969-1970/1992, p. 57), "(...) repousa (...) em querer ser o Outro - refiro-me ao grande Outro - de alguém, ali onde se delineiam as figuras em que seu desejo será captado". Para Santos (2018, p. 249), "(...) o canalha se coloca no lugar de grande Outro para mandar e legislar sobre o desejo do Outro", movimento esse que suprime a alteridade e leva à uniformidade. Para obter êxito em seu empreendimento, esse sujeito vale-se da besteira, que, de acordo com Teixeira (2002, p. 280), é concebida por Lacan como "(...) corolário da posição canalha, senão o fator pelo qual se estrutura a estabilidade mesma do laço social". Para pensar o canalha e a besteira que ele engendra, tomemos como exemplo o urso digital Waldo, personagem central no terceiro episódio da segunda temporada de Black mirror (Brooker & Higgins, 2013).

Em The Waldo moment, o urso humorista encarna a besteira, que "(...) corresponde, de certa maneira, ao que Lacan chamava de palavra vazia num determinado período do seu ensinamento. Ela é a ideia reificada, tornada matéria, que se deposita no espírito humano e nele permanece por efeito de inércia" (Teixeira, 2002, p. 281). Waldo fascina e seduz a população por seu discurso raso, porém inflamado, contra os candidatos nas eleições suplementares da fictícia Stentonford. Seu discurso comporta a insatisfação e a descrença popular com relação à política, mesmo não tendo nenhuma profundidade crítica.

Em determinado momento do episódio, Waldo é lançado como candidato, em razão de sua alta popularidade, e é acolhido de braços abertos pelo povo, que está cansado do que no Brasil costuma-se chamar de "velha política". Como assinala Teixeira (2002, p. 281), na besteira "não há reflexão, mas somente um envio da linguagem sobre si mesma, ficando elidida, de sua presença, toda referência ao sujeito da enunciação". Por trás de Waldo, existem pessoas interessadas em assumir o poder, em lançar-se como Outro, as quais não se revelam à audiência. É interessante ver que ninguém levanta nenhum questionamento sobre isso. A besteira tem esta qualidade: leva as massas ao emburrecimento, já que elas adotam uma posição passiva, de receptora e reprodutora do que lhes é transmitido.

É por meio desse discurso emburrecedor que o canalha ascende. Ele precisa de um tolo que siga suas ordens, de alguém que o faça sem levantar dúvidas de sua capacidade de governar (Santos, 2018). É por isso que o canalha precisa legislar sobre o desejo do Outro: precisa homogeneizá-lo, excluindo toda e qualquer diferença de pensamento, que poderia abrir margem para um questionamento sobre sua competência. E é graças à besteira que ele cumpre seu propósito. Como esclarece Teixeira:

Se de fato toda unanimidade é burra, conforme advertia Nelson Rodrigues, é porque a besteira se nutre justamente da adesão coletiva que nos compele a abdicar da decisão singular para permanecer na média do consentimento público. Por ela se assegura o campo da mediocridade consentida em que qualquer exceção deve se apagar. Sua expressão é o próprio "a gente" onipresente, em cuja boca anônima circula a ideia recebida de todos, por todos e para todos, num movimento em que todos repetem indefinidamente o que todos dizem. E uma vez que o "a gente" fornece previamente o julgamento e a decisão, não resta nenhuma responsabilidade para o sujeito. (Teixeira, 2002, p. 282)

Como em The Waldo moment, em que Waldo ganha notoriedade em meio à desilusão política experimentada pela sociedade, o canalha sempre aparece em situações de desamparo, em que o sujeito encontra-se frágil e aberto às promessas de salvação de um outro que se coloca não como um pai castrado, mas como um pai castrador, que afirma deter o saber do que é melhor para seus "filhos". Se ele obtém sucesso é porque extrai do sujeito a angústia e a insatisfação, mas, com elas, também seu desejo e sua singularidade, todos característicos da condição humana. É esse o preço a ser pago nesse acordo que Birman (1999, p. 16) chama de pacto masoquista: "goze com o meu corpo como queira e me submeta, mas não me deixe sozinho com o meu desamparo".

Pelo que levantamos até aqui, talvez possamos pensar a canalhice dentro da estrutura do discurso universitário. Nesse discurso, "o S2 tem aí o lugar dominante na medida em que foi no lugar da ordem, do mandamento, no lugar primeiramente ocupado pelo mestre que surgiu o saber" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 97).

O agente é S2, o saber que se sustenta na mestria (S1), portanto um saber que é, aparentemente, completo, sem furos. É um saber atraente ao sujeito, dividido por efeito da linguagem. Assim é a besteira, como acabamos de demonstrar.

Porém, o sujeito que se submete a esse saber perde suas qualidades, porque ele não admite contestação, diferença, oposição, haja vista o risco de que isso possa esfacelá-lo. Não à toa, no discurso universitário, o outro é identificado com o objeto a, aquele que é explorado e, por conseguinte, perde suas qualidades. Como situa Lacan (1969-1970/1992, p. 139), "na articulação do discurso universitário que esboço, o a está no lugar de quê? No lugar, digamos, do explorado pelo discurso universitário". O que se encontra na casa da produção, que também é a casa da perda, é justamente o sujeito ($), a singularidade que se vai em nome da uniformidade requerida pelo canalha para governar.

Waldo, ainda que seja uma figura fictícia, é a representação de diversas personalidades políticas e religiosas dos últimos cem anos. Adolf Hitler, Josef Stalin, Charles Manson, Jim Jones, Donald Trump e, em nosso país, mais recentemente, Jair Bolsonaro são verdadeiros porta-vozes da besteira, despontando como verdadeiros canalhas. São figuras que se aproveitaram (e algumas delas ainda se aproveitam) da vulnerabilidade da população, em razão de guerras e crises, para se estabelecerem como Outros.

A história, no entanto, mostra que os canalhas não se sustentam por muito tempo. Provavelmente, porque deve ser muito difícil manter o semblante de tudo saber. O discurso universitário, mantido pelos títulos e pela burocracia, vira e mexe é colocado à prova. Há sempre um estudante não astudado que questiona esse saber mantido pela burocracia. Da mesma forma, há sempre um liderado não totalmente alienado capaz de ver na canalhice sua verdade, isto é, seu desejo único de dominar.

 

Referências bibliográficas

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Santos, M. J. M. (2018). Sobre o possível parentesco entre o canalha e o psicopata. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, Rio de Janeiro, 21(2),244-254.         [ Links ]

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Recebido: 31/10/2020
Aprovado: 02/03/2020

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