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Semina: Ciências Sociais e Humanas

versão On-line ISSN 1679-0383

Semin., Ciênc. Soc. Hum. vol.39 no.2 Londrina jul./dez. 2018

 

Artigos

Globalização e a paradoxal intersecção entre a modernização reflexiva e modernização periférica na sociedade brasileira: imunização e negação da modernidade no caso da Igreja Universal do Reino de Deus

Globalization and the paradoxal intersection between reflective modernization and peripheral modernization in brazilian society: immunization and refusal of modernity in the case of the Universal Church of the Kingdom of God

 

 

Antonio Carlos Boaretto

Universidade Estadual Paulista

 

 


Resumo

Norteado pelo método analítico e interpretativo da Sociologia do Conhecimento alemã de Karl Mannheim, assim como pelas referências teóricas, sobretudo, de Ulrich Beck, este artigo procura tratar do complexo processo ambivalente presente na intersecção entre os valores culturais da segunda modernidade; impostos pela globalização do capitalismo na sociedade brasileira, com os nossos peculiares processos de modernização tardia e periférica apontados por Jessé de Souza. Demonstrando que ao apontarem para a presença do mal; através da personificação da figura do diabo, nas próprias relações sociais que foram degeneradas pelo individualismo excessivo, a Igreja Universal do Reino de Deus realiza a negação da própria modernidade, mediante o não reconhecimento de novos direitos das identidades socioculturais emergentes em nosso país. Realizando um processo de segregação e exclusão da sociedade através do paradigma imunitário do direito e, traduzindo, o legado de nosso peculiar processo de modernização tardia, periférica e conservadora.

Palavras-chave: Globalização. Segunda modernidade. Modernização periférica. Imunização. Conservadorismo.


Abstract

Guided by the analytical and interpretive method of Karl Mannheim’s German Sociology of Knowledge, as well as by theoretical references, especially by Ulrich Beck, this article seeks to deal with the complex ambivalent process present at the intersection between the cultural values of the second modernity; imposed by the globalization of capitalism in Brazilian society, with our peculiar processes of late and peripheral modernization pointed out by Jesse de Souza. Demonstrating that by pointing to the presence of evil; through the personification of the figure of the devil, in the very social relations that have been degenerated by excessive individualism, the Universal Church of the Kingdom of God realizes the denial of modernity itself, by not recognizing new rights of emerging sociocultural identities in our country. Performing a process of segregation and exclusion of society through the immune paradigm of law and, translating, the legacy of our peculiar process of delayed, peripheral and conservative modernization.

Keywords: Globalization. Second modernity. Peripheral modernization. Immunization. Conservatism.


Introdução

Partindo-se das considerações de Max Weber (2009) quanto à especificidade metodológica da sociologia compreensiva, tem-se a tarefa de tornar inteligível tanto o que significa e o que representa para os crentes e fiéis os conteúdos morais, valorativos, simbólicos e teológicos da figura do diabo, bem como o que significa para este mesmo grupo de indivíduos a luta que contra ele se trava, a ponto de tornar legítimo o espírito combativo da guerra enquanto reflexo dos nossos peculiares processos de modernização periférica que ainda persistem com seu conservadorismo na sociedade brasileira, não tão somente no campo religioso. Desse modo, esclarece-se que o conteúdo motivacional norteador da eleição e desenvolvimento desta ação e relação social corresponde, em última instância, à construção social da segurança e da certeza, à revitalização do ânimo e do reconhecimento psicossocial dos sujeitos (em outros termos, à busca por novas formas de objetivações valorativas assentadas sobre modos de vidas seguros; à busca por refúgio e proteção às sensações de sofrimento e desamparo sócio-psíquicos e à busca pela esperança atualizada no tempo presente) que, por sua vez, é obtida através do exorcismo e banimento desta entidade e figura simbólica que representa uma espécie de mal absoluto, responsável por causar uma infinidade de maus e desgraças na vida dos indivíduos: desemprego, doenças e demais problemas graves de saúde, vícios, prostituição, falências, problemas conjugais, consciência da dúvida e do medo, solidão e etc.

Todavia, o método compreensivo da sociologia de Max Weber não nos fornece a possibilidade de aprofundar o raio de alcance do problema, no sentido se apreender todos os amálgamas e irracionalidades possíveis que se suscitam com as alterações e modificações sociais e estruturais que caracterizam e singularizam o processo de transição da primeira para uma segunda modernidade que se impõe sobre a sociedade brasileira com o processo de globalização contemporânea do capitalismo. Assim como de se identificar as íntimas afinidades existentes entre tais e radicais processos ambivalentes de intersecção entre os valores culturais da segunda modernidade com o nosso legado anômalo e excludente de acesso ao moderno; em suma, de uma modernização periférica que ainda carrega consigo seus traços conservadores.

Nesse sentido, para o caso peculiar do problema proposto pelo presente trabalho, além de significarem para os sujeitos crentes e fiéis as consideradas funções sociais de sua existência, tais ideias e valores religiosos postos em questão, por sua vez, “não são considerados na forma em que se apresentam, mas interpretados à luz da situação de vida de quem as exprime” e, por conseguinte, “condicionados pela mesma situação social, são sujeitos às mesmas ilusões” (MANNHEIM, 1986, p. 52-54).

Globalização, cultura e modernização reflexiva: os impactos da individualização na era da hipercompetitividade

Em princípio, deve-se ficar claro que o presente trabalho se concentra, sobretudo, sobre os impactos e efeitos colaterais nas próprias subjetividades humanas dos indivíduos modernos (em sua própria intimidade psíquica), desencadeados pela radicalização dos processos de modernização em tempos de globalização. Nesse sentido, portanto, todo esforço analítico e interpretativo empreendido por este trabalho se repousa sobre os sentidos socioculturais desse poderoso processo civilizacional de nova ocidentalização no mundo.

