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Semina: Ciências Sociais e Humanas

versão On-line ISSN 1679-0383

Semin., Ciênc. Soc. Hum. vol.39 no.2 Londrina jul./dez. 2018

 

Artigos

Trabalho, sentidos e saúde mental: percepção de participantes em um projeto para geração de renda

Work, senses and mental health: perception of participants in a project for income generation

 

 

Shirley Alves dos Santos1; Leonardo Carnut2

1Universidade Federal de Pernambuco

2Universidade Federal de São Paulo

 


Resumo

Este estudo objetivou analisar os sentidos do trabalho para os participantes de uma pesquisa-ação denominada “Projeto Geração de Renda” na região metropolitana do Recife/PE com intuito de gerar reflexões em direção ao conceito de trabalho emancipado segundo os princípios da economia solidária. Tratou-se de uma pesquisa qualitativa, com entrevistas não-estruturadas de 8 sujeitos da pesquisa-ação realizada sob a perspectiva freireana de educação popular. Utilizou-se a análise do discurso de Gill, tomando-se como referencial o sentido do trabalho no contexto da Política de Saúde Mental. Observouse que os sentidos encontrados no discurso dos participantes se baseiam em diferentes concepções, sobretudo no sentido do trabalho como sustento das necessidades da sobrevivência humana, e desta maneira, como potencialidade para a reprodução da vida. No entanto, estes sentidos estão no âmbito do trabalho protegido-terapêutico e distanciados do trabalho emancipado. O processo de reabilitação psicossocial para pessoas com experiência na loucura e na perspectiva do trabalho precisa ir além de geração de renda. Quando atrelada ao trabalho emancipado, pode-se pensar que promova a participação democrática e cidadã. Dessa forma, há um terreno fértil para a construção de novas relações consigo e com os outros, pautadas nos princípios do movimento da economia solidária.

Palavras-chave: Saúde mental. Reabilitação psicossocial. Trabalho. Economia solidária.


Abstract

The objective of this study was to analyze the meanings of the work for the participants of an action research called “Income Generation Project” in the metropolitan area of Recife / PE, to generate reflections towards the concept of emancipated work according to solidarity economy principles. It was a qualitative research, with unstructured interviews of 8 subjects carried out under the Freirean perspective of popular education. Gill’s discourse analysis was used, taking as reference the meaning of the work of the Mental Health Policy. It was observed that the senses found were based on different conceptions, especially in the sense of work as sustenance of the needs of human survival, and in this way, as a potential for the reproduction of life. However, these senses are within the scope of protectedtherapeutic work distanced from emancipated work. The process of psychosocial rehabilitation for people with experience in insanity from the perspective of work needs to go beyond income generation, and, when it linked to emancipated work can promote democratic and citizen participation. In this way, there is a fertile ground for the construction of new relations with you and with others based on the principles of the solidarity economy movement.

Keywords: Mental health. Psychosocial rehabilitation. Work. Solidarity economy.


Introdução

Os movimentos das reformas psiquiátricas, em especial a italiana e a brasileira, concebem a pessoa em sofrimento psíquico como sujeito desejante que participa politicamente e constrói projetos, ou seja, um sujeito capaz de se inserir na sociedade e no mundo do trabalho. Entretanto, o trabalho como possibilidade de inserção do louco no mundo do intercâmbio, ou em outras palavras, das trocas simbólicas que produzem e reproduzem sua vida é recente, tanto nos documentos relacionados à reforma psiquiátrica como no cotidiano da maioria dos serviços de saúde mental no Brasil (ANDRADE et al., 2013).

Além disso, as transformações em curso no mundo do trabalho desde o final do século XX colocaram uma grande parte da população economicamente ativa em situação de des(sub) emprego promovendo profundos impactos na saúde mental dos trabalhadores assalariados, portadores ou não de sofrimento psíquico. É nesse contexto brasileiro, que o movimento de tentativa de ruptura com o modo de produção capitalista, denominado economia solidária, é pautado por valores de autogestão e de solidariedade nas relações de trabalho tendo como centralidade o ser humano, a natureza e a relação de sustentabilidade entre ambos (ANDRADE et al., 2013).

A ‘centralidade do trabalho’, como categoria comum entre Saúde Mental e Economia Solidária, parece ser uma ideia que favorece o diálogo entre estes marcos teóricos e suas respectivas políticas públicas. Nesse sentido, a ideia foi discutir as dimensões da categoria ‘trabalho’ como recurso terapêutico, como direito humano, como produtor de subjetividades e como possibilidade concreta de construção de cidadania e de pavimento à emancipação (ANDRADE et al., 2013).

A inclusão social pelo trabalho, na perspectiva da Economia Solidária, constitui-se em um novo passo no processo da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Esta articulação, apesar de poucos registros no âmbito da literatura científica nacional, vem ganhando força mediante uma série de articulações entre os Ministérios da Saúde e do Trabalho fortalecidas na realização da “Oficina de Experiências de Geração de Renda e Trabalho de Usuários de Serviços de Saúde Mental” ocorrida em novembro de 2004 (FILIZOLA et al., 2010).

Em consonância como este movimento em nível central, este trabalho buscou compreender, em uma experiência local, os sentidos do trabalho para pessoas que tiveram algum sofrimento psíquico. Elas participaram do Projeto Geração de Renda – “Mentes que Fazem”, oferecido pelo município de Camaragibe, pertencente à Região Metropolitana do Recife, como experiência municipal de articulação entre essas duas áreas. A intenção foi investigar o resgaste dos sentidos do trabalho para essas pessoas com sofrimento psíquico, admitindo-se que, com base na prática de Economia Solidária, é possível (re)construir esses sentidos e (re)pensar novas possibilidades de sociabilidades que retomem a categoria trabalho como fundante no processo de estruturação do ‘humano’.

O Trabalho e sua Contribuição para a Saúde Mental

Os ideários da luta pela reforma psiquiátrica no Brasil nascem com o Movimento da Reforma Sanitária na década de 70. Entretanto, essa é engendrada a partir de 1987, com o início dos movimentos sociais a favor dos direitos dos pacientes psiquiátricos, que culminou com a criação do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, constituído pelo Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), associações de familiares, sindicalistas, membros de associações de profissionais e pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas. A denúncia dos maus tratos e do poder da rede privada de assistência foi o foco principal dos direitos buscados nesses movimentos (ANDRADE et al., 2013).

Em 2001, foi aprovada a lei 10.216 proposta pelo deputado Paulo Delgado (PT/MG) em 1989 que privilegia o tratamento em serviços de atenção psicossocial em base comunitária dispondo da proteção e do direito às pessoas com sofrimento psíquico (ANDRADE et al., 2013). Como consequência, as transformações do modelo de cuidado em saúde mental incitaram a necessidade do desenvolvimento de uma nova prática, marcada pelo princípio do território, ou seja, um cuidado que tem como horizonte a afirmação dos direitos das pessoas em sofrimento psíquico, na disponibilização de uma rede de serviços cuja célula geopolítica é seu território de origem, e ainda no investimento nos projetos de vida dos usuários cuja ideia de liberdade seja constitutiva da ideia de cuidado.

Partindo da necessidade de uma rede de serviços substitutos, em 2011 foi publicada a Portaria nº 3.088 que institui a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), cuja finalidade é a criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas (BRASIL, 2011). Assim, em sua composição, a RAPS possui sete componentes, que são: I - Atenção Básica em Saúde; II - Atenção Psicossocial Especializada; III - Atenção de Urgência e Emergência; IV - Atenção Residencial de Caráter Transitório; V - Atenção Hospitalar; VI - Estratégias de Desinstitucionalização e VII - Reabilitação Psicossocial. Em cada componente desse, há serviços especializados que compõem os pontos de atenção da rede (BRASIL, 2011).

Ao pensarmos que a cidadania e a loucura foram termos que sócio-historicamente andaram separados, a afirmação do direito à cidadania exige uma transformação da relação de tutela entre o louco e o Estado e coloca em pauta uma nova forma de compreender a loucura. Para tal transformação, fazse necessário olharmos para a história do trabalho na saúde mental. Essa história constitui-se em três momentos: 1. O trabalho visto como instrumento de ocupação, para evitar à ociosidade e “reestabelecer” a ordem promovendo o retorno das pessoas à sociedade de forma produtiva; 2. O trabalho como prática curativa e como estratégia de transformação da personalidade e dos comportamentos; e 3. Com a Reforma Psiquiátrica e pela experiência da Reforma na Itália, o trabalho passa a ser visto como afirmação de cidadania e como produção de vida (YASUI; SANTIAGO, 2011).

