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Semina: Ciências Sociais e Humanas

versão On-line ISSN 1679-0383

Semin., Ciênc. Soc. Hum. vol.40 no.1 Londrina jan./jun. 2019

 

Artigos

Demandas a um CAPSI: o que nos dizem os responsáveis por crianças e adolescentes em situação de sofrimento psicossocial

Demands a CAPSI of one: what they tell us about children and adolescents in the situation of psychosocial suffering

 

 

Cecília Maria Rocha Ribeiro1; Lilian Miranda2

1Universidade Federal Fluminense

2Fundação Oswaldo Cruz

 

 


Resumo

Os Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi) têm por missão oferecer atenção integral a crianças e adolescentes em sofrimento psíquico, bem como realizar a gestão das diferentes demandas relacionadas a seu território de adscrição. Este artigo possui como objetivo geral compreender quais são as demandas que os responsáveis por crianças e adolescentes endereçam ao CAPSi. Utilizou-se o método qualitativo, desenvolvido através de entrevistas em grupo com dezenove responsáveis pelos usuários do CAPSi estudado. Tratado através de análise temática, os resultados foram agrupados em quatro categorias: percepções e modos de lidar com os problemas das crianças e dos adolescentes; modos de nomeação/apreensão dos problemas: o predomínio do diagnóstico; o acesso ao CAPSi; o CAPSi na visão dos usuários: (des)contentamentos com a instituição. Identificou-se dificuldades dos responsáveis para nomear e compreender certos comportamentos de seus filhos, além de desconhecimento do CAPSi ou da possibilidade de acessá-lo para início de tratamento. Observou-se a necessidade da oferta de espaços de acolhimento e elaboração do sofrimento para os responsáveis. Destacou-se a imprescindibilidade de um trabalho territorializado e colaborativo entre profissionais de diferentes pontos de atenção, essencial para que o CAPSi possa gerenciar seu território, legitimando-se como referência para o cuidado a situações de sofrimento psicossocial.

Palavras-chave: Acolhimento. Familiares. Infantojuvenil. Saúde mental.


Abstract

The Centers for Psychosocial Child and Adolescent Care (CAPSi) have their mission to offer integral attention to children and adolescents in psychological distress, as well as to manage the different demands related to their territory of ascription. This article has as general objective understand the demands that those responsible for children and adolescents address to CAPSi. The qualitative method developed through group interviews with nineteen responsible users of the CAPSi study. By means of thematic analysis, the results were grouped into four categories: perceptions and ways of dealing with the problems of children and adolescents; modes of naming / apprehending problems: the predominance of diagnosis; access to CAPSi; the CAPSi in the view of the users: (dis) contentment with the institution. It was identified difficulties of the responsible ones to name and to understand certain behaviors of their children, besides as the unfamiliarity of the CAPSi or the possibility of accessing it for initiation of treatment. It was observed the need to offer spaces for the host and elaboration of suffering for those responsible. It was highlighted the indispensability of a territorial and collaborative work among professionals from different points of attention, essential for the CAPSi to manage its territory, legitimating itself as a reference for care to situations of psychosocial suffering.

Keywords: Child-juvenile. Mental health. Receive. Relatives.


Introdução

O campo da Saúde Mental Infantojuvenil tem como principal operador e regulador do cuidado os Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi), instituições públicas, cuja missão é oferecer atenção integral e territorializada a crianças e adolescentes em sofrimento psíquico (BRASIL, 2004). Além de sua função terapêutica, tais serviços têm como tarefa a gestão das diferentes demandas relacionadas à infância e adolescência de seu território de adscrição (COUTO; DUARTE; DELGADO, 2008; TEIXEIRA, 2015).

A lógica do trabalho territorial é uma marca fundamental desses serviços, mas seu exercício requer o reconhecimento das especificidades de cada território, fruto dos modos de vida e posicionamentos sociopolíticos dos atores que nele residem e atuam. É nele que o lugar social da loucura deve ser questionado e (re)construído, ao mesmo tempo em que a clínica psicossocial precisa estruturar-se (LEAL; DELGADO, 2007). Portanto, o território e aquilo que nele se produz são elementos sempre processuais e plurais, de tal modo que o primeiro deve ser constantemente ocupado, construído e reconstruído. Nesse sentido, como destacado por Luzio e L’abbate (2009), é necessário que as ações no território prevejam a ativação de recursos do ambiente de origem ou de referência dos sujeitos. Para os autores, levar em consideração o habitat e seus recursos é necessário para “a construção de projetos terapêuticos emancipadores e transformadores” (LUZIO; L’ABBATE, 2009, p. 112).