Tal como apreendido por Bodei (2004), diante de uma configuração histórica marcada por profundas crises políticas, declínio das ideologias políticas revolucionárias após a derrocada do antigo bloco soviético e do comunismo ateu. De modelos políticos alternativos ao capitalismo, do poder de coesão dos partidos políticos de massa ao abalo das identidades políticas e econômicas de classe e, sobretudo, do abalo sofrido pelo Estado-nação em tempos de globalização no que diz respeito ao seu respectivo papel de garantidor de direitos sociais e trabalhistas, destaca-se no surgimento da figura heroica do indivíduo moderno como modelo ideal de sucesso a ser seguido (EHRENBERG, 2010). De um indivíduo empreendedor de si mesmo, capaz de se automotivar, se autocontrolar, de ser autoconfiante, se autodisciplinar, se autoconstruir e tornar-se bemsucedido em um atual estágio alcançado pelos processos de modernização dominados pelos riscos, incertezas e indeterminações globais em relação às perspectivas de futuro.

A globalização contemporânea do capitalismo corresponde a um poderoso projeto civilizacional de nova ocidentalização do mundo, simultaneamente socioeconômico, político e cultural (BECK, 2005), que alterou de modo radical as antigas e clássicas formas de representação das instituições da realidade social brasileira que se configura a partir de meados da década de 1990 do século passado. Enquanto novo processo civilizacional de ocidentalização do mundo esclarece-se que a noção de processo civilizacional aqui empregada, é largamente norteada pelas considerações de Norbert Elias (1994):

O conceito de ‘civilização’ refere-se a uma grande variedade de fatos: ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos, às ideias religiosas e aos costumes. Pode se referir ao tipo de habitações ou à maneira como homens e mulheres vivem juntos, à forma de punição determinada pelo sistema judiciário ou ao modo como são preparados os alimentos (ELIAS, 1994, p. 23).

Eis que aqui, nessas breves passagens introdutórias de sua obra, encontra-se já esboçada uma das grandes dimensões vislumbradas pela expressão processo civilizador. Nela, tem-se que subjacente a todo processo civilizatório, há como correlato, a existência de um processo de ressignificação dos modos e estilos de vida, isto é, das condutas e comportamentos sociais. Ademais, por outro lado, há ainda outro elemento semântico que atribui força e densidade à expressão aqui referida e empregada por Elias (1994) e que, por sinal, é valiosa aos nossos interesses investigativos. Trata-se do sentido referente à dimensão eurocêntrica do mundo, mais precisamente, do poder de ocidentalização do mundo – ou seja, a noção vitoriosa de civilização implica um processo de difusão de modos e estilos de vida, de condutas e de comportamentos sociais.

Do ponto de vista sociocultural, o processo de globalização contemporânea do capitalismo contribuiu significativamente para com o correlato processo de universalização de um valor também muito peculiar de liberdade individual (BECK, 2003). Àquele referente aos modos e estilos de vida ligados ao “way of life” americano, das liberdades individuais quase que totalmente restritas à lógica do mercado, do consumo de massa, do culto do entretenimento e da expansão dos modos de vida hedonistas norteados pela busca interminável do princípio do prazer. Trata-se do valor da liberdade individual consubstanciado pelo discurso oficial e hegemônico da ideologia neoliberal do mercado e da cidadania regulada pelo mercado (IANNI, 2011).

O neoliberalismo é, em princípio, uma teoria das práticas e medidas político-econômicas que se assentam sobre a proposição de que o bemestar humano pode ser mais bem desenvolvido ao se liberar as ações e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de um contexto sócio institucional caracterizado pela defesa de sólidos direitos de propriedade privada, livres mercados e de livre comércio. Trata-se da valoração positiva e ideológica que subjaz o potencial inventivo e criativo humano em condições favoráveis ao exercício pleno das liberdades individuais.

Porém, como é de conhecimento geral, “nenhum modo de pensamento se torna dominante sem propor um aparato conceitual que mobilize nossas sensações e nossos instintos, nossos valores e nossos desejos, assim como as possibilidades inerentes ao mundo social que habitamos” (HARVEY, 2011, p. 15). Todavia, é sabido que o capitalismo moderno, tal como já o fora apreendido por Max Weber (2004), corresponde a um sistema que, sob muitos aspectos, aproxima-se muito do absurdo e do irracional, pois, como dirão Boltanski e Chiapello (2009) ao retornarem à sociologia de Max Weber, os trabalhadores assalariados “perderam a propriedade do resultado de seu trabalho e a possibilidade de levar uma vida ativa fora da subordinação [...] quanto aos capitalistas, estão presos a um processo infindável e insaciável, totalmente abstrato e dissociado da satisfação de necessidade de consumo” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 38).

Ora, mas o que torna legítimo e aceitável – porque não se dizer tolerável? – uma ação eminentemente abstrata e “irracional”? Assim sendo, quando cada vez mais a motivação material e a coerção física se tornaram insuficientes e, sobretudo, “quando o empenho exigido pressupõe adesão ativa, iniciativas e sacrifícios livremente assumidos, como aquilo que, cada vez mais, se espera não só dos executivos, mas também do conjunto dos assalariados” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 39), torna-se necessário incorrer-se àquele seu novo espírito que emerge, de acordo com os autores acima referidos, a partir de meados da década de 1980, com o processo de reestruturação do sistema capitalista.

Ao apreender o capitalismo moderno em seu clássico ensaio A ética protestante e o espírito do capitalismo, Max Weber (2004) demonstrou que a ideia de dever, apreendida na esfera do trabalho como vocação e religiosamente orientado, correspondia ao conteúdo motivacional de ordem psicológica que conferia sentido e legitimidade aos empreendimentos humanos que caminhavam em direção à racionalidade das condutas e demais comportamentos sócios institucionais e cujo fim secular, se associava à obtenção legitima do lucro máximo.

Desde Max Weber (2004), já se apreende que o denominado espírito do capitalismo retrata as justificações morais legítimas que conferem sentido à ação social dos indivíduos modernos, bem como, no limite, à legitimidade da ordem do próprio sistema, pois as injunções devem ser interiorizadas, incorporadas e justificadas. Tais justificações, uma vez sendo interiorizadas e incorporadas, dão respaldo legítimo ao cumprimento de tarefas, inclusive, penosas e que exigem dos indivíduos modernos enormes demandas voluntariamente assumidas de esforços e sacrifícios pessoais (SOUZA, 2010).