A questão do trabalho é um dos eixos da reforma psiquiátrica brasileira junto a três retaguardas: a retaguarda assistencial proporcionada pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), a retaguarda de moradia através do Sistema de Residências Terapêuticas e, por fim, a de reparação econômica através do programa “De Volta para Casa”. No que se refere a reparação econômica, considera-se importante observar a existência de duas formas de nomear as experiências em curso: as “iniciativas de geração de trabalho e renda” (Rede Brasileira) e “iniciativas de Cooperativas de Inclusão Social pelo Trabalho” (CIST). Outras formas, talvez menos utilizadas são as de “empreendimentos de saúde mental e economia solidária” e de “cooperativas sociais”.

Talvez essas nomeações reflitam o atual momento de construção dessa ampla rede de serviços que tornam a política de saúde mental uma das mais complexas do setor saúde. Ainda sobre a reparação econômica, a singularidade da realidade social onde é desenvolvida, bem como as diferentes concepções existentes a respeito da relação entre loucura e trabalho (ANDRADE et al., 2013) tem sido responsável pela diversidade de possibilidades que essas iniciativas vêm ganhando tentando abarcar as profundas desigualdades sociais existentes na realidade brasileira.

A relação ‘loucura-trabalho’ vem sofrendo várias mudanças ao longo da História, tanto nas concepções a ela atribuída como nas práticas produzidas a partir dessas concepções. Na assistência leiga das instituições filantrópicas, o trabalho teve a função de auxiliar na manutenção da ordem social e econômica; já com o nascimento da psiquiatria, protagonizou-se o tratamento moral e asilar, tendo o trabalho uma função disciplinadora e com o intuito de curar a loucura por meio da docilização dos corpos (FOUCAULT, 2003).

Na reforma psiquiátrica francesa, o trabalho na ressocialização foi utilizado como um instrumento terapêutico. Já na reforma italiana, o trabalho era pensado dentro da ressocialização como um elemento de emancipação terapêutica e um operador desta reinserção (PASSOS, 2009). No Brasil, nas Colônias Agrícolas da década de 1920, o trabalho era uma imposição terapêutica do tratamento moral que só passou a ser questionado na década de 1940 com a terapêutica ocupacional de Nise da Silveira que considerava o trabalho como um recurso terapêutico tão importante quantos os demais. Na reforma psiquiátrica, a partir da década de 1980, inspirada sobretudo na reforma psiquiátrica italiana, o trabalho passa a ser um instrumento de reabilitação e de (re)inserção social, e cria novas inscrições da loucura na cultura e na cidadania (GUERRA, 2008).

Neste cenário, um desafio imposto é a necessidade de superar a concepção do trabalho terapêutico, do tratamento moral, da habilitação para o trabalho enquanto ideal normativo ou, ainda, como indicador do êxito do tratamento. Faz-se necessário a construção de espaços reais que possibilitem às pessoas com experiência na loucura o direito ao trabalho. Logo, percebe-se a necessidade de criação de processos que validem suas capacidades e seus saberes com ênfase na transformação das relações das pessoas e dos contextos, tecendo as possibilidades reais de trabalhar, trocar, produzir valor e compartilhar os riscos de entrar na trama social (NICÁCIO et al., 2005).

Nesse contexto, as mudanças relacionadas à maneira de se referir ao louco aconteceram na medida em que se percebeu a importância da desconstrução do estigma de que o louco é um sujeito incapaz tanto de governar sua vida como de trabalhar. Os movimentos de reformas psiquiátricas que aconteceram em vários países visavam justamente modificar a forma de tratamento destinado aos sujeitos da experiência da loucura, eliminando gradualmente o internamento pela construção de dispositivos na comunidade substitutivos à lógica manicomial e procurando a desinstitucionalização e a reabilitação psicossocial (ANDRADE et al., 2013).

A reabilitação psicossocial é compreendida como processo facilitador da restauração do indivíduo com limitações, no melhor nível possível, da autonomia e do exercício de suas funções na comunidade (FILIZOLA et al., 2010). É no componente da reabilitação psicossocial que encontramos espaço para refletir sobre a inclusão social, particularmente por meio do trabalho, questão ainda pouco discutida no campo da saúde mental.

Então é nesse debate em que o trabalho enquanto produção de valor e de contratualidade social que a reabilitação psicossocial se insere. Definido como um conjunto de estratégias direcionadas a aumentar as possibilidades de trocas, valorizando o sujeito e seu contexto, Saraceno (1996) propõe uma abordagem focada nos três grandes cenários: moradia, rede social e trabalho com valor social, buscando o poder contratual das pessoas em sofrimento psíquico, com vistas a ampliar a sua autonomia.

É importante esclarecer que a reabilitação psicossocial não se trata de um processo individual de inabilidade para à habilidade mas configurase como um processo de potencialização das possibilidades de trocas sociais, de afetos e de tessitura de redes múltiplas de negociação. Tratase de reconhecer e fortalecer a contratualidade real e, desse modo, “habitar”, “trocar as identidades” e de “produzir e trocar mercadorias e valores”. Assim, o foco do processo se torna a invenção de percursos que viabilizem múltiplos projetos de vida e transformem as relações sociais (SARACENO, 1996).

Todavia, de acordo com Zambroni-de-Souza (2006), os usuários dos serviços de saúde mental querem muito mais do que o acesso terapêutico, querem ter o direito ao trabalho e, com ele, a possibilidade de reconhecimento, de autonomia e de remuneração e, por conseguinte, que sejam tratados como sujeitos de direitos. Entretanto, o autor questiona se as tentativas de trabalho vinculadas aos serviços de saúde mental têm possibilitado a reinserção desses indivíduos ao mercado de trabalho e, se elas transpõem, de fato, a atividade ocupacional estritamente terapêutica.

O Trabalho como Constituidor do Ser Social e a Economia Solidária

O trabalho faz referência ao próprio modo de ser dos homens e da sociedade, é a categoria central para a compreensão do próprio fenômeno humanosocial. Além de ser reconhecido como a base da atividade econômica, o trabalho torna possível a produção de qualquer bem, criando os valores que constituem a riqueza social (NETTO; BRAZ, 2011).

Assim como em Freud, onde a constituição do sujeito apresenta uma base biográfica, única e singular, tomando o ser humano em termos de amadurecimento psiquíco, Marx também se inspira na história para justificar a essência dos sentidos de humanidade. Marx amplia a escala e passa a ter o homem como objeto constitutivo, também (ou prioritariamente) das relações sociais que constrói ao longo da história das sociedades (FROMM, 1986). Não obstante, a razão da construção do sujeito está ancorada nas experiências dos indivíduos tanto no âmbito psíquico quanto no social, por isso, para Marx (2007), o trabalho deriva da ‘relação de produção’, categoria central que consolida a diferenciação entre o ser humano e outras espécies.

Partindo-se da concepção marxista, Bendassolli e Gondim (2014, p. 134) ressaltam que “ao trabalhar, o trabalhador se exterioriza (como sujeito) e se objetiva no produto de seu trabalho; este lhe permite afirmar-se em relação aos outros e em relação ao mundo”. Portanto, o trabalho é uma forte via de subjetivação, é mais uma ferramenta de diálogo com o mundo, é também uma forma de falar sobre si através do que foi produzido.

De acordo com Netto e Braz (2011) a prefiguração é indispensável à efetivação do trabalho, ela se objetiva quando a matéria natural pela ação material do sujeito é transformada. Sendo assim, o trabalho implica um movimento indissociável entre dois planos: um plano subjetivo (pois a prefiguração se processa no âmbito do sujeito) e no plano objetivo (que resulta na transformação material da natureza e, por conseguinte, das relações sociais); assim, a realização do trabalho constitui uma objetivação do sujeito que o efetua. E, através da linguagem articulada, o sujeito do trabalho constrói as suas representações sobre o mundo que o cerca e sobre si mesmo.

