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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.39 Rio de Janeiro Jully/Dec. 2019

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO

 

Possibilidade da psicanálise no serviço de plantão psicológico: um lugar de retificação subjetiva

 

Possibility of psychoanalysis in psychological emergency attendance service: a place of subjective rectification

 

Posibilidad de psicoanálisis en la atención psicológica de emergencia: un lugar de rectificación subjetiva

 

Possibilité de psychanalyse dans les services d'urgence psychologique : un lieu de rectification subjective

 

 

Maria Lúcia Mantovanelli Ortolan; Maíra Bonafé Sei; Paulo Victor Bezerra; Kawane Chudis Victrio

 

 


RESUMO

O plantão psicológico é um espaço de escuta e acolhimento da experiência do sujeito, a fim de clarificar sua demanda. Almeja-se aqui refletir sobre essa modalidade. A aproximação entre o plantão psicológico - uma modalidade de atendimento psicológico da pós-modernidade - e a psicanálise nas instituições interroga o atendimento de plantão como um dos tempos do tratamento psicanalítico: a retificação subjetiva. A terapêutica em plantão, com o auxílio de alguns dispositivos analíticos, tais como o convite à associação livre, pode possibilitar ao sujeito, para além de se queixar, também demandar, clarificando uma demanda de análise. Assim, o plantão apresenta-se como uma possibilidade de porta de entrada para uma análise psicanalítica.

Palavras-chave: Plantão psicológico; Psicanálise; Escuta psicanalítica.


ABSTRACT

The psychological emergency attendance is a space for listening and welcoming the subject's experience in order to clarify their demand. The aim here is to reflect on this modality. The approximation between psychological emergency - a modality of psychological emergency attendance of the postmodernity - and psychoanalysis in the institutions questions the attendance of emergency as one of the times of the psychoanalytic treatment: the subjective rectification. The therapist on the emergency duty, with the help of some analytical devices, such as the invitation to free association, can enable the subject, beyond complaining, to also demand, clarifying a demand for analysis. Thus, the psychological emergency becomes a possibility of a gateway to a psychoanalytic analysis.

Keywords: Psychological emergency attendance; Psychoanalysis; Psychoanalytic listening.


RESUMEN

La atención psicológica de emergencia es un espacio de escucha y acogida a la experiencia del sujeto a fin de clarificar la demanda de éste. Se busca aquí reflexionar sobre esta modalidad. La aproximación entre la atención psicológica - una modalidad de la posmodernidad - y el psicoanálisis en las instituciones interroga la atención de turno como uno de los tiempos del tratamiento psicoanalítico: la rectificación subjetiva. La terapéutica de la atención psicológica de emergencia, con el auxilio de algunos dispositivos analíticos, como el recurso a la asociación libre, puede posibilitar al sujeto, además de quejarse, a también demandar, aclarando una demanda de análisis. De ese modo, la atención de emergencia se convierte en posibilidad de puerta de entrada para un análisis psicoanalítico.

Palabras clave: Atención psicológica de emergencia; Psicoanálisis; Escucha psicoanalítica.


RÉSUMÉ

Les services d'urgence psychologique est un espace d'écoute et d'accueil de l'expérience du sujet afin d'éclairer sa demande. Le but ici est de réfléchir à cette modalité. Le rapprochement entre ces espaces - une modalité d'assistance psychologique de la postmodernité - et psychanalyse dans les institutions interroge l'assistance à l'urgence en tant qu'un des temps de la cure psychanalytique : la rectification subjective. Le thérapeutique en service d'urgence, à l'aide de certains dispositifs analytiques tels que l'invitation à l'association libre, peut permettre au sujet, en plus de se plaindre, de demander aussi, tout en éclairant une demande d'analyse. Ainsi, l'urgence psychologique s'avère une porte d'entrée vers une analyse psychanalytique.

Mots-clés : Assistance psychologique d'urgence ; Psychanalyse ; Ecoute psychanalytique.