Porém, com os impactos decorrentes com o processo de reestruturação do capitalismo, ocorrido em meados da década de 1980, o desafio autoimposto pelo próprio sistema se remetia à necessidade de se encontrar um novo espírito para que pudesse se legitimar. A justificativa encontrada para esse processo sócio estrutural de mudança, segundo Boltanski e Chiapello (2009), se deu por meio da defesa de um discurso ideológico respaldado nos valores positivos acerca da defesa das liberdades individuais. Trata-se do novo espírito do capitalismo (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009) e/ou espírito de empresa (EHRENBERG, 2010).

Para legitimar-se enquanto ideologia dominante, o capitalismo apropriou-se de sua critica radical, ressignificando-a e colocando-a em serviço de suas próprias forças, objetivos e interesses e, com efeito, “a crítica à divisão do trabalho, à hierarquia e à supervisão, ou seja, ao modo como o capitalismo industrial aliena a liberdade, está assim desvinculada da crítica à alienação mercantil, à opressão pelas forças impessoais do mercado” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 130). Nesse sentido, torna-se inteligível que capturar e colonizar as subjetividades humanas, isto é, o espírito, o desejo e a vontade individual por meio da valoração positiva do sonho de uma liberdade ampla e sem limites, constituíamse em uma armadilha e mecanismo ideológico de dominação social poderosíssimo. Assim, em meados dos anos 80, acentuava-se a crítica à burocracia, mas, dessa vez, “não se tratava apenas de libertar os executivos, mas todos os assalariados” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 98).

Por conseguinte, o novo espírito do capitalismo ou, o espírito de empresa, se impõe com demasiada força sobre a sociedade brasileira pela via intensiva e extensiva do processo de globalização contemporânea do capitalismo a partir de meados da década de 1990 do século passado, se corporificando enquanto sedutor valor sociocultural no ideal de sonho utopista das liberdades individuais. Ainda que sob a significação de um discurso ideológico e dominante da hegemonia neoliberal, verbalizado em palavras de ordem tais como autoempreendedorismo, autoempresário e autossuficiência dos indivíduos, espontaneidade, criatividade, independência, inovação, ousadia e etc.

Logo, de acordo com Ehrenberg (2010), nas sociedades modernas avançadas e hipercompetitivas do ego, ter sucesso e ser bem-sucedido, além de serem uma condição e força social moderna (um imperativo), é ter o dever de empreender-se por si mesmo. Autoempreender-se e autoconstruir-se a si próprio, em nosso tempo histórico presente, se converte em um poderoso projeto de idealização de um novo eu. Assim, “a esfera heroica acaba [...] de se anexar à empresa no momento em que esta última foi erigida como modelo cultural de massa” (EHRENBERG, 2010, p. 47).

Parece que “sofremos de liberdade e não de crises” (BECK, 2002, p. 10). Mais precisamente, das consequências não intencionais que acompanham um excesso de “ganhos” de liberdade no atual estágio de configuração sócio estrutural das sociedades modernas complexas em tempos de globalização. Em especial, quando se apreende o atual processo de radicalização das patologias sociais da modernidade na contemporaneidade, traduzidas por profundas sensações de ausência de sentido comum acerca da vida pessoal e coletiva ante aos constrangimentos sociais que sofrem os indivíduos contemporâneos.

O Mal-estar da Liberdade: Era da Modernização Reflexiva

Trata-se de indagar-se com mais vagar aonde se encontram os nexos de sentido capazes de explicar o porquê de milhares de homens e mulheres se sujeitarem voluntariamente em servirem-se. A ponto de realizarem, inclusive, enormes sacrifícios materiais em prol dos custos onerosos demandados pelas comunidades evangélicas neopentecostais, com dízimos, ofertas e demais campanhas de “sacrifício”. Aonde encontrar-se-á uma dimensão de mal-estar, dor e sofrimento que seja capaz de explicar a renúncia do próprio entendimento e da disposição legítima em servir-se, a tal ponto de os indivíduos não sentirem os efeitos onerosos da servidão voluntária? Ou seja, quais são as forças sociais que os constrangem, impelindo-os à eleição voluntária pela servidão, a ponto de essa se expressar como um “ganho” legítimo? – ou, como nos problematiza o próprio autor, “qual condição é mais miserável do que viver assim, sem nada ter de seu, recebendo de outrem satisfação, liberdade, corpo e vida”? (BOÉTIE, 2009, p. 60).

Porém, não obstante a isso, ressalta-se o poderoso ideal de conversão que essas instituições religiosas propagam em seus discursos, tendo-se em vista que, uma vez submetidos aos processos de purificação e de conversão, elevam-se os níveis de expectativas ideais do “eu”, pois se trata, agora, da possibilidade de tornarem-se um “novo ser”; um “ser outro” que, semelhantemente aos seus pastores, tornaram-se “homens de negócios” bemsucedidos. Assim, a ideia do poder de conversão das comunidades evangélicas neopentecostais potencializaria o próprio “eu”, oferecendo-lhes um conjunto de respostas pragmáticas e utilitárias para o viver a vida neste mundo e não mais no alémultraterreno (tal como propõe a própria ideia da Teologia da Prosperidade).

Os impulsos libertadores em relação aos pretéritos vínculos sociais atávicos e de parâmetros normativos que se realiza por meio dos processos de desenraizamento e de urbanização acelerada são acompanhados, no entanto, por novas formas e modos de domínio, de enquadramento e de controle social. Sendo que, contemporaneamente, merece destaque especial aquele poderosíssimo poder referente à lógica da essência contábil do dinheiro (SIMMEL, 2009). O qual, em nosso tempo presente, mostra seus efeitos nefastos e corrosivos quando conectados ao peso da carga ideológica negativa da ideologia neoliberal do mercado (do novo espírito do capitalismo ou do espírito de empresa), com seu discurso oficial e dominante assentado sob as ideias de autoempreendedorismo e de autossuficiência dos indivíduos.

Estruturado sobre um grande eixo que se refere ao mal-estar da liberdade, as patologias sociais da modernidade na contemporaneidade, tratam da radicalização do processo de coisificação e instrumentalização da vida, das profundas sensações de incerteza e de insegurança, da exacerbação dos temores difusos, da elevação das expectativas ideais do eu e dos níveis de ansiedade, das fobias narcísicas à depressão nervosa e dos vazios substanciais de um eu que vaga em uma busca incessante e angustiosa por ânimo e por reconhecimento psicossocial e que se segue à ampliação do senso do valor da autonomia internalizada (BAUMAN, 1998).

