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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.39 Rio de Janeiro Jully/Dec. 2019

 

RESENHA

 

Inconsciente em cena: o destino de um bonde chamado desejo

 

 

Vanisa Maria da Gama Moret Santos

 

 

Lançado no Rio de Janeiro em 5 de setembro de 2019, o livro de Antonio Quinet, O inconsciente teatral - psicanálise e teatro: homologias é uma obra que relata a trajetória de um psicanalista que foi "fisgado" pelo teatro. Efeito de um trabalho rigoroso e do desejo decidido do autor, há ainda de se destacar o belíssimo projeto gráfico de Caroline Gischewski, que confere à obra um caráter de livro de arte. Sim! Trata-se de uma verdadeira experiência estética, que vale a pena ser lida, aos poucos, para aproveitar melhor o saber sobre o inconsciente teatral ali compartilhado.

De acordo com seu próprio relato pessoal, foi em 2003 que o desejo pelo teatro como um campo de saber sobre o inconsciente começou a se esclarecer, pouco antes de aceitar o desafio de dirigir a peça A mais forte, de August Strindberg (1849-1912), no Teatro Sesc Copacabana. E foi assim que Quinet embarcou no bonde chamado desejo, a princípio, sem se dar conta de como tudo isso reverberaria em sua vida. De uma coisa estava certo, tal decisão só confirmava seu desejo de analista através do ato e da transmissão da psicanálise. Mesmo sem ter se dado totalmente conta dessa escolha prévia, Quinet só poderia entender o efeito do teatro em sua existência no a posteriori, quando boa parte do caminho já tinha sido percorrido.

Uma trajetória de 16 anos de intenso trabalho e estudo, que resultou em peças maravilhosas, que têm nos ensinado sobre como o inconsciente teatral funciona e está presente tanto na pólis quanto em nossas vidas particulares. É exatamente isso que o psicanalista e dramaturgo tem tentado transmitir ao longo de sua obra desde que se entranhou no trabalho no palco.

Incompreendido por muitos, sua aposta na psicanálise implicada no teatro não foi somente uma ousadia; foi tratada como uma verdadeira heresia, especialmente no início de seu percurso.

Em muitos momentos, esse livro se assemelha a um passe, escrito ao longo de muitos passos. O psicanalista não se furta a dar seu testemunho de sujeito desejante, causado pelo teatro, relatando seus impasses, as duras críticas a seu trabalho como dramaturgo e o testemunho emocionante de seu desejo decidido de transmitir a psicanálise por meio do teatro.

Além disso, trata-se de um livro de arte, desses que colocamos sobre a mesa da sala de estar, para serem degustados e apreciados. Desde a capa às imagens internas, com lindas fotografias em preto e branco de suas peças, percebemos o esmero com que Quinet cuidou de sua obra.

Mais do que um livro esteticamente bonito, o autor teve a preocupação de tor-ná-lo também um livro didático, explicando com muita clareza, para os que não entenderam ou não aceitaram, as homologias entre teatro e psicanálise. Uma escrita vigorosa e muito detalhada, resultado da pesquisa de muitos anos e do rigor de um psicanalista que, assim como o cientista, não se satisfaz com o óbvio. O simplismo das críticas inadvertidas daqueles que, por preconceito ou falta de alcance, não entenderam o trabalho de Quinet contrasta com a seriedade de sua obra, um legado histórico inestimável para a psicanálise e a dramaturgia.

Uma verdadeira aula de cultura literária, de dramaturgia e de psicanálise, a obra faz articulações importantes sobre as peças de teatro que o dramaturgo cita ao longo do livro, de Shakespeare a James Joyce, de Nelson Rodrigues a Antonio Quinet. É um livro muito original, que tem uma estrutura moebiana, de modo que o leitor pode começar do meio para o fim, e daí voltar para o início. Deve ser degustado sem moderação, não sendo desses que se lê de uma tacada. Ao contrário, o leitor se sente convidado a apreciar o caminho e a se deleitar com a pesquisa do autor. É, por assim dizer, uma "leitura tântrica".

Na parte 1, o autor explana sua tese sobre o inconsciente estruturado como um teatro em suas três dit-mansions (RSI) e se dedica a explicar detalhadamente como chegou a essas homologias, aproximando o teatro da psicanálise. Tudo isso seguindo um método, como ele mesmo esclarece:

Meu método é a abordagem do teatro com os conceitos freudianos e lacanianos extraindo o que ele nos ensina para a psicanálise. Examino a função da "peça dentro da peça" (a play scene) a partir de Hamlet e a Coisa teatral, o gozo do espetáculo e o registro do real que interessa à psicanálise. (Quinet, 2019, p. 30)

Além de entendermos que o inconsciente é a outra cena que o teatro revela, o autor esclarece o porquê de o sujeito humano ser eminentemente um ser teatral. Para explicar sobre o papel da mimese, Quinet recorre à obra A poética, de Aristóteles, considerado o primeiro livro no mundo sobre estética. Assim, entendemos que atuar faz parte da natureza humana, pois todo ser humano é um ator, como aponta o psicanalista-dramaturgo. Essa tendência a atuar e a ter prazer nas representações teatrais tem suas raízes na economia psíquica, pois representar é uma atividade que gera gozo e satisfação pulsional de diversos matizes (Quinet, 2019, p. 54).

Na parte 2, temos acesso não somente à ficha técnica de todas as suas peças, mas também aos bastidores do processo criativo do autor, suas pesquisas, seus estudos e suas decisões por um ou outro manejo das cenas que trazem à luz os aspectos trágicos do desejo e da existência humana. Quinet reafirma sua real intenção de transmitir a psicanálise fundamentando suas escolhas e direção em um saber prévio com a letra do inconsciente. Ator e autor de seu próprio destino, o poeta em Quinet vai tomando corpo, prevalecendo sobre o psicanalista, de tal modo que o sujeito do inconsciente, ao entrar em cena, deixa o psicanalista de lado e incorpora o poactor em seu ato criativo.

É nessa parte do livro que também encontramos uma série de comentários de psicanalistas e artistas que emitem suas impressões sobre as peças de Quinet, mostrando que as críticas positivas superam as negativas.

Mais do que um livro teórico e didático, ou o registro escrito do depoimento pessoal do ato histórico de um sujeito que inaugura um novo estilo de transmissão da psicanálise, esse livro é uma obra de arte em que o poeta encontra o analista em Antonio Quinet.

O inconsciente teatral deve ser lido por todos aqueles que têm a psicanálise, o teatro e a poesia como causas. Além de emocionante e muito bem escrito, é um livro provocativo, pois convoca o leitor a sair das trevas da ignorância e a entrar no bonde do desejo, para se aventurar na experiência única e entusiasmante de se tornar autor e ator de seu próprio destino. Fiat lux!

 

 

Recebido: 16/11/2019
Aprovado: 13/03/2020

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