A comunicação é tão necessária porque leva em conta que o trabalho jamais é um processo capaz de surgir, de se desenvolver, ou de se realizar, em qualquer tempo como atividade isolada de um ou outro membro da espécie humana. O trabalho é, sempre, atividade coletiva. Seu sujeito nunca é um sujeito isolado mas carece sempre de um conjunto de outros sujeitos. Essa inserção não é só da coletivização de conhecimento, mas sobretudo, da produção social que implica convencer ou obrigar outros à realização de atividades, organizar e distribuir tarefas, estabelecer ritmos e cadências. Esse caráter coletivo da atividade do trabalho é, substantivamente, aquilo que, em larga escala, denomina-se de ‘social’. Foi através do trabalho que grupos de primatas surgiram como os primeiros grupamentos humanos numa espécie de salto qualitativo que fez emergir um novo tipo de ser, distintivo do ser natural (orgânico e inorgânico): o ser social (NETTO; BRAZ, 2011).

Compreende-se a importância de perceber que o ser social, segundo Netto e Braz (2011), constitui-se como um ser que dentre todos os tipos de ser, se particulariza porque é capaz de: a) realizar atividades teleologicamente orientadas; b) objetivar-se materialmente e idealmente; c) comunicar-se pela linguagem articulada; d) tratar suas atividades e a si mesmo de modo reflexivo, consciente e autoconsciente; escolher entre alternativas concretas, para exercício da liberdade e da autonomia; e) universalizar-se e f) socializar-se.

Assim, o trabalho é uma ação humana e que é constitutiva do ser social. Apesar de ser central, é fundamental dizer que o ser social não se reduz ou se esgota no trabalho. Quanto mais se desenvolve o ser social, mais as suas objetivações transcendem o espaço ligado diretamente ao trabalho. No ser social desenvolvido, verificamos a existência de esferas de objetivação que se autonomizaram das exigências imediatas do trabalho, como a ciência, a filosofia e a arte, dentre tantas outras.

Neste cenário é que emerge a discussão sobre o “sentido” atribuído ao trabalho e como os seres humanos podem fazer uso do trabalho como instrumento de emancipação de suas vontades e expressão de sua liberdade. Ao passo que o trabalho pode (e deve) representar-se como modelo de ação potencializadora do estatuto de humanidade, o que se percebe, a depender da forma como está socialmente organizado, ele tende a receber outros sentidos distintos da sua condição original que estão mais associados à opressão, à dependência, ou, quando não ao seu antagônico imediato (COTRIM, 2006).

Em sociedades cujo modo de produção é capitalista, o trabalho assume a competitividade como valor central fundamentado na garantia de sobrevivência das empresas capitalistas. Este mecanismo gera o aumento dos trabalhadores que vivenciam as condições de (sub)desemprego, os excluídos1, e parte constitutiva crescente do desemprego estrutural que atinge o mundo do trabalho, em função da lógica destrutiva que preside seu metabolismo (ANTUNES, 2009).

É nesse contexto sócio-histórico que surge a economia solidária, que, segundo Singer (2003), é compreendida como um conjunto de atividades econômicas – de produção, comercialização, consumo, poupança e crédito – organizadas sob a forma de autogestão, isto é, pela propriedade coletiva do capital e pela participação democrática (uma cabeça, um voto) nas decisões dos membros da entidade promotora da atividade. Segundo o mesmo autor, o desenvolvimento da economia solidária no Brasil acontece a partir da década de 1980 com a contrarrevolução neoliberal. O aumento dos níveis mundiais de desemprego nas últimas décadas do século XX teve como uma de suas principais consequências o incremento do trabalho informal como geração de renda, de sobrevivência material e de manutenção de espaços de trabalho, mesmo em condições precárias. Como outra forma de organizar o trabalho através da autogestão e da solidariedade, a economia solidária emerge como estratégia coletiva de alternativa ao desemprego e à precarização do trabalho (ANDRADE et al., 2013).

Além disso, também vale ressaltar que a concepção de Economia Solidária pelas educadoras do Nordeste não se restringe apenas numa perspectiva de realizar ações para gerar trabalho e renda, mas agregam a esta concepção o caráter de uma ação política. Desta maneira, questionam as relações desiguais e patriarcais que se produzem e reproduzem tanto na produção/comercialização, quanto nas relações sociais e culturais entre as pessoas e as organizações (DUBEUX, et al., 2012).

Portanto, o desafio da proposta de ter como horizonte a economia solidária é de favorecer a construção da autonomia e emancipação tendo o trabalho como ato criativo. Assim como, pensar o funcionamento do Projeto Geração de Renda pautado na reflexão de se contrapor ao desperdício improdutivo da sociedade de consumo; de discutir as necessidades a partir de uma prioridade política, contrapondo-se a lógica consumista da sociedade capitalista; ser orientado por uma lógica de igualdade de gênero, raça e do lugar que ocupamos na sociedade; e, que o trabalho seja organizado a partir da gestão coletiva dos diferentes recursos e riquezas dos territórios (DUBEUX, et al., 2012).

Acreditamos na economia solidária como o caminho possível para o Bem Viver, que tem como fundamento a construção de um projeto emancipador, que leva em consideração as histórias de luta, de resistência e de propostas de mudança, valorizando as experiências locais para estabelecer democraticamente sociedades sustentáveis (ACOSTA, 2016).

O conceito de ‘trabalho emancipado’ (cooperativo, solidário e autogestionário – como contraponto ao conceito de ‘trabalho explorado’) é caracterizado por uma perspectiva ontológica do trabalho, pela qual se pretende superar sua condição de mera garantia da sobrevivência material, retomando sua condição de satisfazer as necessidades humanas de vida, comunidade, reciprocidade e solidariedade (ARRUDA, 2003). Considera-se essa a concepção de trabalho que pode contribuir com a articulação entre a saúde mental e a economia solidária produzindo uma necessária reflexão e mudança sobre as concepções de trabalho terapêutico, trabalho assistido e trabalho protegido, ainda vigentes nos dispositivos de saúde mental no Brasil (ANDRADE et al., 2013).

É interessante notar que, tanto o movimento da luta antimanicomial como o movimento da economia solidária, preconiza a construção de outro projeto de sociedade, compartilhando princípios fundamentais pautados em dimensões éticas, políticas e ideológicas que visam uma sociedade de solidariedade e de justiça, ou seja, ambas se contrapõem ao projeto capitalista de sociedade (ANDRADE et al., 2013).

Na tentativa de avançar na institucionalidade desta discussão, o encontro das políticas de Saúde Mental com a Economia Solidária se deu no diálogo entre o Ministério da Saúde e Ministério do Trabalho e Emprego por meio da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) no ano de 2004, quando firmaram parcerias, possibilitando que diversos Estados do país desenvolvessem ações nesse sentido. As regiões Sul e Sudeste vêm protagonizando ações mais firmes desse diálogo, com importantes iniciativas de geração de trabalho e renda para esse público, formando redes de cooperativas sociais. No Nordeste essa realidade é um pouco diferente. Em Pernambuco, por exemplo, temos, apenas uma estratégia consolidada de Geração de Trabalho e Renda na RAPS. Por isso, acredita-se na importância do aprofundamento dessa temática, de modo que ela possa ser mais estudada, compreendida e vivenciada pelas pessoas que circulam na saúde mental, seus trabalhadores, usuários e militantes, bem como aqueles que constroem o movimento da economia solidária. Mas, estamos em 2019 com práticas ainda pouco vivenciadas no Nordeste.

Sendo assim, é preciso contemporizar a precariedade ainda existente no campo das políticas de saúde mental e de trabalho no âmbito da economia solidária, e, em especial, ao direito dos sujeitos da experiência da loucura em trabalhar de maneira coletiva e autogestionária. Atualmente, a condição de inclusão social pelo trabalho destes sujeitos é regida pela Lei nº 9.867, de 10 de novembro de 1999 (BRASIL, 1999), que regulamenta o funcionamento das cooperativas sociais como modalidade de trabalho dos que estão em situação de desvantagem social, caracterizando-o como um trabalho assistido em que a autonomia do trabalhador é mediada pela assistência que lhe é oferecida via Estado. Além de existir o Programa de Inclusão Social pelo Trabalho, assumido pelos Ministérios do Trabalho e Emprego e Saúde, o Grupo de Trabalho de Saúde Mental e Economia Solidária tem uma linha específica de financiamento destinada aos Municípios que desenvolvem atividades de inclusão econômica de pessoas com transtornos mentais (PT GM nº 1.169/05) impulsionando efetivamente essas iniciativas (ANDRADE et al., 2013).