As cidades e o espaço urbano, símbolo e local por excelência da realização da cultura moderna, apresenta e comporta para Simmel (2005) uma dupla face ambivalente. Por um lado, é nela que se assiste ao processo de libertação dos indivíduos modernos perante a rigidez e fixidez dos antigos modos de vida assentados em vínculos e laços sociopolíticos de dependência tradicional de tipo patriarcal e patrimonial. Possibilitando-os o desenvolvimento das potências e faculdades humanas inventivas e criativas, assim como de um maior grau para o exercício das liberdades individuais e das aspirações por mobilidade social. Por outro lado, a cidade moderna é também o local no qual se constata o desenvolvimento da “intensificação da vida nervosa”, apreendida em termos de patologia social da modernidade.

Isto é, enquanto patologia da razão, pois antes à emancipação dos sujeitos autogovernados pela razão e senhores e juízes de si, esta se relaciona de modo cada vez mais conflitivo com o imperativo da lógica da racionalidade instrumental e de uma concepção de mundo cada vez mais instrumental do mundo e da vida, tornando-os suscetíveis aos seus domínios. Logo, é na cidade moderna que ocorre a tensão dialética entre dinâmicas emancipatórias e dinâmicas regressivas, entre os movimentos sociais que alcançam a conquista do reconhecimento recíproco (que dilatam os limites da realidade social no campo dos direitos e das instituições), e os movimentos culturais e políticos que agravam as sensações de mal-estar e dos vazios substanciais do “eu”, advindos com as tensões que se produzem entre o corpo da cultura civilizacional moderna objetiva e a existência vital do espírito subjetivo.

Tal como é possível de se apreender com Freud (2011), as patologias sociais se apresentam quando as ações individuais e sociais se convertem em pressões, constrangimentos e imperativos alheios à própria autonomia da vontade subjetiva, em seu sentido latto, afim à matriz kantiana. Porém, há os casos em que, uma vez os valores predominantes do plano da cultura objetiva tenham sido legitimamente aceitos e internalizados pelos sujeitos, os imperativos se tornam autoimpostos pelos mesmos.

Para Sigmund Freud (2011), a cultura moderna também se desenvolve e se expressa de modo ambivalente.1 Ao mesmo tempo em que ela fora criada para proteger os homens da dor e do sofrimento que os acompanhariam na existência de uma vida solitária e possibilitando-os o estabelecimento de relações de sociabilidade e de solidariedade social contratual, regida e regulamentada pelo direito e à vida em sociedade com certo grau de segurança, ela também é a principal fonte motriz geradora de constrangimentos sociais e de profundas sensações de mal-estar.2

Ao interrogar-se sobre a atual discrepância que se verifica entre o direito e a vida na contemporaneidade, mesmo quando a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 reivindica o caráter incondicional da dignidade e do respeito ao valor da pessoa humana, Esposito (2009) sustenta a tese de que o distanciamento entre a pessoa e o homem (este apreendido enquanto totalidade integral da junção entre bios e zoé), se deve ao próprio núcleo substancial intrinsecamente excludente que a noção de pessoa possui em sua raiz léxica.

A noção de pessoa para Esposito, portanto, corresponde a uma construção social que embora fosse se ressignificando no decorrer do processo histórico da humanidade, sempre carregou consigo a existência de um soberano ou senhor que efetua a política de judicialização imunizatória, pela via do direito, àqueles por ele designados como pessoas e aqueles que, por sua vez, são relegados à condição degradante da não pessoa. Soberano este que, contemporaneamente, pode ser identificado e traduzido pelo domínio hegemônico da ideologia neoliberal do mercado, da lógica imperativa do capital financeiro e do valor conferido ao culto da performance nas sociedades modernas hipercompetitivas do ego. Seguindo-se, daí, pelos modos cada vez mais instrumentalizados e coisificados de se conduzir a própria vida.

Assim sendo, ainda que seja interpretada em seu sentido laico e eminentemente moderno, a noção de pessoa e sua semântica apresenta uma raiz estrutural léxica a ser encontrada na tradição judaico-cristã da divina trindade. Por conseguinte, a reivindicação por autodeterminação dos indivíduos, uma vez estabelecida e promulgada com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, logo após a realização extrema do processo de construção social da não pessoa efetuada pela thanatos política do Estado totalitário nazista – desde que, é claro, operada nos limites permitidos pela razão -, corresponde a algo que, outrora, pertencia à soberania divina, “uma vez que Deus tem um direito soberano sobre as criaturas e não tem obrigações morais com elação a elas” (ESPOSITO, 2009, p. 109).

Ademais, de acordo com Ehrenberg (2010), o processo de construção social das identidades pessoais nas sociedades narcísicas e hipercompetitivas do ego, passam cada vez mais a serem regidos pela lógica do dever de ser reconhecido publicamente. Ou seja, a identidade pessoal (o quem sou; o ser a si mesmo) passa necessariamente pelo imperativo da assimilação de dever ser reconhecido publicamente (em ser outro; em ser alguém). Logo, a própria identidade subjetiva do eu somente passa a ser por ele próprio reconhecido enquanto valiosa e digna, se ele for outro; isto é, o próspero herói hipercomtetitivo e sujeito bem-sucedido que superou de maneira autobiográfica e solitária os próprios limites e demais adversidades cotidianas em um contexto caracterizado pela acentuação dos riscos econômicos, financeiros e limites biopsicossociais (tais como a ansiedade e demais fobias narcísicas como a síndrome do pânico, por exemplo). No limite, portanto, a acentuação dos novos processos de individualização e da hipertrofia do potencial de autonomia nas sociedades narcísicas do ego, torna imperativo o necessário dever autoimposto de externalização das conquistas exclusivamente individuais, a fim de que possam, inclusive, obterem sensações de bem-estar psicológico e equilíbrio psíquico. Tal como nos diz Ehrenberg (2010, p. 51), trata-se de “fazer entrar na intimidade psíquica o modelo público da performance”.