Pensar os territórios - no plural - como espaços vivos, lugares de pertencimento, e não somente como delimitações de terras, permite que as ações em saúde sejam coerentes com demandas específicas, singulares e constituídas a partir de afetos, trocas sociais, jogos de poder existentes, costumes, ou seja, de todo o contexto de existência dos sujeitos. Desse modo, poderíamos afirmar que o CAPSi de uma região não possuirá as mesmas demandas e não necessitará das mesmas estratégias para acesso que o de outra.

O funcionamento dos CAPSi também deve ser orientado pelo trabalho em rede, intersetorial, a partir do qual propõe-se uma atuação ampliada, em conjunto entre serviços, ou como afirmam Teixeira, Couto e Delgado (2017), um trabalho colaborativo entre os equipamentos de saúde/rede de saúde e demais setores do território. Para Leal e Delgado (2007), a noção de rede em saúde mental deve ser pensada considerando suas dimensões política, social e afetiva:

[...] a noção de rede, assim como a de território, deve ser igualmente tomada em sua dimensão política, social e afetiva. De fato, as redes são as linhas que preenchem o território. Por isso, devem ser pensadas como fluxos permanentes que se articulam e desarticulam. Essas duas noções redefinem a ideia de clínica. Introduzem a possibilidade da construção de um campo de conhecimento sobre o homem que não o dissocia da sociedade que o constitui. Fica incorporada, assim, a sua dimensão política (LEAL; DELGADO, 2007, p. 141).

As demandas e necessidades em saúde compõem as especificidades de cada território e sua rede, sendo, portanto, inerentes aos serviços que abrangem tais territórios. Contudo, mapear tais necessidades em saúde se coloca de modo mais complexo para os CAPSi, na medida em que, como nos lembra Pereira (2012), a criança ou o adolescente é sempre levado por um outro: é sempre falado por alguém. A autora aponta que a infância possui muitas peculiaridades e, portanto, demanda cuidados e tratamentos diferenciados dos adultos. Ademais, as demandas e necessidades em saúde não são rígidas, cristalizadas, mas construídas nas interações sociais, não devendo ser naturalizadas (JUNGES et al., 2012; BRASIL, 2013; PINHEIRO, 2001). Em nota, o Ministério da Saúde recomenda “considerar que diferentes sujeitos e atores sociais produzem, com interesses e formas variadas, o que são demandas e necessidades em saúde, e que esses diferentes entendimentos sejam explicitados e colocados em diálogo” (BRASIL, 2013, p. 13).

Ao propor uma diferenciação entre demandas e necessidades, Cecilio (2006) considera que quando alguém procura um serviço de saúde está endereçando a este uma “cesta” de necessidades em saúde. Sendo assim, somente o compromisso, a sensibilidade e a preocupação com a escuta oferecida pela equipe, permitiria a percepção das necessidades em saúde trazidas pelo usuário. Tais necessidades estariam, segundo Cecilio (2006), “travestidas” em demandas bem específicas.

Para Junges et al. (2012), a demanda é socialmente construída porque depende das relações cotidianas e do contexto que compõe as necessidades, mas também está relacionada aos subsídios disponibilizados pelas políticas públicas de saúde e às ofertas de serviço por estas direcionadas. Pinheiro (2001) complementa essa discussão defendendo que os elementos que compõem a demanda dizem respeito às percepções e representações sobre saúde por parte de seus atores, às formas como estes significam, por exemplo, saúde e doença. Outra questão a ser considerada diz respeito ao fato de que a demanda pode ser influenciada de acordo com o que é oferecido por determinado serviço de saúde. Segundo Campos e Bataiero (2007), tendo em vista que os usuários esperam que os profissionais ofereçam soluções para seus problemas, existe uma circularidade entre necessidades em saúde e processo de trabalho, “[...] por esta razão o modo de organizar socialmente as ações em saúde para a produção e distribuição efetiva dos serviços, será não apenas resposta a necessidades, mas, imediatamente, contexto instaurador de necessidades” (CAMPOS; BATAIERO, 2007, p. 612). O perfil da demanda pode ser, inclusive, um indicativo das limitações e potencialidades de uma equipe e dos meios pelos quais estas produzem cuidado (BRASIL, 2013).