O Projeto Geração de Renda, ao qual essa pesquisa se propôs a investigar foi iniciado em 2005 a partir dos grupos de terapia ocupacional do CAPS II, com o objetivo geral de “promover a inclusão das pessoas com sofrimento ou transtorno mental e/ ou com necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas no mercado de trabalho, estimulando o potencial criativo, a solidariedade e a autoestima através da produção artesanal e outras atividades afins” (CAMARAGIBE, 2013).

Todavia, o encontro das políticas de saúde mental e da economia solidária carece de construção de referenciais teórico-metodológicos que valorizem as sinergias de suas proposições ético-políticas dando lugar ao diálogo entre suas práticas como uma atividade de potência em si. Em uma sociedade ainda marcada pela lógica manicomial e pelo modo de produção capitalista que estão presentes em todos nós, essa somação de forças parece um começo promissor a um realinhamento progressista reformista no âmbito das práticas de saúde mental e economia solidária. Desta maneira, este trabalho se empenhou em responder o seguinte questionamento: Qual o sentido do trabalho para os/as participantes da pesquisa-ação realizada no Projeto Geração de Renda da região metropolitana de Recife/PE?

Assim, este estudo visa analisar os sentidos do trabalho para os(as) participantes da Pesquisa Ação que fazem parte do Projeto Geração de Renda da região metropolitana de Recife/PE. Para alcançar este objetivo geral, tomou-se como objetivos específicos: caracterizar o perfil social dos/das participantes da pesquisa, descrever as narrativas dos participantes da Pesquisa Ação sobre a percepção do trabalho realizado no Projeto Geração de Renda e analisar os sentidos do trabalho construídos com os participantes da Pesquisa-ação à luz das concepções sobre o trabalho, da Economia Solidária e da Política de Saúde Mental.

Por conseguinte, consideramos fundamental para este trabalho a contribuição posta pela Educação popular que segundo Paulo Freire é pautada por uma prática educativa crítica enquanto processo permanente que impulsiona as pessoas para serem mais conscientes, críticas, livres e humanas e com potencial para transformar a sua realidade. Contrapondo-se a educação tradicional, enquanto um processo unidirecional, verticalizado e “comandado” pelo educador a uma ação na qual, através do diálogo, o conhecimento é construído de forma dinâmica como resultado da ação-reflexãoação tanto do educador quanto do educando (FREIRE, 1996).

Desta maneira, ainda segundo Freire (1996) a construção do conhecimento na prática educativa crítica deve versar sobre a problematização da realidade, desvelar a realidade e convidar a todos que constroem o processo educativo a refletir cotidianamente sobre a prática individual e coletiva. Portanto, trata-se do desenvolvimento de uma curiosidade crítica, insatisfeita, indócil e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos.

Percurso Metodológico

Trata-se de um estudo inserido nos pressupostos do método qualitativo na área de saúde mental com foco na interface da Saúde Mental e a Economia Solidária visando à política de inserção e reabilitação social através da geração de renda e trabalho na rede de atenção psicossocial do município de Camaragibe, Pernambuco.

Fez-se uma pesquisa-ação que segundo Bogdan e Biklen (2010), trata-se de uma investigação da ação empírica que exige a observação sistemática dos acontecimentos das (auto)observações dos autores e dos expectadores através de técnicas de entrevistas e a interpretação dos vestígios materiais que foram deixados pelos autores e expectadores.

Na investigação social existem quatro dimensões que descrevem o processo de pesquisa em termos de combinações dos elementos: 1) Há o delineamento da pesquisa de acordo com os seus princípios estratégicos, tais como a observação participante; 2) Há os métodos de coleta de dados, neste caso será usada a entrevista e a observação participante; 3) Há os tratamentos analíticos dos dados, tal como a análise de discurso que será utilizada nesta pesquisa (BOGDAN; BIKLEN, 2010).

Este trabalho se propôs a contemplar a pesquisaação que foi realizada com os participantes desta pesquisa. Segundo Michel Thiollent (2011, p. 14) “a pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo”.

Desta maneira, foi realizada a pesquisa - ação no Projeto Geração de Renda “Mentes que Fazem”, no período de março e abril de 2016, com 16 participantes, que foram os/as educandos/ as e 3 pesquisadoras (residentes do programa de saúde mental da UPE), que foram as educadoras deste processo. E, em dezembro do mesmo ano, foram realizadas 8 entrevistas com as pessoas que participaram da pesquisa-ação, com a finalidade de análise deste trabalho.

Todavia, nesta pesquisa-ação utilizamos a educação popular no seu processo de ensinoaprendizagem que se constrói a partir do diálogo verdadeiro, da produção do conhecimento partilhado e do processo de emancipação. Estamos falando de uma relação horizontal, pois a troca de experiências e conhecimentos entre educador/a e educando/a é constante e um não se sobrepõe ao outro. Paulo Freire (1996) diz que a educação popular só acontece quando o/a educador/a se coloca também como aprendiz, caracterizando um processo de formação contínua e progressiva de todas as pessoas envolvidas na aprendizagem.

Assim, esta pesquisa foi realizada no Projeto Geração de Renda, na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), do município de Camaragibe, Pernambuco. Ressaltou-se o potencial desse serviço em proporcionar novos circuitos para pessoas com sofrimento psíquico, possibilitando o desenvolvimento de técnicas e habilidades que possam resultar em trabalho e renda. Compreendemos a importância desse dispositivo previsto na Rede de Atenção Psicossocial e sua pouca disseminação no país, assim como no Estado de Pernambuco.

Camaragibe compõe, na I GERES de Pernambuco, a Microrregião II, junto aos municípios de Chã Grande, São Lourenço da Mata, Chã de Alegria, Glória do Goitá, Pombos e Vitória de Santo Antão. A RAPS de Camaragibe se apresenta da seguinte forma de acordo com Brasil (2015).

 

 

No campo da saúde mental, este munícipio conta com três Centros de Atenção Psicossocial (CAPS infantil, CAPS tipo II e CAPS ad), quarenta Unidades de Saúde da Família com quatro equipes NASF, nas quais há profissionais de saúde mental, quatro ambulatórios de psiquiatria e psicologia, quatorze Residências Terapêuticas.

Iniciado em 2005 a partir dos grupos de terapia ocupacional do CAPS II, o Projeto Geração de Renda, tem como objetivo geral “promover a inclusão das pessoas com sofrimento ou transtorno mental e/ou com necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas no mercado de trabalho, estimulando o potencial criativo, a solidariedade e a autoestima através da produção artesanal e outras atividades afins” (CAMARAGIBE, 2013).

O Projeto Geração de Renda existe em espaço próprio e é financiado pelas vendas de seus produtos, doações e pela verba aprovada pelo Ministério da Saúde. No quadro profissional está previsto a contratação de cinco arte educadores, porém, atualmente conta com apenas uma arte educadora e uma profissional de serviços gerais. As oficinas deveriam funcionar sob a supervisão de profissional de nível superior que no momento não compõe o quadro de funcionários.

Através da confecção de produtos artesanais, negociação e divulgação dos mesmos em feiras e eventos, acredita-se ser possível mostrar a comunidade a possibilidade do resgate da autonomia e a convivência com pessoas com sofrimento psíquico (CAMARAGIBE, 2013). Em sua concepção, o Projeto lida ainda com princípios como formação de vínculo, fortalecimento de autoestima, desenvolvimento afetivo, capacidade criativa de ressocialização.

Por conseguinte, as atividades que os participantes do projeto desenvolvem são oficinas de costura de roupas e tapetes, oficinas de reciclagem com aproveitamento de matérias e a criação de novos objetos, oficinas de bordados, colagem e pintura, bem como as oficinas de teatro, dança do ventre e as danças tradicionais da cultura pernambucana como o frevo e a ciranda.