 

 

Objetivamos, com este texto, discutir questões concernentes à realização do serviço de plantão psicológico por meio do referencial teórico da psicanálise, sistematizando teoricamente uma prática realizada na clínica de psicologia de uma universidade pública. Para tanto, buscamos focalizar as articulações da psicanálise lacaniana com o plantão psicológico, percorrendo alguns conceitos fundamentais e buscando aproximar a experiência psicoterápica dos atendimentos de plantão como sendo um dos primeiros passos rumo à experiência analítica: a retificação subjetiva.

Para iniciar as discussões, lembramos da origem do termo clínica, que designa o exercício de se inclinar para o paciente (Figueiredo, 1995), compreendendo que a psicologia clínica é uma aplicação que comporta modalidades diversas, tanto no que se refere ao pressuposto teórico, ou seja, ao entendimento de quem é esse sujeito para quem o psicólogo se inclina, quanto naquilo que diz respeito à metodologia por meio da qual se propõe o tratamento. Assim também acontece com o plantão psicológico. Embora persistam traços do referencial teórico que primeiro sistematizou essa modalidade, a psicologia humanista, especialmente no que tange à definição de que o objetivo do atendimento realizado no plantão é mobilizar os recursos próprios do sujeito em favor de sua demanda, a mirada teórica que orienta esse objetivo é variável.

O plantão psicológico foi inspirado em um modelo institucional famoso nos Estados Unidos, na Europa e no Canadá, as chamadas walk-in clinics (Mozena, 2009). Foi no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, em 1960, que a modalidade de plantão se iniciou no Brasil (Schmidt, 2006), com grande preocupação com a formação do estudante de psicologia, sendo o plantão um diferencial quanto às múltiplas modalidades de se fazer clínica (Rosenberg, 1987). Foi reconhecido pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) em 1988 e por ele definido como um modelo alternativo à prática tradicional de psicoterapia, que recebe o sujeito no momento de sua urgência, priorizando o espaço de escuta, de acolhimento e de intervenção pontual em situações de crise (Furigo et al., 2008).

Notamos, atualmente, que esse tipo de intervenção clínica é disponibilizado por várias instituições. Em universidades, tem como público-alvo tanto a comunidade interna (Pan, Zonta, & Tovar, 2015) quanto a comunidade externa (Ortolan & Sei, 2016). Está inserido em equipamentos públicos de saúde, segurança, assistência e educação, tais como Unidades Básicas de Saúde (Gonçalves, Farinha, & Goto, 2016), Centros de Referência em Assistência Social (Mota & Goto, 2009), Delegacias da Mulher (Farinha & Souza, 2016), distritos policiais (Braga, Mosqueira, & Morato 2012), sistema penitenciário (Guedes, 2006), unidades de internação para adolescentes em conflito com a lei (Costa, Carvalho, & Wentzel, 2009), instituições de longa permanência para idosos (Ramos, 2012), escolas (Szymanski, 2004; Campos & Cury, 2009), ONGs (Rasera & Issa, 2007) e terreiros de umbanda (Scorsolini-Comin, 2014). Quanto às abordagens teóricas, Scorsolini-Comin (2015) identificou que o referencial fenomenológico-existencial, seguido da abordagem centrada na pessoa, é o que mais se destaca em termos numéricos das produções científicas na área de plantão psicológico.

 

A psicanálise nas instituições e o plantão psicológico psicanalítico

As discussões acerca da interseção entre psicanálise e plantão psicológico já vêm sendo realizadas nos últimos anos (Rosário & Kyrillos Neto, 2015; Ortolan & Sei, 2016). Entendemos que o lugar da psicanálise na modalidade de plantão psicológico perpassa pela discussão mais ampla a respeito da psicanálise aplicada em contextos que ultrapassem o enquadre original, também trivialmente referido como "tradicional". A partir desse uso da psicanálise para além de seu espaço originário, tem-se formado "um campo da prática analítica fora do campo estrito do dispositivo analítico" (Dutra & Franco, 2007, p. 272), campo esse denominado psicanálise aplicada (Lacan, 1964/1971).