Para exemplificar a circularidade entre necessidade em saúde e processo de trabalho, tomemos uma situação típica de vários serviços: o usuário procura por profissionais com demandas bastante complexas e multifacetadas e recebe como oferta, exclusivamente, uma consulta médica. Diante desse tipo de procedimento, não seria de se estranhar que, numa busca subsequente, ele passasse a demandar, diretamente, a consulta médica.

Tendo em vista essa discussão geral sobre território, rede e demandas em saúde, perguntamo-nos como essas questões se colocam para os CAPSi, principais serviços a responder às necessidades de cuidado em saúde mental de crianças e adolescentes: quais são as demandas direcionadas ao CAPSi? Soma-se a estas questões uma discussão, apresentada na literatura científica, acerca da existência de uma significativa lacuna entre as necessidades em saúde mental de crianças e adolescentes e a oferta de serviços para responder a elas (TEIXEIRA, 2015).

Consideramos que conhecer o modo como responsáveis por crianças e adolescentes compreendem e nomeiam os problemas de seus filhos, bem como estruturam suas demandas por tratamento pode colaborar com o planejamento e implementação de práticas de cuidado mais sensíveis à “cesta de necessidades” (Cecílio, 2006) dos usuários e a suas conexões com os territórios de vida destes. No bojo dessas questões, esse artigo apresenta os resultados de uma pesquisa de mestrado cujo objetivo foi compreender quais são as demandas que os responsáveis por crianças e adolescentes endereçam ao CAPSi. Como objetivo específico, pretende-se identificar os modos através dos quais os responsáveis acessam o serviço. Trata-se de uma questão que pode colaborar com o planejamento e a organização dos serviços, sobretudo se consideramos que as políticas de saúde mental infantojuvenil devem ser sensíveis às representações, avaliações e percepções dos sujeitos aos quais se destinam.

Método

Esta é uma pesquisa qualitativa, voltada à investigação dos sentidos que os sujeitos constroem diante de certos fenômenos oriundos do mundo social (MINAYO, 2010). Adotamos como estratégia para a produção do material empírico a realização de entrevistas em grupo com dezenove responsáveis por crianças e adolescentes em tratamento num CAPSi, com apoio de um roteiro de questões semiestruturadas sobre os seguintes temas: as percepções e modos de lidar com os problemas das crianças e dos adolescentes; os processos que desencadearam a busca pelo CAPSi; os modos de nomeação/apreensão dos problemas; as vivências relacionadas ao CAPSi.

Foram realizados seis encontros grupais, cada qual com uma média de três participantes, no próprio CAPSi. Os grupos das entrevistas foram formados aleatoriamente: eram convidados a participar de um mesmo grupo aqueles pais/ responsáveis que se encontravam juntos na sala de espera, aguardando seus filhos. Trabalhamos com uma amostra universal, portanto, não foi delimitado nenhum critério de perfil dos sujeitos participantes. Os critérios de inclusão foram: ter interesse em participar voluntariamente da pesquisa e ser responsável por uma criança ou adolescente em atendimento no serviço.

Dos 55 usuários que compunham esta amostra, 19 participaram. Não houve recusas, mas o restante dos responsáveis não estava frequentando regularmente o CAPSi no período de desenvolvimento da pesquisa de campo. Tal situação ocorrera porque o serviço passava por uma fase de instabilidade, resultado de mudanças na gestão municipal, o que ocasionou a demissão de muitos profissionais e drástica redução da equipe, num período de seis meses.

As entrevistas foram audiogravadas, com a devida autorização dos participantes, e coordenadas por uma única pesquisadora. Esta, logo após o encerramento de cada encontro, desenvolveu anotações sobre a dinâmica de relação dos sujeitos, bem como de outros aspectos que lhe chamaram atenção. Após a transcrição do material produzido, foi feita uma análise temática que, conforme define Minayo (2010), busca desvendar os núcleos de sentido que compuseram a fala dos entrevistados, cuja presença ou frequência constituiu algo relevante para o que estava sendo investigado. Em seguida, tais núcleos foram agrupados em categorias temáticas, divididas em dois eixos, relacionados às diferentes dimensões que estruturam a forma como os sujeitos percebem e organizam experiências ligadas ao objeto de estudo.