Em relação à população participante que construiu do processo social em análise, constitui-se dos alunos e alunas (denominação usada por eles no Projeto Geração de Renda) que foram encaminhados dos dispositivos da RAPS de Camaragibe/PE. Ressaltamos que nesta pesquisa foram entrevistados e analisados 6 alunas e alunos e 2 trabalhadoras que participaram da pesquisa-ação que foi realizada no Projeto Geração de Renda, totalizando 8 entrevistas. E, que em sua maioria os participantes do Projeto Geração de Renda foram encaminhados pelos CAPS, alguns da Residência Terapêutica e outros da Unidade de Saúde da Família; ressalta-se que as trabalhadoras da RAPS, se configuram numa cuidadora da Residência Terapêutica e uma arteeducadora do Projeto Geração de Renda.

Segue abaixo um quadro dos/as 16 participantes do Projeto que realizaram a pesquisa - ação e destes 8 foram entrevistados:

 

 

Em relação ao processo de produção dos dados, foi utilizada a técnica de entrevista em profundidade (entrevista narrativa), para produzir os dados referentes à experiência haja vista que esta forma de entrevista aberta é bastante flexível, ajudando a explorar sentidos e significados do processo em curso, não havendo sequência predeterminada de questões ou parâmetros de respostas. Tem como ponto de partida um tema ou questão ampla e flui livremente, sendo aprofundada em determinado rumo de acordo com aspectos significativos identificados pelo entrevistador enquanto o entrevistado define a resposta segundo seus próprios termos, utilizando como referência seu conhecimento, percepção, linguagem, realidade, experiência. Desta maneira, a resposta a uma questão origina a pergunta seguinte e uma entrevista ajuda a direcionar a subsequente. A capacidade de aprofundar as questões a partir das respostas torna este tipo de entrevista muito rico em descobertas (DUARTE, 2005).

Ainda, sobre o processo de análise das experiências relatadas, utilizou-se a análise de discurso, filiada à escola francesa, que possui uma base epistemológica do construcionismo social e possui as seguintes características chaves: 1) A postura crítica com respeito ao conhecimento dado; 2) O reconhecimento de que as maneiras de como nós normalmente compreendemos o mundo são históricas e culturalmente específicas e relativas; 3) A convicção de que o conhecimento é socialmente construído; 4) O compromisso de explorar as maneiras com os conhecimentos, a construção social de pessoas, fenômenos ou problemas estão ligados a ações/práticas (GILL apud BOGDAN; BIKLEN, 2010).

Desta maneira, a análise de discurso segundo Rosalind Gill (2010), consiste numa leitura cuidadosa, que caminha entre o texto e o contexto, para examinar o conteúdo, organização e função do discurso. Neste caso, terão como categorias orientadoras o sentido do trabalho no contexto da Política de Saúde Mental, afim de auxiliar teoricamente as reflexões e análises do processo vivenciado na Pesquisa Ação realizado no Projeto Geração de Renda, na região metropolitana de Recife.

 

Resultados e Discussão

A grande maioria dos alunos e alunas do PGR são mulheres. Sendo assim, a pesquisa-ação que foi realizada de março a abril de 2016, participaram 14 mulheres e 2 homens. Em seguida, foram realizadas 8 entrevistas, que foram 7 mulheres e 1 homem. Por isso, neste trabalho, escrevemos no gênero feminino quando nos referimos as pessoas entrevistadas e participantes do PGR. A faixa etária variou entre 38 a 72 anos no geral, com uma predominância na faixa etária entre 40 a 50 anos.

Com relação à religião, as participantes declararam serem evangélicas ou católicas, e apenas duas sem religião. Quanto à cor, foram citadas as cores negra, parda, branca e morena, a maioria se autodeclarou da cor morena.

O tempo que essas pessoas fazem parte do PGR variou entre 3 meses a 10 anos, o que demonstra ser um grupo bastante heterogêneo quanto a vivência no projeto.

Em sua maioria as participantes foram encaminhadas pelo CAPS, algumas da Residência Terapêutica, outras de Unidade de Saúde da Família. Ressalta-se que havia duas trabalhadoras da Rede, uma cuidadora da Residência Terapêutica e outra arte-educadora do PGR.

Com relação à escolaridade, variou entre pessoas que não são alfabetizadas, e as que frequentaram a escola, algumas concluíram o ensino fundamental e outras o ensino médio.

Em relação a renda, a maioria das participantes tem o salário mínimo como renda familiar, da qual vivem essas pessoas, sejam aposentadas, beneficiárias de programas socais ou rendimento mensal da venda dos produtos que comercializam.

Com intuito de nos conhecermos mais, também na caracterização das participantes, perguntamos quais eram os seus sonhos, percebemos que estes variaram entre:

a) A família - “morar na própria casa, tomar conta do marido, que seja bom, carinhoso e trabalhador; ajude no serviço de casa (Participante 2)”;

b) “Ser feliz (Participante 1)”;

c) No âmbito do trabalho: “Ser médica (Participante 2)” “Arranjar um trabalho com carteira assinada (Participante 3)” “Ter um salário digno (Participante 8) e a própria autonomia” “Ter mais liberdade para ir e vir, sem cobrança da família, sem achar que sou criança (Participante 5)”.

Diferente das participantes que realizaram a pesquisa - ação e foram entrevistadas, o participante 7 relatou não ter sonhos.

O trabalho ocupa um lugar central na vida das pessoas, contribuindo para a constituição de sua identidade, influenciando a percepção sobre si mesmo e sobre o mundo. Nos relatos das participantes da pesquisa, por exemplo, percebemos que realizar as atividades de trabalho trazia a possibilidade de se obter o reconhecimento, de se sentir parte de um grupo.

Assim, o trabalho é uma ação humana e coletiva que constitui o ser social. Desta maneira, foram identificados várias ações e atividades de trabalho pelas participantes do Projeto Geração de Renda (PGR), as quais foram: auxiliar de cargas e descargas; cuidadora de residência terapêutica; arte-educadora; vendedora de quitanda. Trabalho enquanto arte disse a participante 2: “Faço teatro, canto e sou atriz”.

Muito problematizado foi a atividade de dona de casa, colocado pela participante 3: “Não trabalho, só faço o serviço de casa”. Logo, não foi reconhecido como trabalho pelas participantes, acreditamos que pela falta de reconhecimento na sociedade desta atividade, bem como por não gerar renda de forma direta para a família. Porém, depois de um diálogo recheado de questionamentos e respostas, chegamos à conclusão que ser dona de casa faz parte da produção e reprodução da vida humana, reconhecemos que existem tarefas específicas que são necessárias para a vida em sociedade. No final do debate, a mesma participante fez uma nova afirmação: “Sim, trabalho e muito como dona de casa”.

O tipo de trabalho mais exercido pela maioria das participantes no PGR é o de artesã/artesão, a participante 4 disse: “Faço artesanatos variados. Amo o que faço e vendo em Camaragibe nas segundas e quartas, sou artesã!” No entanto, para a participante 5 esse reconhecimento é fragilizado: “Sou apenas artesã no PGR, trabalho com MDF em caixinhas, tapete, sabonete, bijuteria”; expressa a dificuldade de reconhecer essa atividade como um tipo de trabalho.

Compreendemos que, na maioria das vezes, a invisibilidade do trabalho afeta a valorização e reconhecimento da artesã. Por isso, quando associamos essa forma de trabalho, no modelo capitalista, que consequentemente exclui do mercado de trabalho as pessoas consideradas inaptas e/ou improdutivas, a inclusão social pelo trabalho passa a ser um grande desafio.

Todavia, acreditamos que através da confecção de produtos artesanais, negociação e divulgação dos produtos em feiras e eventos, seja possível o PGR mostrar à comunidade, a possibilidade do resgate da autonomia e a convivência com as pessoas que têm experiência com a loucura. Sendo assim, reconhecemos que o PGR lida com princípios como formação de vínculo, fortalecimento de autoestima, envolvimento afetivo, capacidade criativa e novas sociabilidades dentro do território.