Nesse ponto, é importante diferenciar uma psicanálise das instituições de uma psicanálise nas instituições. Enquanto na primeira podem-se tomar os discursos institucionais para análise, buscando desvelar os jogos de poder internos e inerentes a qualquer organização, no segundo caso trata-se muito mais de utilizar a psicanálise como uma ferramenta para a realização do propósito institucional (Kupfer, 2005).

Essa ideia de que a psicanálise seria praticada em instituições já estava em Freud (1919/1976), inclusive com o argumento de que um dos desafios do psicanalista nesse contexto seria "adaptar a técnica às novas condições" (Freud, 1919/1976, p. 180). Assim, a psicanálise dentro das instituições deve experimentar uma "ampliação e modificação em novas contextualizações sem que se perca a referência ao ethos psicanalítico" (Soares, 2005, p. 595). Ou seja, os serviços institucionais que se propõem fazer psicanálise não têm necessidade de alterar os preceitos da clínica psicanalítica (Guirado, 2006), muito menos de abandonar os fundamentos da psicanálise (Soares, 2005).

Nesse sentido, a prática da psicanálise dentro das instituições apresenta algumas especificidades importantes de serem esclarecidas. Primeiro, observa-se o fato de que as instituições têm clientela e modos de funcionamento específicos (Guirado, 2006). Consequentemente, pensamos que a implementação do referencial teórico-psicanalítico nas práticas de plantão psicológico traz a marca da instituição na qual esse serviço acontece, já que é predominantemente ela que estabelece parte dos limites e das metas do serviço, como horário de funcionamento, disponibiliza seu espaço físico, a localização geográfica e, por vezes, a equipe. De modo análogo, são esses condicionantes institucionais que determinam os usuários do serviço.

Segundo, acreditamos que a psicanálise está também submetida aos princípios da modalidade de plantão psicológico. Sendo o plantão psicológico uma concepção específica que visa a atender a um objetivo delimitado, qual seja, a clarificação da demanda e o eventual apaziguamento de um sofrimento insustentável para o usuário, cabe à psicanálise alinhar-se a tal objetivo, balizando-se, pois, tanto pela instituição na qual o serviço é oferecido quanto pela proposta do plantão.

No caso específico de nossa experiência, isso significa colocar a psicanálise, no que lhe for possível, sem descaracterizá-la, a serviço do objetivo do plantão, sem desconsiderar o espaço institucional da clínica psicológica de uma universidade. Proporcionalmente, as possibilidades de horários, a duração dos atendimentos e a equipe de plantonistas, formada majoritariamente por graduandos, refletem diretamente aquele espaço institucional.

Em rigor, o que define uma instituição é o conjunto de normas e pactos que a organizam, ou seja, sua referência à lei (Soares, 2007). Para Soares (2007), a lei é ainda aquilo que barra o excesso, estruturando o que é permitido e o que é proibido, possibilitando um laço social. O desafio do plantão psicológico psicanalítico é senão aquele de sustentar uma prática psicanalítica em meio a dois laços sociais que não são psicanalíticos em princípio.

Compreendemos que essa prática seja possível quando se encara a psicanálise como uma atitude: uma conversão do olhar e da escuta (Green, 2004; Macedo & Falcão, 2005; Monteiro, 2012). Além de seus fundamentos teóricos, a psicanálise tem a ofertar nas novas configurações sociais e de trabalho principalmente sua postura, ou seja, a posição singular que o analista deve ocupar para potencializar o acesso e a escuta do que não está consciente e desencadear um efeito terapêutico.