Sobre o Dilema de Nossa Modernidade Periférica: o Sentido Duplo do Valor Precário da Liberdade Individual na Contemporaneidade Brasileira

Se as patologias sociais geradas pela cultura moderna durante a primeira modernidade, puderam ser apreendidas por Sigmund Freud (2011) como sendo oriundas da prevalência de um excesso de princípio de realidade sobre o princípio do prazer – em termos de ordem e de segurança sociopolítica -, seguindo-se dai pelas constantes frustrações culturais sobre a livre vontade de manifestação dos desejos dos indivíduos modernos, pode-se dizer, que contemporaneamente, em sociedades modernas complexas tal como a brasileira do século XXI, o agravamento das sensações de mal-estar também advêm, sobretudo dos excessos de ganhos de liberdade, contudo de liberdades precárias. Precárias em um duplo sentido quando apreendidas no interior de uma realidade social complexa e com experiências e vivências históricas singulares como a brasileira. Assim nos diz Walter Benjamin:

Está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918 viveu numa das mais terríveis experiências da história [...]. Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltados silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. [...] uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem. A angustiante riqueza de ideias que se difundiu entre, ou melhor, sobre as pessoas, com a renovação da astrologia e da ioga, da Christian Science e da quiromancia, vegetarismo e da gnose, da escolástica e do espiritualismo, é o reverso dessa miséria (BENJAMIN, 1994, p. 114-115).

A nova miséria à qual se refere Benjamim (1994) corresponde àquela que surge diante de situações nas quais se expressam a desilusão e o ocaso das esperanças, podendo ser traduzida pelo desafio imposto aos próprios indivíduos de terem que lidar com a pobreza socialmente produzida, simultaneamente material e espiritual. Oprimido, posto à margem e em condição de subalternidade no transcorrer dos processos de modernização nacional brasileiro, encontra-se o povo brasileiro.

Isto é, àquele que fora tragado pela força imponderável e impiedosa de uma realidade histórico-social estranha, porque alheia à sua vontade. Pois, foram-lhes socialmente negada uma vida digna e a capacidade subjetiva necessária para vivenciar direitos, assim como o autorrespeito enquanto sujeitos dotados de vontades, sonhos, ideias e que, por isso mesmo, são também portadores de direitos de objetivações valorativas.

Nesse sentido, Axel Honneth (2003) tem demonstrado que o ressentimento que emerge da ausência de reconhecimento é propulsor, no plano individual, o isolamento social e do adoecimento psíquico3. Ao passo que, no plano coletivo, têm-se não somente a dilaceração do tecido social, assim como da violência coletiva, expressa em nosso trabalho pela luta social travada contra a figura do diabo, o bode expiatório e agente culpado responsável por causar uma infinidade de maus e desgraças na vida dos indivíduos.

Basta mencionar-se que com o advento do processo de Independência brasileiro, em 1822, não se resultou a abolição do regime de trabalho escravo, a Proclamação da República e no efetivo estabelecimento de garantias democráticas, visto que “o que prevaleceu foi o passado, a continuidade da colônia, o escravismo, o absolutismo” (IANNI, 2004, p. 14). Com a implantação da Primeira República, em 1890, esta já se inicia com a marca de uma aliança político-econômica entre um liberalismo econômico nas relações exteriores que, no entanto, coexistia com o prevalecimento do patrimonialismo em relações e assuntos internos.

Trata-se do que Bosi (1992) denominou como “síndrome do liberalismo oligárquico brasileiro”, posto que para o período compreendido entre 1836 a 1850, o liberalismo brasileiro representou nada mais do que a variante pragmática dos interesses dos liberais moderados, compostos majoritariamente por uma burguesia agroexportadora favorável à instituição escrava e a grandes latifúndios. Daí se advindo o fato de a abolição jurídica do trabalho escravo ter sido realizada por decreto somente em 1888, quando “a imigração do trabalhador europeu já se fizera um processo vigoroso em São Paulo e nas províncias do Sul” (BOSI, 1992, p. 199). Predominou-se, portanto, a combinação do “moderno material com o autoritário mando e desmando” (IANNI, 2004, p. 37).

Aquilo que se anunciava como prenúncio do Brasil moderno, ainda esbarrava-se em pesadas heranças do escravismo, do autoritarismo, do coronelismo e do clientelismo, ao passo que o povo, “continuava a ser uma ficção política” (IANNI, 2004, p. 33). Devendo ser ressaltado que, é somente durante a transição do século XIX para o XX, que o tema referente à educação popular passa a se constituir na pauta das preocupações e dos debates políticos, sendo norteados pela crença de que, por meio dela, se sucederiam as transformações sociais, econômicas e políticas tão necessárias à modernização do país (SOUZA, 2008).

Simultaneamente à sucessão dos ciclos econômicos e dos surtos de povoamento e de urbanização, convivia-se com um nível de subsistência no mundo rural e com condições miseráveis de marginalidade urbana. A sociedade brasileira continuou a se modificar em termos sociais, econômicos, políticos e culturais, tendose o destaque da diversificação da indústria e o avanço do capitalismo sobre o campo, seguida pela correlata urbanização acelerada.

Desde os anos 1930 e, mais especificamente a partir da década de 1950, verificou-se um intensivo investimento governamental em prol de expansão e da diversificação da economia nacional, mobilização de recursos para os transportes, geração e fornecimento de energia, comunicações, serviços de infraestrutura urbana e etc. Cresce-se a urbanização e a industrialização, assim como as exportações de produtos manufaturados e de matérias-primas e, contudo, convive-se com uma distribuição de renda que permanece marcadamente desigual. O cenário brasileiro que se apresentava, dava a impressão da coexistência de “duas sociedades superpostas, mescladas, mas diversas” (IANNI, 2004, p. 90).