Os resultados expressos por cada categoria foram discutidos por meio de um diálogo com teorizações de importantes autores e atores do campo da saúde mental que, em seus trabalhos, nos ofereceram subsídios para a compreensão da temática das demandas e necessidades no campo da saúde mental infantojuvenil e da saúde em geral, bem como a Reforma Psiquiátrica.

Todo o processo de pesquisa foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (protocolo CAEE 23083.010902/2016-52) e todos os sujeitos assinaram o termo de Consentimento Livre-esclarecido, de acordo com a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. Ao longo do artigo, atribuímos aos sujeitos nomes fictícios, garantindo, assim, a preservação de suas identidades. Todo o trabalho de pesquisa fora desenvolvido a partir de um comprometimento, como Onocko-Campos (2011) destaca, com a manutenção de um posicionamento ético-político de nunca transformar as vozes humanas em meros objetos.

Resultados e Discussão

O CAPSi onde o estudo fora desenvolvido está inserido na rede de saúde de um município de médio porte. Trata-se do único serviço público direcionado à saúde mental infantojuvenil da cidade, abarcando todos os tipos de demandas. É importante lembrar, conforme descrito anteriormente, que durante a pesquisa o serviço em questão passava por um processo de reorganização, que culminou no afastamento de diversos usuários.

De modo geral, observamos que todos os sujeitos participaram ativamente das entrevistas, mas aqueles que se encontravam há mais tempo no CAPSi tendiam a falar mais dos efeitos e direções do tratamento.

Para este artigo apresentaremos dois eixos, cada qual dividido em duas categorias temáticas. Eixo 1: Processos que desencadearam a busca pelo CAPSi. Categorias: 1.1) Percepções e modos de lidar com os problemas das crianças e dos adolescentes; 1.2) Modos de nomeação/apreensão dos problemas: o predomínio do diagnóstico. Eixo 2: Vivências relacionadas ao CAPSi. Categorias 2.1) O acesso ao CAPSi; 2.2) O CAPSi na visão dos usuários: (des) contentamentos com a instituição.

Eixo 1: Processos que desencadearam a busca pelo CAPSi

Neste eixo serão abordados os modos como os pais perceberam os problemas dos seus filhos e julgaram necessário procurar ajuda. Indicaremos, ainda, os caminhos percorridos nessa procura, bem como as formas de assimilação e nomeação dos problemas dos filhos.

Percepções e modos de lidar com os problemas das crianças e dos adolescentes

Esta categoria engloba os processos de percepção dos os pais acerca das dificuldades dos filhos; as avaliações sobre a necessidade de tratamento; os trajetos trilhados até o acesso ao CAPSi.

A análise das narrativas construídas pelos responsáveis nos permitiu destacar que alguns procuraram acompanhamento psicossocial quando perceberam comportamentos que consideraram inadequados, como rebeldia. Associaram tais comportamentos a dificuldades emocionais para lidar com a perda dos pais e, consequentemente, com uma nova configuração familiar. Atribuem tais dificuldades ao fato de terem se divorciado de seus cônjuges, ou ao óbito de um deles, como podemos observar no relato de Lúcia,

[...] Denis é que ele está numa rebeldia muito grande e a gente tá aderindo isso ao desprezo do pai dele, o pai dele não dá atenção, não procura e a única coisa diferente que tá acontecendo na vida dele. E isso está gerando ele uma criança muito rebelde, muito desobediente, muito desatento. Ao mesmo tempo que ele é muito rebelde e agressivo, ele é muito aéreo, fica muito desligado e eu estou ficando muito preocupada com isso, porque é como eu falei aqui na entrevista que eu tive semana passada, e eu estou vendo que ele está seguindo um caminho que se eu não correr com ele agora eu vou acabar perdendo meu filho pra uma coisa ruim., então eu senti isso de procurar uma ajuda e chegando na escola eu fui conversar e eles também sentiram, ai foi onde indicaram pro CAPSi (Lúcia, mãe de Denis).