Ainda, algumas participantes atribuíram a atividade de trabalho a maternidade e a higienização pessoal, outro ponto de reflexão e problematização. A princípio, sentimos dificuldade de fazer esse reconhecimento, no entanto, chegamos à conclusão que partindo da lógica que na higiene pessoal está contido o cuidado de si e que essa atividade influencia na sua relação com o mundo, passamos a reconhecê-la enquanto trabalho. Na releitura foucaultiana feita por Bub et al. (2006, p. 153), o ‘cuidado de si’ é um construção moderna donde “os trabalhos que um sujeito realiza vinculados ao cuidado de si aparecem como uma fórmula com a qual deve-se resistir aos embates e processos de (des)subjetivação por parte do Estado”, portanto, o ‘cuidado de si mesmo’ não deve estar desvinculado do ‘conhece-te a ti mesmo’.

Na maternidade está contida a reprodução social da vida. Compreendemos que há socialização e subjetividades envolvidas, que podem não gerar renda, mas geram vida, assim como, nos coloca na condição da realização do ser social e determina a identidade dessas pessoas. Assim, concordamos com Diniz (2016) quando ela afirma a maternidade como trabalho social e não como mera responsabilidade individual da mulher, mas da sociedade que recebe aquele novo cidadão ou cidadã na plenitude dos seus direitos.

A discussão sobre os “sentidos” atribuídos ao trabalho e como os seres humanos podem fazer uso do trabalho como instrumento de expressão de sua liberdade e desejos, está relacionado a forma de como é percebido e vivenciado no seu cotidiano. É por isso que o trabalho pode ser entendido como algo que potencializa a vida (ANTUNES, 2009).

Porém, o que se percebe, a depender da forma como está socialmente organizado, é que ele tende a receber outros sentidos distintos da sua condição original, que estão mais associados à opressão e à dependência. Ou seja, o trabalho tem grande potencial de representar algo bom, prazeroso de ser vivido, mas, muitas vezes, é visto como algo ruim, desagradável de ser executado.

As pessoas que foram entrevistadas iniciaram sua trajetória de trabalho ainda na infância ou na adolescência, isto é, começaram a trabalhar muito cedo, como coloca o entrevistado abaixo sua trajetória de trabalho:

Eu comecei a trabalhar na infância, porque os jovens de hoje só pode trabalhar acima de 18 anos, né? E eu comecei a trabalhar com carteira assinada aos 14 anos, saia de casa às quatro da manhã e às vezes chorava dentro no ônibus, porque não sabia o que estava fazendo, saia de casa para trabalhar na fábrica às quatro da manhã, quando largava de duas ia para escola, quando chegava em casa às oito da noite, tomava banho, tomava um prato de sopa e me deitava e quando pensava que estava dormindo, já estava me acordando para ir trabalhar de novo... Ao passar dos tempos fui para o exército, ao sair do exército voltei a trabalhar na fábrica; quando sai da fábrica, fui trabalhar no carro forte, trabalhei quinze anos numa empresa, sai dessa empresa porque fechou a BANORTE. E, fui pra PRESERVE, trabalhei três anos e seis meses, foi quando aconteceu um acidente comigo, levei quatro tiros, o médico disse que estava tudo bem comigo e que ia ter uma vida de príncipe, e essa vida de príncipe eu espero até hoje, que já estou com 59 anos esperando essa vida de príncipe aqui na terra. (Participante 7)

Percebe-se como é atribuído ao trabalho, o aspecto ruim, como algo prejudicial, que comprometeu e criou marcas na sua vida, a qual vive buscando superar o adoecimento causado, como coloca em seguida:

[...] e hoje me sinto uma pessoa que não posso pegar em peso, não posso fazer esforço por causa dos estilhaços que tenho espalhado dentro do meu corpo, que os tiros que levei é daquele que quando bate dentro do corpo, ele espalha estilhaço, então do meu pescoço até a bacia são 32 estilhaços que eu não sabia, após fazer o exame de ressonância, que foi acusado esses 32 estilhaços espalhado no meu corpo, que tem na bacia, tem na coluna, tem no braço direito, tem no braço esquerdo, tem no punho direito, tem no punho esquerdo, uma vez ou outra aparece no couro cabeludo da cabeça, e isso aí me tira de vez em quando do sério, e eu tenho que levar isso aí no dia a dia até o dia em que Jesus permitir. (Participante 7)

No entanto, para outras participantes mesmo começando a trabalhar na adolescência, expressaram a satisfação em realizar o trabalho ao longo das suas vidas, por fazerem o que gosta, disseram:

Eu sou artesã... Aí eu comecei tinha dezessete anos, fazendo trabalho manual, fazendo tapeçaria, trabalhei vinte anos fazendo tapete na mão, aí depois que eu casei ainda continuei trabalhando em fazer tapetes e depois fui trabalhar em fábrica, mas fiquei sempre fazendo meus artesanatos. Trabalhei seis anos na fábrica, trabalhei dois anos em outra, e também trabalhei em confecção, mas sempre fiz meus artesanatos, e até hoje sempre faço meus artesanatos, faço crochê, tapeçaria, e também faço os teatros, né... e eu amo o que faço, enquanto Deus não me levar eu estou aproveitando. (Participante 4)

Como eu já trabalhava pela comunidade, fazia parte da associação de mulheres junto da Baixinha [Bairro do município de Camaragibe], onde moro até hoje, aí minha mãe fazia parte e eu também, assim como eu tinha habilidade com o público naquela área no trabalho; houve a seleção da qual participei e estou até hoje, mas assim, é uma coisa que fui aprendendo dia a dia, mais ainda porque assim estou dando o que sei e aprendendo, e assim participei da desospitalização que ia para o hospital da retirada dos pacientes que hoje são moradores e até hoje, eu amo o que faço, amo o que faço!!!. (Participante 1)

Percebe-se também que é possível a percepção dos sentidos diferentes na realização do trabalho de uma pessoa, onde hora vai sentir a satisfação por realizá-lo e hora da angústia e o desprazer por realizar o seu trabalho, como coloca outra participante:

Eu sinto prazer em ver, quando a gente pode compartilhar um pouco do que a gente sabe, porque eu sempre digo, aquele que sabe tudo, não sabe nada, então a gente está todo dia aprendendo, então assim, eu sinto um prazer em compartilhar e aprender, é isso que sinto... bem estar quando está tudo ok e mal estar sempre quando a gente precisa das coisas e não tem, aí eu me sinto desmotivada, tipo a falta do som é ruim porque força a minha voz, aí eu fico rouca, e outras coisas mais, agora mesmo, eu tive que descer um botijão de água, porque não tinha água e tive que pedir, como se eu tivesse pedindo favores e não é bem assim a história, teria que ter... Aí assim, quando estou fazendo atividades aqui, dependendo da atividade me dá prazer, e outras atividades eu fico entristecida porque não era pra mim estar fazendo, porque na realidade a minha função era para estar compartilhando junto com as meninas, num projeto de uma bolsa, desmancha, vamos fazer de novo... eu achei que seria isso, mas quando eu cheguei a história foi diferente, a realidade é outra... o serviço é mais pesado. (Participante 6)

Por isso, descobrimos que são muitos os sentidos atribuídos ao trabalho, que tanto pode ser percebido como fonte de prazer e reconhecimento pessoal, como pode ser fonte de sofrimento, ameaçando a saúde física e mental de quem o realiza, podendo até desencadear transtornos mentais, como ocorreu com algumas participantes da pesquisa.