Na psicanálise aplicada, é perceptível a existência, e a insistência, dos fenômenos fundamentais dos quais a psicanálise se ocupa, como o inconsciente, a transferência, a associação livre e a resistência (Laplanche, 1987; Rosa, 2004; Kobori, 2013). No que se refere aos fenômenos da transferência, lembramos que ela já havia sido identificada por Freud como um componente importante do tratamento, desde o conhecido caso de Anna O. Já em 1909, Ferenczi observou que a transferência existe em todas as relações humanas, como professor-aluno, médico-paciente etc. (Roudinesco & Plon, 1998). O termo faz referência a um dos processos do tratamento psicanalítico ante o qual "os desejos inconscientes do analisando concernentes a objetos externos passam a se repetir, no âmbito da relação analítica, na pessoa do analista, colocado na posição desses diversos objetos" (Roudinesco & Plon, 1998, pp. 766-767).

Vários psicanalistas dedicaram textos e exposições acerca desse fenômeno, ligando-o principalmente à repetição, à resistência e à projeção. Lacan fez diversas tentativas de teorizar a transferência, até que ,em seu seminário de 1961-1962, relaciona esse fenômeno com o engano, por parte do paciente, de atribuir ao analista um saber absoluto, como se ele conhecesse previamente a cadeia de sentidos e as consequências pessoais das vivências do paciente. Acredita-se que essa perspectiva dos fenômenos transferenciais interessa sobremaneira à modalidade de pronto-atendimento, uma vez que não há o estabelecimento de um vínculo duradouro entre o usurário e o plantonista, de modo que não se chega a experienciar, ou ter que lidar com, a transferência como projeção das figuras parentais (Roudinesco & Plon, 1998).

Pensar a transferência no contexto institucional, especialmente no plantão psicológico, é, portanto, tratar o conceito para além da projeção de figuras parentais, pensando-o em sua dimensão simbólica, que endereça a demanda a um saber, a um serviço que supostamente sabe como resolver as demandas do sujeito (Cazanatto, Martta, & Bisol, 2016). Trabalhar com uma fala endereçada permite ao plantonista conduzir o atendimento, de modo a desdobrar e clarificar as interrogações (Coutinho & Rocha, 2007).

Essa dimensão simbólica da transferência aparece com vigor em nossa experiência. Acreditamos que é o fato de oferecermos o plantão na clínica psicológica de uma universidade que intensifica no usuário uma busca de saber sobre seu sofrimento, facilitando sobremaneira o acolhimento da orientação fundamental: fale!, na medida em que há também uma valorização daquele que está escutando.

O clássico método terapêutico e investigativo da psicanálise, a associação livre, também tem sua importância preservada na modalidade do pronto-atendimento. Uma vez que o usuário solicita algum saber durante o atendimento, a resposta do plantonista referenciado pela psicanálise é muito mais um método de atingir o saber do que a comunicação de verdades prévias e de tipos clínicos. Assim, por meio da escuta, e não da proliferação de verdades acadêmicas, a tarefa deve ser aquela de dar vazão ao discurso, de propiciar o aparecimento do nexo semântico entre os efeitos narrados, os sintomas e suas possíveis causas. Dessa forma, outro conceito caro à psicanálise toma vida, na medida em que a proposta é de que o usuário fale sem se preocupar com a censura, seja a censura de sentimentos ou de fantasias socialmente condenáveis, e principalmente sem a censura lógica, isto é, sem a preocupação de apresentar uma fala racional inscrita na lógica objetiva e unicausal (Celes, 2005; Foster, 2010). Uma fala livre sobretudo da tentativa de atribuir um nome técnico-científico ao conjunto do sofrimento narrado e comprometida com a história e o sentido singular que culmina em tal sofrimento. Na mesma medida, a aplicação da regra fundamental possibilita a emergência dos pontos insuportáveis para o sujeito, de certas passagens e acontecimentos da vida que, mais do que outros, exigem defesas excessivas, paralisantes, ou o perfeito contrário, revelam a completa falta de defesas em pontos específicos (Foster, 2010).