Em narrativas distintas, os responsáveis consideraram que não havia nenhum problema com as crianças em acompanhamento no CAPSi, embora continuassem levando-as ao serviço. Esse julgamento parece derivar da crença de que dificuldades geradas por sentimentos não correspondem a um problema que exige tratamento. Nesse sentido, serviços de saúde mental seriam destinados a pessoas que apresentam sintomas mais exuberantes, alterações mentais (alucinações e delírios) ou limitações/ inadequações motoras.

Outros responsáveis contaram que seus filhos já nasceram com algum problema, como por exemplo o hipotireoidismo congênito. Contudo, só passaram a sentir a necessidade de atendimento para questões psicológicas ou psicossociais a partir de indicação de médicos ou outros profissionais de saúde e da escola, bem como a partir da comparação com outras crianças. Exemplo desta última forma de reconhecimento da necessidade de tratamento pode ser encontrado no seguinte relato:

[...] Eu tava com uma criança de quase dois anos que eu não sabia o que estava acontecendo, a criança não olhava para mim, não fazia nada, só queria ficar se sacudindo... aí eu falei “gente, eu tenho duas filhas e minhas filhas não eram assim, tem alguma coisa anormal” então eu queria descobrir o que estava acontecendo, entendeu? A criança tem quase dois anos, não fala, não tem nenhuma reação. Eu estava desesperada, eu precisava de qualquer tipo de ajuda. Entendeu? (Luciana, mãe de Paulo).

Observamos que, de maneira geral, uma vez reconhecidas as dificuldades dos filhos, os pais passam a culpabilizar-se por estas ou a responsabilizar-se intensamente, julgando ter a incumbência de procurar resoluções definitivas para os problemas. Sobre essa culpabilização, podemos observar o relato de Sueli:

[...] Eu queria uma ajuda pra saber da onde começar, por isso que eu procurei a psicologia, pra eu ter uma noção aonde eu errei. Que eu achava dentro de mim que o erro também era meu, porque eu separei do pai dele porque o pai dele me deu uma coça, o pai dele me bateu, então eu expliquei para ele homem quando bate em mulher perde toda a razão dele todinha. E ele presenciou, na mente dele até hoje ele lembra disso, só que ele me culpou por ter separado, porque ele tinha aquele vínculo com o pai dele dentro de casa, na mente dele ele acha que eu tirei aquele vinculo totalmente e não é assim, né? Pai quando separa tem que ser pai e pronto, mas na mente dele... Eu quero saber da onde, eu quero começar de novo (Sueli, mãe de Tiago).

Importante notar que o sofrimento vivido pelos pais também pode estar associado a dificuldades de elaboração dos seus próprios sentimentos diante dos problemas enfrentados pelos filhos, o que tende a influenciar o modo como expressam as demandas. Contudo, como nos adverte Brandão Junior (2009), no atendimento às crianças corremos o risco de igualarmos ou priorizarmos a queixa do adulto em detrimento do sofrimento da criança e atendermos prioritariamente aos anseios dos primeiros. Como já foi discutido por alguns autores, como Campelo et al. (2014), costuma ser bastante difícil para os pais lidarem com a notícia de que os filhos terão algum tipo de dificuldade. Estas são vividas, comumente, com bastante sofrimento pelos pais, que precisam, dentre outras coisas, entender o que está se passando com seus filhos e também reorganizar o cotidiano de acordo com as necessidades apresentadas.

Tal como vimos em Cecílio (2006), esse tipo de sofrimento dos pais indica que a demanda pelo tratamento do filho pode agregar uma “cesta de necessidades”, entre as quais está aquela que diz respeito ao apoio à elaboração da própria culpa, da frustração e outros sentimentos. Mas, para receber esse tipo de necessidades, é preciso que os CAPSi diferenciem suas práticas daquelas que usualmente são observadas nos serviços de saúde. Estas, tal como salientam Pinheiro et al. (2010), em geral, são orientadas pela lógica biomédica, segundo a qual critérios objetivos e quantificáveis são determinantes para a definição do que leva uma pessoa a procurar tratamento. Estes mesmos critérios são empregados para ressaltar a doença – nosologia, deixando à margem o processo de adoecimento. E, sendo assim, deslocam a doença da pessoa enferma, colocando o “sujeito entre parênteses” e não o contrário, como nos ensinou Basaglia (1985).