Todas as pessoas entrevistadas alegaram que entendem a realização do trabalho como uma necessidade para a sobrevivência humana, seja financeira, seja ocupacional, e que o desemprego, também é motivo de grande sofrimento e limitações, como é citado pela participante:

Passei mais de três anos morando de favor, aí umas vezes umas pessoas me chamavam para ficar com paciente, eu ia no hospital e ficava e arranjava um trocado, mas emprego mesmo, não... eu trabalho também ensinando numa escola, vai fazer uns seis meses que eu fiquei ensinando numa escola, aí quando foi agora o vereador me pediu pra eu ficar ensinando pra ele em casa, ia passar minhas coisas pra dentro e ia ficar ensinando pra ele na minha casa, e, ele ficou pagando o aluguel da minha casa, e as mães pagando R$30,00, mas só que depois que ele ganhou a eleição, aí ele não apareceu mais... Aí voltei a ficar com problema de novo, aí estou numa situação que estou com quatro aluguel para pagar, porque quem pagava era ele, e devolveu os papéis e disse que não ia pagar mais... Aí eu agora só Jesus na minha vida, agora eu não sei nem o que vou fazer, voltei a ficar desempregada, está a casa cheia de alunos, mas sem dinheiro... Aí ficou difícil pra mim, porque não é que eu não tenho aquele trabalho, eu sempre trabalhei, quando eu cheguei aqui passei trabalhando na casa das meninas, passei um ano, dois anos, mas só que esta essa crise, aí tem gente que está sem condições mesmo de pagar, mas pra mim emprego é qualquer emprego; pra mim não importa ser o melhor não, pra mim o importante é trabalhar... Quando eu cheguei aqui na Geração de Renda sem ter nada em casa para comer, meus meninos também tudo com fome, a menina disse vai lá pra cima pelo menos tu aprende um curso e vai parando de se preocupar com trabalho, que de repente aparece, aí quando eu subi aqui era até M. que estava aqui, eu não tinha nem conhecido J., eu vinha ficava aqui, aí eu disse: posso trazer meus meninos também, tenho dois que estão sem comer nada? Ela disse: traz! Aí eu vinha, eles aprenderam também (choro, muito emocionada) [...] Mas, a situação quando eu cheguei aqui estava tensa, não tinha nada. (Participante 8)

Entretanto, existem atividades que promovem a saúde mental, assim como outras a prejudicam. Não se trata necessariamente da atividade em si, mas principalmente dos vínculos, das relações interpessoais, e da forma como o processo de trabalho está organizado, a organização e o planejamento das atividades nas oficinas do PGR, por exemplo, são flexíveis, para que os/as participantes expressem seus desejos e suas necessidades. Desta forma, o trabalho passa a funcionar como um mediador de saúde e, nesse contexto da saúde mental consegue se aproximar do processo da reabilitação psicossocial, bem como da inclusão social.

Nos serviços substitutivos da RAPS, ainda é muito realizado o trabalho assistido ou protegido, que é a realização de atividades que servem para ocupar a mente e/ou o tempo ocioso, buscando respeitar o tempo e a limitação de cada pessoa com sofrimento psíquico, podendo ou não, gerar renda. Esse é o caso do PGR que, neste momento, não consegue superar o trabalho como terapêutico, como é bem enfatizado pela participante abaixo:

O Geração de Renda não tem que gerar só renda porque assim, é terapia? É! Porque ocupa a mente da gente, a gente vem fica mais alegre, conversa com os colegas, encontra com os colegas... E com relação a só gerar renda não pode, acho que não pode porque assim cada um tem sua limitação, vai que chega o dia em que cada um tem sua quantidade de trabalho e aquela pessoa não está muito bem, como é que fica? Tem que se respeitar o limite dele, entendeu? Tem que se ter o respeito ao limite dele, portanto não pode ser só para gerar renda, tem que ter dança, tem que ter teatro, que é onde a gente desenvolve muito, é todo mundo muito alegre, é onde pode ser mais divulgado bastante a Geração de Renda, é uma oportunidade maior de ser divulgado o Geração de Renda, portanto não poder ser só voltado para gerar renda de jeito nenhum.(Participante 5)”

Outro ponto importante é que, na grande maioria das vezes, os participantes do PGR da área de saúde mental se envolvem apenas com a produção de materiais. Dessa forma, não pensam coletivamente outros processos como venda, compra de materiais, organização do espaço, logística, divisão de tarefas, deixando passar a grande oportunidade do exercício da autogestão, da autonomia e da cooperação. Como que se faz reabilitação sem dar a oportunidade de o sujeito experimentar os diversos papéis possíveis e desejáveis em um espaço? A autogestão, vivenciada de forma mais forte nos empreendimentos em economia solidária não deixa de ser desafiadora e de ser vivenciada.

Todavia, existe participante que compreende o espaço do PGR como um potencial para realizar o trabalho com uma rede social que faz toda a diferença em sua vida, mas pela situação que o PGR está vivenciando encontra-se impossibilitada de realizar o trabalho como gostaria:

Aqui no Geração, depois que eu vim pra cá melhorou bastante para mim, tem vez que está assim deprimida aí já está marcado para vim, quando vem pra cá, faz as atividades, também participa das atividades que tem né... aí foi bom, pra mim foi ótimo, gostei muito, só quando fechar, espero de nunca fechar aqui, espero mesmo, tenho fé em Deus de nunca fechar, porque aqui é que a gente melhora um pouco de situação de vida e como é que se diz... financeiro, porque a gente trabalha, de primeiro tinha um banco lá na Rua Eliza, que a gente fazia aqui e botava lá, depois não colocou mais... a gente fazia feirinha tudinho e depois nada disso ficou mais... Aí ficou mais ruim por causa disso, porque a gente fazia o trabalho aqui e também a gente levava o que a gente fazia em casa, aí agora não tem, aqui cada vez pior... Por causa de tanto roubo que teve, levaram tudo, a gente ficou... cada vez está pior aqui a Geração. (Participante 4)

De modo geral, percebemos que as Políticas de saúde mental não dão conta de sua prática. Fica claro que, apesar de garantida nas leis e portarias, os serviços de geração de trabalho e renda costumam passar grandes dificuldades por conta da negligência dos gestores. Isso fica mais evidente quando falamos da região Nordeste. Soma-se a isso a falta de financiamento garantido pela União para custeio mensal desses serviços. No PGR, por exemplo, é notória a negligência por parte da gestão municipal, refletindo na precária estrutura física, na falta de ferramentas e condições de trabalho e na ausência de um projeto político-pedagógico orientado para a transformação, de fato, da vida econômica e social das pessoas envolvidas.

Todavia, acreditamos que o trabalho a partir dos princípios da Reforma Psiquiátrica é um direito e deve ser respeitado, o qual não deve ser reduzido apenas à condição do tratamento. A relação que a pessoa tem com o trabalho, constrói uma rede de significados que influenciam outras esferas da sua vida. É no trabalho emancipado que a pessoa vai encontrar os elementos de construção de sua identidade, por meio da relação com a cultura, da auto realização e do reconhecimento social, ou seja, a cidadania. Entendemos que a transição entre forma distintas de trabalho (de explorado ao emancipado) é algo longo e requer processos de (des-re)subjetivação constantes do trabalho, podendo passar pelo trabalho assistido, como no caso dos participantes deste estudo.

Assim, para Benedetto Saraceno (1996), o trabalho é uma conversa entre o que se quer, o que se precisa e o que se deseja. É o meio de sustento e também de auto realização, em que se produzem e trocam mercadorias e valores, provocando a construção de redes e relações entre sujeitos sociais. Portanto, é nesse contexto em que se insere o Projeto Geração de Renda Mentes que Fazem.

Nas análises provocadas pela pesquisa-ação foi compreendido que o Projeto Geração de Renda se insere na reabilitação psicossocial por ser um espaço que vem produzindo vidas e subjetividades, proporcionando bem-estar e a construção de vínculos, como expressa o participante 7:“Somos gente aqui dentro, mas nos ônibus, CAPS e postos de saúde somos discriminados”. Também é o que sente e expressa a participante 5 “Os melhores momentos da minha vida são aqui no Projeto Geração de Renda, com J., os amigos, melhor que em casa”.

As participantes também reconhecem o espaço como de aprendizagem de novas habilidades para fazer artesanatos e possibilitar a geração de renda, bem como algum caminho para gerar emancipação. Como podemos observar, na fala da participante 8, “O geração de renda me ensinou a fazer artesanato, aprendi esse trabalho, faço em casa e levo pra vender, tenho minha renda para as minhas necessidades que preciso comprar”.

Outro ponto que analisamos foi o entendimento daquele espaço enquanto lugar terapêutico, a partir das falas recorrentes “me ajuda a não surtar”, “aqui é o remédio que preciso”, “deixa a mente ocupada”. Entendemos que as relações sociais constituídas nesse espaço são mecanismos para o processo de reabilitação psicossocial, e, portanto, essa rede de afeto viabiliza a manutenção das condições de saúde mental. Entretanto, fazemos a reflexão de que essa rede está sendo constituída para dentro do espaço institucional, não foram citados momentos em que a rede de afeto do PGR se encontra com outras redes intersetoriais e se reinventam para além do campo da saúde mental.