 

O atendimento de plantão e o tempo da retificação subjetiva

O lugar do praticante da psicanálise nos serviços oferecidos por instituições está em constante criação e desenvolvimento, e tal movimento criativo, atualização ou articulação são implementados, invariavelmente, por meio da ética da psicanálise (Moretto & Priszkulnik, 2014). É a ética da psicanálise que sustenta seus fundamentos teóricos e assegura a produção de determinados efeitos (Lacan, 1960/1988). Assim, a prática da psicanálise, pautada por sua ética, pode fazer-se presente em modalidades de atendimento como o plantão psicológico.

O trabalho de um plantonista que se paute pela psicanálise é, antes de tudo, um trabalho de escuta ativa. Colocando-se nessa posição, ele assegura a emergência de um cenário propício para a produção de efeitos terapêuticos e para o exercício analítico. Como explica Silva (2014, p. 207), "aquele que se dispõe a escutar já se instala automaticamente no lugar do Outro. Como se estivesse diante de um oráculo, a pessoa fala a quem supõe que poderá ajudá-la de alguma maneira".

A aproximação feita aqui entre o atendimento de plantão e a análise psicanalítica deve-se a partir da semelhança entre o que de fato ocorre no encontro terapêutico em plantão e os primeiros tempos do tratamento analítico. Há diferentes fases no tratamento analítico, como pontua Nasio (1999), separadas pelo critério de relação que o analisante tem com sua fala. Como primeira fase no processo de análise, há a retificação subjetiva, que ocorre nas primeiras entrevistas (Nasio, 1999). Cremos, então, que o atendimento de plantão pautado pela prática e pela ética da psicanálise seria muito semelhante às primeiras entrevistas, que visam à introdução do usuário em uma primeira localização de sua posição na realidade que ele apresenta. Na literatura produzida a respeito do plantão psicológico, esse processo seria a clarificação da demanda.

A fase de retificação subjetiva é um momento no qual o analista identifica a relação que o sujeito mantém com seus sintomas, qual a relação de sentido que ele dá a seus sofrimentos (Nasio, 1999). O autor aponta que nessa fase é importante discernir bem o motivo da consulta e como foi a decisão de recorrer a um outro para a resolução de seus problemas. É nesse momento da análise que o analista pode dar sua impressão: "minha impressão quer dizer dar uma resposta, que consiste em restituir ao paciente alguma coisa da relação que ele tem com o seu sofrimento" (Nasio, 1999, p. 12). Outro ponto a ser explorado na fase de retificação subjetiva em uma análise é saber identificar a demanda implícita, para além da queixa explícita trazida (Nasio, 1999).

Os processos vistos em uma fase de retificação subjetiva em análise psicanalítica e em um atendimento de plantão psicológico são muito semelhantes: ambos dão subsídio para que o indivíduo conheça de fato seu sofrimento, clarifique sua demanda. Sob essa perspectiva, o plantonista que atender pela psicanálise poderá ouvir o "querer dizer" que a narrativa comporta. E, se o encontro permitir, poderá chegar a um segundo momento, reenviá-lo "ao sujeito no sentido de implicá-lo com aquilo que é da ordem de seu desejo e das (im)possibilidades de enfrentamento e transformação dessas condições" (Lerner, Fonseca, Sayão, & Machado, 2014, p. 201).

Esperamos que, no encontro entre plantonista que segue a ética da psicanálise e usuário, o primeiro possa produzir um efeito no segundo, um desprendimento de identificações e posições já engessadas, para que então se tenha a oportunidade de provocar um movimento de mudança no sujeito (Simões, 2011). O reposicionamento elementar é oferecer ao usuário uma escuta digna de seu sofrimento. Não se ocupa o lugar do Outro para reforçar as faltas e os descaminhos do sujeito, mas para reconhecer os efeitos das faltas e descaminhos e tentar enganchá-los em palavras. Por meio do Outro, é possível desinvestir a queixa de sensação, de dor e angústia, e investi-la de possibilidade de significação. Repousar o sofrimento, muitas vezes paralisante, no ouvido do plantonista, para poder voltar a mover-se e buscar uma solução.