A despeito do progresso econômico da sociedade brasileira durante o período do regime militar, a própria sociedade civil pouco se moderniza, em termos de aquisição de direitos modernos. O golpe de 1964, estando assentado sobre o lema segurança e desenvolvimento, conviveu com amplos setores da população brasileira, tanto no campo como nas cidades, que “não entraram no exercício de direitos políticos, foram rechaçados, postos à margem das decisões e das próprias representações” (IANNI, 2004, p. 149). Tal modelo de desenvolvimento econômico que é posto em marcha com o golpe militar de 1964 também se caracterizou pela “concentração de renda, crescimento do parque industrial, criação de um mercado interno que se contrapõe a um mercado exportador, desenvolvimento desigual das regiões, concentração da população em grandes centros urbanos” (ORTIZ, 2006, p. 81).

A Nova República brasileira, de 1985, trouxe consigo uma situação social herdada de tempos passados do militarismo. Durante o processo de redemocratização do país, caracterizado pela abertura lenta, gradual e segura, por exemplo, tem-se que, às vésperas de assumir o governo federal em 1985, Tancredo Neves se via diante de uma sociedade civil na qual a grande maioria não se sentia legitimamente representada pelo poder estatal, haja vista que “estados e regiões, grupos raciais e classes sociais, na cidade e no campo, se sentiam divorciados das orientações do Estado” (IANNI, 2004, p. 165).

Enquanto a década de 1990 no Brasil pode ser apreendida enquanto a era liberal de expansão e consolidação dos projetos e medidas políticoeconômicas neoliberais, já para os anos 2000, constatamos o Estado brasileiro retornando àquele papel de agente integrador e modernizador nacional. A expansão das políticas sociais compensatórias dinamizadas pelo Estado brasileiro na primeira década deste século foi fundamental tanto para a dinamização do mercado interno brasileiro, bem como para os observáveis e significativos processos de mobilidade social ascendente de aproximadamente 30 milhões de brasileiros “batalhadores” (SOUZA, 2010), que ascenderam a novos patamares de consumo e renda na última década no Brasil.

Para essa parcela significativa de homens e mulheres, equivalentes a 2/3 do total da população do país e, por sua vez, sendo distribuídos e alocados entre as seguintes categorias sociais ideal-típicas: a “ralé” (FRANCO, 1997; SOUZA, 2003), os “batalhadores” (SOUZA, 2010) ou “homens simples” (MARTINS, 2011), a “subclasse” (IANNI, 2011) e, ou, os “supertrabalhadores” (POCHMANN, 2012), o direito à autodeterminação biográfica e à liberdade individual, traz consigo o peso das contradições, desigualdades e injustiças sociais pretéritas que são reiteradas e acrescidas de novas contradições, desigualdades e constrangimentos sociais contemporâneos de ordem sistêmicos no tempo presente. Configurando, assim, uma tessitura social simbiótica complexa em que muitas escolhas já se tornam em eleições pré-escolhidas pelas necessidades e constrangimentos sociais do tempo presente, sobretudo àquelas que referentes às necessidades de sobrevivência.

Nesse sentido, tal como foi muito bem apreendido por Simmel (2005) quanto às patologias sociais da modernidade, sobretudo à patologia da razão, a liberdade individual tende a assumir, conflitivamente, um caráter cada vez mais precário na modernidade, sendo que, quando remetida à sociedade brasileira que se configura a partir de meados da década de 1990 do século passado – época na qual se inicia a abertura econômica e o acirramento da competitividade entre as empresas em escala mundial -, esta precariedade passa a assumir uma dupla significação. Sobretudo, tendose em vistas que as profundas desigualdades sociais ainda existentes na sociedade brasileira, “são problemas que a peculiar ‘revolução burguesa’ desenvolvida no Brasil não resolveu, nem encaminhou satisfatoriamente para grande parte da população” (IANNI, 2004, p. 142); haja vista que “o modernismo ocorre no Brasil sem modernização” (ORTIZ, 2001, p. 32).

Tanto porque, de um lado, os indivíduos filhos da liberdade que compõe a base da estrutura social do país, são impelidos forçosamente a se constituírem enquanto indivíduos carregando toda a carga de um passado repleto de desigualdades sociais que os incluiu de modo excludente no decorrer dos processos de modernização anômalos nacionais brasileiros; bem como, por outro lado, porque cada vez mais, são não menos desafiados a se desvincularem dos resquícios pretéritos concernentes aos laços e vínculos de solidariedade social, afetiva e de cunho pessoal e, concomitantemente, estes mesmos indivíduos filhos da liberdade aos quais denomino de súditos recém-libertos, têm que se haverem, muitas vezes de modo solitários, com os riscos, incertezas e indeterminações globais, com o declínio das garantias e seguridades sociais oferecidas pelo Estado.

Aqui nos trópicos, o caráter precário dos mundos da vida e do valor da liberdade individual internalizada é traduzido pela coexistência simbiótica complexa dos riscos, incertezas, inseguranças e indeterminações provenientes das dinâmicas da globalização e que, por sua vez, são acrescidos das contradições do nosso passado. Isto é, do peso da herança histórica e social dos nossos peculiares processos de modernização anômalos e tardios de acesso ao moderno e que incorporaram grande parte da população de modo marcadamente excludente aos valores e demais formas de comportamento, pensamento e ação eminentemente modernos.

O que nos atesta o trabalho de Souza (2010) são, sobretudo, dois aspectos: o primeiro, no sentido de que existia no Brasil, de fato, um processo de individualização adormecido que começou a se acentuar na primeira década do século XXI, caracterizado pela existência de milhares de indivíduos dispostos à realização de extraordinários esforços e sacrifícios pessoais e ao exercício de uma ética do trabalho duro de todo tipo - mesmo em meio a condições extremamente precárias e incertas de um mundo de trabalho flexível – como forma de ascender pessoal, profissional e socialmente, interiorizando aspirações por autorealização pessoal e profissional, assim como por mobilidade social; o segundo se refere ao fato de que, diante de condições sociais básicas oferecidas pelas medidas compensatórias do Estado, milhares de indivíduos puderem escapar do pântano da desesperança, pois, à medida que se reduz os recursos dedicados ao bem-estar social e em áreas como a saúde, o ensino público e à assistência social, o “Estado vai deixando segmentos sempre crescentes da população expostos ao empobrecimento” (HARVEY, 2011, p. 86).