Acreditamos que o encontro das pessoas com experiência na loucura com as pessoas ditas “normais” nas iniciativas de trabalho e geração de renda possibilitaria a mudança da concepção desses espaços enquanto trabalho terapêutico e institucionalizado para espaço de trabalho com sentido, significado e valor social, efetivando, de fato, a participação na vida social. Vemos assim uma possibilidade de encontro com as práticas da economia solidária. Podendo ainda, diluir a cisão entre normal e patológico, promovendo relações mais sólidas e promissoras, havendo, de fato, inclusão e rompendo o ciclo de entendimento desses espaços apenas como terapêutico, no qual o trabalho é visto como ferramenta ocupacional.

Nas discussões durante a pesquisa-ação surgiram muitas falas das participantes a respeito do preconceito vivido - inclusive em outros serviços de saúde mental - que vão afastando-as do convívio social e como isso fica mais evidente quando se trata de espaços formais de trabalho. A lentidão, o medo, as mãos trêmulas pelo uso da medicação, as pernas inquietas, a fala acelerada, o histórico de longa internação em hospital psiquiátrico não tem vez onde a produtividade e consumo é quem dita às regras do jogo. As diferenças que cada uma carrega só podem ser acolhidas em um espaço de saúde? Existe um espaço apropriado para o sofrimento?

Apostamos também na importância da ampliação dos serviços substitutivos da RAPS, incluindo os projetos de geração de renda no estado, além de espaços de discussões e formação, fóruns compartilhados entre saúde mental e economia solidária, por exemplo. Desse modo, é importante também que essas discussões e práticas estejam pautadas na perspectiva Nordestina de Economia Solidária, a qual extrapola a visão empreendedorista do trabalho e amplia para a construção de novos tipos de relações sociais norteadas pelo Bem Viver.

Desse modo, vemos como fundamental a aproximação da economia solidária e saúde mental nas práticas realizadas no estado de Pernambuco. Existem alguns serviços de saúde mental que tem pequenas iniciativas de geração de renda ou oficinas de habilidades manuais que não conseguem se desenvolver e construir suas redes de vendas, trocas, comunicação, qualificação, coletividades. Autogestão é uma palavra que circula pouco nesses espaços-sementes de geração de renda da saúde mental e a prática da reabilitação psicossocial acaba se restringindo ao apaziguamento de sintomas que incomodam, sem construir outros caminhos possíveis. Autonomia é palavra até conhecida, mas será que, de fato, está no nosso horizonte de cuidado dentro da saúde mental? E nas relações sociais na lógica da economia solidária?

Neste sentido, a aproximação dos serviços de saúde mental à economia solidária não deve se dar unicamente na perspectiva de criação de empreendimentos, transformando as participantes em micro e pequenas empresárias.

Ao valorizar somente a inclusão pela renda, valorizamos ainda mais o consumismo, fortalecendo o modelo capitalista que exclui, separa as pessoas e dá méritos a quem tem mais sucesso e acumula coisas e bens (DUBEUX, et al., 2012). A aproximação das práticas de saúde mental e economia solidária deve se dar a partir do protagonismo das mulheres e no desejo por outro mundo possível, através da construção de novas relações econômicas, sociais e ecológicas construídas e reconstruídas cotidianamente pelos sujeitos no território.

Consideramos, que o PGR precisa ter no seu horizonte a perspectiva da economia solidária, do trabalho emancipado, em prol da reabilitação psicossocial e pela busca do Bem Viver das pessoas com experiência na loucura.

No Sistema Único de Saúde (SUS), base para a política de saúde mental, há um projeto de sociedade, projeto esse que dialoga diretamente com a Educação Popular e a Economia Solidária. A saúde mental brasileira parece conversar pouco com outros setores fora do campo da saúde, sendo fundamental que esse diálogo aconteça para que haja construção coletiva entre diferentes saberes e setores para concretizar projetos de vida emancipadores. As trabalhadoras e trabalhadores da saúde mental não tem seus processos de formação pautados na educação popular, por exemplo. Poucos projetos de geração de renda dialogam verdadeiramente com a economia solidária, principalmente quando fazemos o recorte da região Nordeste, sendo importante maior produção teórica e expansão de práticas que fortaleçam esse caminho.

No processo da pesquisa-ação, percebemos que foi possível cultivar, mesmo que ainda como semente, a reabilitação psicossocial das participantes, florescendo a promoção de autonomia, com relação a pensar aquele espaço enquanto direito, de engajamento na militância, apesar dos limites concretos de engajamento no trabalho emancipado, visto o modelo de sociedade no qual ainda estamos inseridos, a conjuntura nacional política de golpe e o próprio contexto político do município.

Acreditamos que o processo da reabilitação psicossocial, que tem como fim a contratualidade entre os três cenários de vida: moradia, rede social e trabalho, precisa ser pautado enquanto um processo educativo popular, em prol da produção da autonomia, com base nos princípios da pedagogia da autonomia de Paulo Freire. Essa perspectiva ainda não está sendo pautada nos escritos sobre reabilitação psicossocial e, portanto, nos provoca a fazer outras pesquisas, estar em campo e construir com todos os atores dessa história o processo de emancipação dos sujeitos com experiência na loucura.

 

Considerações Finais

Mergulhar no sentido do trabalho para as participantes do Projeto Geração de Renda “Mentes que Fazem”, nas teorias e práticas tanto da saúde mental, como da economia solidária significou abandonar métodos ultrapassados, conceitos préestabelecidos e construir coletivamente um saber comum que, ao ser partilhado, mudou o estar no mundo de cada uma envolvida no processo. Laços afetivos foram criados, a luta antimanicomial disseminada e as primeiras aproximações entre saúde mental e economia solidária, no estado de Pernambuco, começaram a se desenhar.

Assim podemos dizer que os sentidos encontrados no discurso das participantes se baseiam em diferentes concepções de acordo com as suas vivências, atribuindo a promoção da saúde ou do adoecimento, ao prazer e ao desprazer, mas sobretudo o sentido do trabalho é percebido como importante a sua realização para suprir as necessidades da sobrevivência humana, e desta maneira, é tido como potencialidade para a reprodução da vida. No entanto, em seu conjunto pode-se dizer que o trabalho realizado pelas participantes no Projeto Geração de Renda encontrase numa tensão de existir o trabalho terapêutico e o trabalho produtivo, ficando evidente que hoje está sendo realizado o trabalho protegido e terapêutico ao invés do trabalho emancipado. Pode ser que este seja o caminho a ser trilhado, e à medida que forem atribuindo novas concepções e realizando novas práticas consigam superar o trabalho protegido para vivenciar o trabalho emancipado no Projeto Geração de Renda “Mentes que Fazem”.

O processo de reabilitação psicossocial para sujeitos com experiência na loucura precisa ir além de gerar renda e trabalho, tornando-os apenas como trabalhadores informais da economia popular. A reabilitação psicossocial, quando atrelada ao trabalho emancipado, promove a participação democrática e constrói cidadania, autonomia e coletividade. Dessa forma, há um terreno fértil para a construção de novas relações consigo e com os outros pautadas no Bem Viver.

Educação popular, saúde mental e economia solidária se cruzam quando colocam como norte um projeto de sociedade emancipadora dos sujeitos, tendo como base o diálogo, a construção coletiva e o respeito às singularidades. A Reforma Psiquiátrica, o SUS, a Economia Solidária e a Educação Popular são projetos em construção, são horizontes que caminhamos buscando alcançar em meio a tropeços, retrocessos, lutas e conquistas. São elos de uma transformação maior.

 

Referências

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Tramitação

Recebido em: 26 out. 2018

Aceito em: 05 dez. 2018

 

Notas

1O conceito de exclusão seria o descompromisso político com o sofrimento do outro e a introdução da ética e da subjetividade na análise sociológica da desigualdade social para além das interpretações legalistas e minimalistas de inclusão, como as baseadas em justiça social e restritas à crise do Estado e do sistema de empregabilidade (SAWAIA, 2006).

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