O sujeito que sofre em sua emergência mostra que algo lhe apontou uma divisão, fugiu da ordenação habitual, descontinuou. Reconhecer essa ruptura pode "viabilizar ao sujeito reatar o fio da sua história encontrando uma saída possível para o mal-estar inerente à condição humana" (Simões, 2011, p. 7).

A clínica psicanalítica que se propõe no plantão visa a dar visibilidade à subjetividade, apostando na singularidade do sujeito e, quando possível, introduzindo "a dimensão do posicionamento subjetivo daquele que fala diante dos fenômenos que o habitam" (Simões, 2011, p. 84), a fim de que o usuário perceba o desencadeamento de sua crise, localize-se diante de sua subjetividade, e que essa experiência possa "produzir um efeito de divisão no sujeito, possibilitando-lhe, quem sabe, a construção de uma questão" (Simões, 2011, p. 83).

A função do plantonista que age e pensa pela psicanálise, quando possibilitada pelo encontro de desenvolver-se um pouco mais, avança para a configuração do plantão como um potente locus de criação. Não sendo um espaço no qual prevalece a posição de mestria, não sendo o plantonista o detentor do saber, a surpresa pode aparecer, a criação é privilegiada. A criação de sínteses sobre o sofrimento e a criação de saídas plausíveis quebram a cadeia mortífera de repetições. A relação proposta permitirá que o sujeito invente "pontos de basta, o que também chamamos 'pontos de ancoragem'" (Stevens, 2007, p. 81), e assim possa, mesmo que minimamente, reconhecer o gozo ao qual está exposto.

 

Considerações finais

A psicanálise e as diferentes lógicas institucionais podem ter dissonâncias, mas têm possibilidades e potencialidades que merecem ser examinadas e divulgadas. A psicologia, como um instrumento de promoção de saúde, está ao alcance da população principalmente por meio das instituições, de modo que nosso esforço em um serviço de plantão psicológico de abordagem psicanalítica é favorecer que o indivíduo tocado seja tratado como sujeito, tal como entendido pela psicanálise.

O que a psicanálise tem de mais importante para contribuir no campo da promoção de saúde não é sua noção de psicopatologia nem de desenvolvimento psicossexual, mas sua postura respeitosa e extremamente interessada no discurso singular sobre o sofrimento de cada indivíduo. Talvez a mais importante contribuição da psicanálise seja o pressuposto de que o trabalho é sempre singular e de que só acontece no encontro com um outro, de maneira que não se trata de simplesmente "transpor teorias e técnicas para a prática, o trabalho acontece na e pela transferência, e a forma como se estabelece dependerá da singularidade de cada sujeito/instituição e da história de cada tratamento" (Cazanatto, Martta, & Bisol, 2016, p. 490).

Ao atuar nas instituições, o praticante da psicanálise vai deparar-se com inúmeras dificuldades, sobretudo em relação a estabelecer o lugar que ocupa naquele contexto. O desafio consiste em prosseguir, "sem perder de vista o específico de sua posição" (Monteiro & Queiroz, 2006, p. 111), ou seja, a possibilidade de localizar e trazer para a cena o que dela está excluído, fazendo circular a causa do desejo.

Consideramos, por fim, que o plantão psicológico, como um dispositivo clínico bastante atual, pode ser realizado com o auxílio do saber psicanalítico, mostrando-se um território privilegiado para o apaziguamento e, por vezes, a elaboração de acontecimentos insuportáveis do mal-estar inerente à condição humana.

 

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Recebido: 14/06/2019
Aprovado: 02/03/2020

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