Em seu trabalho interpretativo de aproximadamente cento e oitenta sonhos recolhidos na região metropolitana de São Paulo, com pessoas pertencentes à chamada “nova classe média” brasileira, as experiências sociais cotidianas mediatizadas por Martins (2011), nos atestam sobre um dado significativo: os sonhos narrados são predominantemente relatos de profundas sensações de mal-estar. Ou seja, nota-se que mesmo com os avanços dos processos de modernização, seguidos pelo correlato excesso de ganhos de liberdade, bem como da ascensão a novos patamares de renda e consumo conquistados, convive-se com profundas sensações de incerteza, insegurança, medo e, sobretudo, de vazios de um “eu” cada vez mais individualizado.

Ocorre que, a pressão civilizacional para se individualizarem, ao modo como se faz presente nos valores difundidos pelo novo espírito do capitalismo e no modelo público do culto da alta performance, está impelindo-os forçosamente a um afastamento e distanciamento dos pretéritos mundos da segurança que as relações e vínculos sociais tradicionais de outrora podiam lhes oferecer.

Os mundos da vida cotidiana das pessoas entrevistadas por Martins (2011) se apresentam como algo estranho e incógnito, permeado por ameaças ou perigos, por vários medos e temores difusos, tais como a presença de “demônios, humanos deformados e fantásticos, pessoas mortas ou pessoas vivas sem identificação” (MARTINS, 2011, p. 65), que tentam captura-los. Tal quadro traduz um desencontro e um descompasso entre o tradicional e o moderno que se impõe enquanto forma e modo de uma nova cultura objetiva, bem como a permanência no imaginário popular brasileiro das referencias tradicionais, apreendidas enquanto mundo da segurança plausível e almejado para os indivíduos, pois “diferentemente da casa, o lugar público é um cenário do medo [...], o mundo da casa é o mundo da confiança em oposição ao mundo da rua, que é o da desconfiança” (MARTINS, 2011, p. 66).

Trata-se, portanto, dos reflexos que traduzem a paradoxal intersecção entre os valores da segunda modernidade e do nosso peculiar processo de modernização tardia e periférica. Ressaltando-se que, o próprio neopentecostalismo brasileiro, ao negar a própria modernidade e seus respectivos valores, em termos de reconhecimento e dilatação de direitos, traduz-se a herança conservadora do ódio reprimido gerado por nosso processo de modernização tardia, periférica e excludente. Em suma, estamos diante do complexo processo paradoxal e ambivalente entre os valores de uma segunda modernidade que se impõe por meio da globalização contemporânea do capitalismo e dos legados de uma modernização tardia, periférica e seletiva, na qual ainda prevalece o patrimonialismo e demais formas de exclusão e negação de direitos.

A Negação da Modernidade e o Reflexo do Processo de Modernização Periférica no Brasil: o Sentido de Imunização no Caso da Igreja Universal do Reino de Deus

Paradoxalmente, as comunidades religiosas evangélicas pentecostais também se apresentam de maneira conservadora e, por fim, atuam negando a própria modernidade. Ou seja, se as comunidades evangélicas neopentecostais apontam para a presença do mal (por meio da personificação da figura do diabo) nas próprias relações sociais que foram degeneradas pelo individualismo excessivo4, elas não apenas efetuam um diagnóstico da realidade social centrados nas perversidades das figuras dos ateus, dos agnósticos, dos homossexuais, dos divorciados, das prostitutas, dos viciados. Mas como, também, apresentam um possível efeito terapêutico, qual seja: o da negação, rejeição e crítica da própria modernidade de seu caro valor referente à autonomia subjetiva. A negação da modernidade se realiza por meio da anulação e não reconhecimento do processo de dilatação de novas demandas por direitos. Arquitetando-se uma identidade religiosa potencialmente conservadora e imunizadora.

No caso em particular da Igreja Universal do Reino de Deus, além de se ter a reconhecida importância da figura do diabo e dos demônios como agentes e entidades causadoras dos males e problemas de toda a ordem que afetam não só as pessoas, mas também a própria sociedade, o diabo não somente é a antítese e o arqui-inimigo de Deus, como também ele o é a própria personificação do mal. Uma presença constantemente ameaçadora na vida cotidiana das pessoas: “o fato é que realmente tudo o que existe de ruim neste mundo têm sua origem em satanás e seus demônios” (MACEDO, 2006, p. 93). Mais adiante, prossegue o bispo Macedo no mesmo trabalho de sua autoria:

Um demônio é uma personalidade; um espírito desejando se expressar, pois anda errante procurando corpos que possa possuir para através deles cumprir sua missão [...]. Doenças, miséria, desastres e todos os problemas que afligem o ser humano desde que este iniciou sua vida na Terra têm uma origem: o diabo. [...] os demônios, em sua maioria, personificam os males, atuam como espíritos sem cor, sexo, dimensões, enfim, sem corpos. Procuram seres vivos para através deles se exprimirem, e o homem é o seu principal alvo. Como não possuem corpos, vivem se apossando daqueles que não têm cobertura de Deus (MACEDO, 2006, p. 16-20).

A ideia de universalismo fraterno, presente nos ensinamentos morais da figura de Jesus Cristo, se realiza de maneira totalmente distinta aos irmãos de fé que pertencem às comunidades evangélicas neopentecostais, haja vista que, em um primeiro momento, o principio do amor indistinto da comunidade evangélica neopentecostal dos crentes, a fim de atrai-los, resulta na aceitação dos diversos outros contemporâneos, independentemente de seu passado à sua respectiva conversão. O processo por meio do qual se realiza a conversão, corresponde a um autêntico divisor de águas, podendo torna-lo puro em um novo ser. Sendo que esta é realizada por suas lideranças pastorais que detêm possui com exclusividade o dom da graça divina.

Todavia, uma vez tendo sido submetidos aos processos de exorcismo, conversão e purificação restritas às figuras carismáticas dos pastores constrói-se um senso de pertencimento comunitário vinculado à negação das novas formas e estilos de vida que a própria modernidade gerou pela hiperindividualização. Criando-se, assim, um senso de comunidade restrito aos irmãos de fé, extremamente imunizadoras, conservadoras, segregacionistas e intolerantes não só em relação ás diversas formas de identidades culturais e religiosas contemporâneas, assim como às próprias relações sociais que foram degeneradas pelo individualismo excessivo.