Para a construção de novos modelos, que possam romper com a prática vigente, Camargo Junior (2007, p. 67) propõe que o processo de definição e identificação dos problemas de saúde ocorra “como uma negociação complexa entre vários atores, cujos resultados são contingentes e instáveis ao longo do tempo”. Na construção destes novos modelos, é imprescindível que se leve em consideração os modos como os responsáveis formulam e expressam suas demandas, ampliando o campo da queixa.

A ampliação da queixa envolve a escuta e valorização da mesma, ou seja, a consideração do saber protagonizado pelos responsáveis. Na perspectiva de uma das mães, não foi essa a experiência vivida com a pediatra que acolhera seu filho no consultório particular, como podemos observar no excerto abaixo:

Ele tinha uma pediatra que acompanhava ele de bebê, né? Do parto. Aí ela achava que eu era doida, ela falava “não, você é doida, porque ele não tem nada. Olha a cara dele, ele é normal”, eu insistia, e ela “não é nada”. Aí de tanta insistência, eu falando que ele não estava bem que ela me indicou uma neuro em [uma cidade que fica à cerca de 60km do município do CAPSi em questão]. “Então você leva ele numa neuro lá! (Luciana, mãe de Paulo).

No exemplo acima, a médica não só desencorajou, como desqualificou a demanda/preocupação da mãe. Sobrepôs o saber do especialista ao saber da mãe, sem colocar em negociação as diferentes formas de avaliar e compreender um estado emocional ou um comportamento.

Sobre as negociações possíveis entre familiares e especialistas, e o modo como os responsáveis foram percebendo os problemas, destaca-se o exemplo de duas mães que relataram que seus filhos foram diagnosticados pelos médicos como autistas. Entretanto elas não faziam ideia do que isso significava, embora reconhecessem algo diferente nas crianças. Uma delas achou que poderia se tratar de uma virose, enquanto que a outra procurou informações na internet:

O início do Sávio foi lá na APAE. Aí eles falaram comigo: “parece que ele é autista, nós vamos fazer os exames, mas parece”. Eu vou ser sincera para você, para mim, eu não sabia o que que era autismo. Até então eu não sabia o que era o autismo. Aí então eles me encaminharam para outra cidade e foi ali onde eu fiz vários exames com o doutor R. acerca dele. Ele falou “ele não tem nada. O que me parece é ele ser autista, e foi onde ele começou me explicar as coisas. Eu continuei fazendo tratamento na APAE com ele e fui procurar na internet acerca do autismo, o que era e me aprofundando sobre isso (Elaine, mãe de Sávio).

Resultados semelhantes foram encontrados por Campelo et al. (2014) que, em pesquisa sobre as dificuldades enfrentadas pelas famílias no cuidado a crianças e adolescentes diagnosticadas com transtorno mental, ressaltam a dificuldade dos pais de compreensão da terminologia biomédica a partir da qual o diagnóstico é apresentado. Destacam a pressão que a família sofre para aprender rapidamente sobre o diagnóstico “tendo que buscar por conta própria informações sobre as necessidades de seus filhos e os recursos de tratamento” (CAMPELO et al., 2014, p. 200).

Modos de nomeação/apreensão dos problemas: o predomínio do diagnóstico

Nesta categoria apresentaremos os modos como os responsáveis compreendem, descrevem e nomeiam os problemas das crianças e adolescentes. Para tanto, lançaremos mão do conceito de medicalização, que diz respeito a um processo social complexo, por meio do qual as pessoas tendem a compreender a maior parte das experiências humanas a partir do saber biomédico (BELTRAME; BOARINI, 2013). Trata-se de um modo de interpretar o mundo que “[...]se capilariza para outras esferas do existir, medicalização como uma estratégia que transcende o ato de prescrever remédio” (DECOTELLI; BOHRE; BICALHO, 2013, p. 448). Ou, tal como ressaltam Beltrame e Boarini (2013, p. 343):

[...] a medicação tornou-se, literalmente, o remédio para os problemas de toda ordem, seja de ordem médica ou não, e dela nos utilizamos para compreender e solucionar os conflitos produzidos socialmente, tentando, mediante intervenções voltadas para a criança em particular, resoluções para os problemas entre adultos e crianças em geral.