Devido ao poder carismático de seus pastores oriundos da exclusividade com que os dons da Graça foram por Deus a eles concedido, a ponto de os fiéis acreditarem que estão recebendo uma segunda e nova vida. Todavia, a sujeição do fiel aos poderes da graça divina realizados durante o processo de conversão implica, também, na negação da autonomia subjetiva do indivíduo; o deus da sociedade democrática e, constituindo-se, assim, em uma das críticas à modernidade: o ambivalente e paradoxal processo de anulação e de exaltação do hiperindividualismo.

Tal como é apreendido por Esposito (2006, p. 40), “somente há direito à parte; nunca ao todo, como também o nada, pertence à justiça”. Em outros termos, isso equivale que, mesmo em um possível Estado Constitucional Democrático de Direito, a questão referente ao direito, sempre se encontrará correlacionada às ambivalentes ideias de proteção, imunização e negação da vida para alguns; isto é, segregação e exclusão das categorias de seres humanos relegadas ao campo imaginário da não pessoa, dos indesejáveis, dos estranhos e dos intrusos propensos à contaminação e ao contágio ao senso de pureza da comunidade. Tornando-se inteligível a consideração de Esposito (2006, p. 40): “[...] é logicamente impossível estender um direito a todos sem o esvaziá-lo do seu sentido enquanto direito”.

De acordo com a ideia de paradigma imunitário, está-se diante de um mecanismo reativo de judicialização da sociedade exercido pelos mecanismos imunizadores do direito. Isto é, uma espécie de contragolpe que visa a impedir que uma determinada força nociva e potencialmente patogênica se manifeste. As considerações de Esposito (2006) são significativas para a compreensão, análise e interpretação da construção de uma possível identidade evangélica neopentecostal e de seu correlato sentido de pertencimento comunitário conservador. Sobretudo porque ela enseja uma lógica de inclusão excludente, centrada na perversidade da presença do mal nas figuras do ateu, do agnóstico, dos homossexuais, dos divorciados, das prostitutas, dos viciados e etc.; expressos pela própria ideia de irmãos de fé restrita apenas aos membros que pertencem às comunidades evangélicas e que, por sua vez, já tenham passado pelos processos de conversão e de purificação, realizado por seus pastores.

Logo, pode-se dizer que no caso das comunidades evangélicas neopentecostais – tais como no caso da igreja Universal do Reino de Deus - essa se fundamenta sobre uma moralidade escatológica que se expressa por meio do espírito combativo da guerra contra a figura do diabo e demais entidades demoníacas que personificam o corpo de seres humanos. Ressaltando-se que, estes, além de serem elementos constitutivos e necessários ao seu próprio universo religioso, um valor e princípio estruturante de sua própria moralidade religiosa. E, por conseguinte, condição indispensável à própria existência do carisma institucional da igreja (ou seja, um fator de legitimidade e uma das razões de ser das igrejas evangélicas neopentecostais). Pois, somente ao neutralizarem, as ações causadas pelas entidades malignas e demoníacas é que os crentes, fiéis e/ou virtuais adeptos passam a adquirirem a convicção psicológica com relação ao recebimento dos dons da graça obtidos após o processo de conversão, realizado pela figura paterna do pastor.

A constituição de uma identidade evangélica neopentecostal altamente imunizadora e potencialmente conservadora; em suma, de contestação da própria modernidade (de seus modos e estilos de vida emergentes, característicos do próprio processo de acentuação da individualização), não deixam de refletirem os ecos da radicalização dos mal-estares contemporâneos em indivíduos submetidos a intensos processos de recalcamento e de frustrações de seus respectivos ideais de eu.

Portanto, se as comunidades evangélicas neopentecostais apontam a presença do mal (por meio da personificação da figura do diabo) nas próprias relações sociais que foram degeneradas pelo individualismo excessivo das sociedades modernas contemporâneas da segunda modernidade (desde a ansiedade, vazios substanciais do eu, desânimo, vícios, uso de medicamentos psicotrópicos e psicoestimulantes, senso de autoculpabilidade pelo fracasso, sentimentos de impotência quanto a ser capaz e eficiente o suficiente para o cumprimento de seus deveres, divórcio, união homoafetivas e homossexualismo, depressão nervosa, etc.), ela não apenas efetua um diagnóstico da realidade social centrado na perversidade das figuras dos ateus, dos agnósticos, dos homossexuais, dos divorciados, das prostitutas, dos viciados e etc., mas, também apresenta um efeito terapêutico: o da negação da própria modernidade, por meio da anulação e não reconhecimento do processo de dilatação de novas demandas por direitos, construindo, portando, uma identidade religiosa potencialmente imunizadora e conservadora. Retratando as intersecções do dilema referente ao legado da herança conservadora e autoritária de nosso peculiar processo de modernização tardia e periférica que ainda persiste em nossa sociedade.

 

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Tramitação

Recebido em: 1 ago. 2018

Aceito em: 5 out. 2018

 

 

Notas

1 Sobre a noção de cultura, nos diz Freud: “Basta-nos repetir que a palavra ‘civilização’ designa a inteira soma de realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossos antepassados animais, e que servem para dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação dos homens entre si” (FREUD, 2011, p. 34).

2 Posto que a ação instintual humana esteja sempre vulnerável aos impulsos destrutivos dos instintos e apetites humanos vinculados ora à força bruta e violenta (à pulsão de morte de thanatos), e ora à possessão sexual incestuosa.

3 Sobre a ideia de reconhecimento, nos diz Honneth (2003, p. 47): “na medida em que se sabe reconhecido por um outro sujeito em algumas de suas capacidades e propriedades e nisso está reconciliado com ele, um sujeito sempre virá a conhecer, ao mesmo tempo, as partes de sua identidade inconfundível e, desse modo, também estará contraposto ao outro novamente como um particular”.

4 Leia-se: ansiedade, vazios substanciais do eu, desânimo, vícios, uso de medicamentos psicotrópicos e psicoestimulantes, senso de autoculpabilidade pelo fracasso, sentimento de impotência em ser capaz de executar eficientemente seus deveres, divórcios, união, homoafetiva, homossexualismo, depressão nervosa e etc.

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