A medicalização, que numa esfera microsocial inclui os usos e abusos da medicação para problemas de toda ordem, numa esfera macrosocial se refere a novos modos de existência. Parte do saber médico biologizante, antes restrito aos settings médicos, passa a atravessar e afetar toda a produção de vida e subjetividade, regulando todo corpo social, produzindo uma normalização e favorecendo o poder sobre os sujeitos (FOUCAULT, 1995). Na realização desta pesquisa observamos discursos afetados por este processo, o que nos permite reafirmar a importância de uma escuta atenta por parte dos profissionais que acolhem as demandas, como discutiremos mais adiante.

Dentre os relatos, uma nomeação bastante mencionada pelos pais foi hiperatividade, que em alguns casos era considerada como hipótese diagnóstica antes mesmo da busca pelo CAPSi. Helena, mãe de João de 10 anos, que no momento da pesquisa era atendido há um mês no CAPSi, exemplifica esse achado:

Ele é hiperativo, ele é hiperativo e tem déficit de atenção... porque ele é muito agitado, ele não para, não presta atenção, entendeu? [...] Quando ele era pequenininho ele foi indicado pra uma doutora, e ela falou, ela, ele passou por ela também... ela é psicóloga. Aí primeiro começou atendendo lá na escola, depois saiu de lá, mandaram ela pra L., aí ela foi e o pai dele levava ele, aí ela falou que ele era hiperativo e tinha déficit de atenção. E aonde tiver é... aí devido à hiperatividade é porque ele não consegue parar (Helena, mãe de João).

Destaca-se que quatro mães falaram sobre a ansiedade como sendo um dos problemas de seus filhos. Vânia, mãe de Mônica, de 9 anos, que estava no CAPSi há um ano, menciona o diagnóstico dado pelo psiquiatra do serviço, afirmando que a filha “faz o TOC para aliviar a carga de ansiedade”. É interessante notar que ela identifica em experiências psicossociais as causas para o adoecimento psiquiátrico:

Então, o meu problema é... a Mônica... o médico, o doutor Lucas diagnosticou ela com TOC. É... ela tem uma ansiedade muito grande. Ela tem uma ansiedade muito grande. Aí ela faz o TOC para aliviar a carga de ansiedade dela. O que eu acho... a Mônica desenvolveu isso depois dela não ter passado na escola. Porque ela ficou reprovada no primeiro ano e ela não aceita isso até hoje e as crianças da escola fizeram bullying com ela chamando ela de burra e depois disso... ela chegava da escola muito estressada, ela jogava a mochila, gritava, falava que ia morrer na escola... aí eu achei assim e até o Lucas também concorda com isso, que foi uma coisa muito forte na vida dela isso, né? (Vânia, mãe Mônica).

A palavra pânico apareceu em dois relatos, num deles com sentido de medo (a mãe dissera que o filho tem “pânico de bola”) e outro referindo-se ao diagnóstico de transtorno de pânico:

Aí o problema dela é esse, aí a perda do pai que ela já estava aprendendo, foi tudo por água abaixo né, e ela tem assim, ela tem problema de pânico, ela não pode sentir nada que ela pergunta se vai morrer, ela tem isso né (Vera, mãe de Karen).

No quadro descritivo das formas como os responsáveis nomeiam e significam os problemas de seus filhos, pôde-se perceber que há aqueles que chegam com o diagnóstico dado por outros profissionais, mas há também alguns que associam o problema do filho com uma característica, como no caso da agressividade. Sobre os diagnósticos e modos de nomeação, em que aparecem “hiperatividade”, “autismo”, “pânico”, “TOC”, podemos recorrer a Bernardino (2013), que considera que um modo de nomear que emprega uma classificação universalizante, próprio dos manuais diagnósticos e estatísticos, anula as singularidades. Para a autora, “[...] a criança perde sua história, suas origens, seus traços [...] para se tornar um ‘asperger’ um ‘autista’, um ‘portador’ de uma determinada síndrome” (BERNARDINO, 2013). Responde à ideologia do ter, em detrimento do ser. Anula-se a história, o quem se é, para falar-se do que se tem.

Frente a questões como essas, para Pinheiro et al. (2010, p. 21), é preciso:

[...] adotar uma postura crítica quanto às normas rígidas, os modelos fixos e fluxos centralizados que caracterizam os modos tradicionais de organização das políticas de saúde, vigentes há décadas no sistema nacional de saúde brasileiro. São modos que têm nos ‘modelos ideais’ seu modos operandi, que buscam diagnosticar ‘demandas’, traduzindo-as em ‘reais necessidades’, as quais devem ser respondidas por critérios técnicos, objetivos, cujos resultados sejam quantificáveis, muitas vezes negando as ‘práticas eficazes’ decorrentes da interação dos sujeitos envolvidos no cotidiano das instituições de saúde.

Ressaltamos que nesta pesquisa quem utiliza uma classificação universalizante, como apontou Bernardino (2013), são os próprios pais, o que nos permite pensar na influência e predominância da cultura biomédica. Diante disto, cabe refletir como os profissionais podem receber e desconstruir demandas que se estruturam em torno de nomeações como “hiperatividade”. Para os pais, os filhos não são naturalmente “hiperativos”, são crianças que trazem dificuldades, enigmas, sofrimentos. A redução a um diagnóstico só ocorre a partir de uma construção social, que começa no modo como nossa cultura lida com as diferenças, e culmina no tratamento que o setor saúde lhes oferece.

Como sinalizamos mais acima, há uma circularidade entre oferta e demanda (CECÍLIO, 2006; PINHEIRO, 2001; PINHEIRO et al., 2010), de tal modo que não seria de se estranhar que os sujeitos que tiveram atendidas suas solicitações de “tratar do filho hiperativo”, sem problematização e crítica, retornassem ao CAPSi com esta mesma demanda, ou uma demanda por medicamentos que curasse a “hiperatividade” de seus filhos. A esse respeito, é necessário relembrar a advertência de Cecilio (2006), para quem a demanda é, em boa parte, uma necessidade modelada de acordo com a oferta feita pelos serviços e, ademais, um pedido explícito, uma tradução de necessidades mais complexas. Podemos complementar esse raciocínio com os apontamentos de Guerra (2005) sobre a importância de que se escute o que os sujeitos estão dizendo através da queixa que se apresenta, o que romperia com uma prática desimplicada por parte dos profissionais.

As referências à agressividade também chamaram a atenção pois, em alguns casos, os pais pareciam nomeá-la como um diagnóstico, como sendo o problema em si. Trata-se de menções nas quais não aparece, por exemplo, nenhuma nomenclatura de transtornos ou outras denominações comuns à psiquiatria e frequentemente utilizadas na mídia e no senso comum, em reprodução a um discurso médico. Por outro lado, em alguns relatos, um produto do saber psiquiátrico - a medicação - é apresentada como resposta possível para a agressividade.

O [problema do] meu é essa agressividade [...] Tá agressivo, tá crescendo, tá com 13 anos já com corpo de adulto, com 80 quilos já. Eu tenho que vê com o médico direitinho, vai passando a medicação até o controlamento mesmo da capacidade de agressão. Porque pra mim, o mais chateado que a gente fica é a agressão. É a agressão. Ele fica agressivo. E ele não tá nem aí se ele vai quebrar espelho, porta, se ele vai quebrar o vidro pra ele tanto faz (Elton, pai de Antônio).

Relatos como o de Elton podem ser associados às reflexões de Beltrame e Boarini (2013), segundo as quais, frequentemente, os sujeitos procuram o serviço com a demanda por consulta médica, exames ou receita de alguma medicação. Tratam-se de pedidos que revelariam uma naturalização desse tipo de reposta dos serviços, o que contribui para que o modelo de atenção no campo da saúde mental infantojuvenil siga na via da medicalização da infância e da responsabilização da criança por problemas sociais, educacionais e familiares. Para as autoras, incialmente é necessário um questionamento por parte dos profissionais acerca dos pedidos que recebem, para que, em um segundo momento, os próprios usuários passem a estranhar tais demandas, como a procura exclusiva por medicação.

No que diz respeito, especificamente, à solicitação por medicação, podemos recorrer ao que Schmidt e Figueiredo (2009) ponderaram sobre a importância de se realizar uma decantação das demandas, na medida em que os sujeitos não devem ser entendidos e tomados como um “depósito de sintomas” a serem extirpados pelos profissionais, por intermédio da medicação. As autoras recomendam relativizar a demanda por medicamento, convocando os sujeitos a pensarem sobre outras possibilidades, propiciando que, caso seja necessário o uso de algum remédio, a decisão por fazê-lo seja tomada a partir da inclusão dos pacientes como agentes desse processo.

Ainda sobre a relação dos responsáveis com a medicação, outro aspecto a ser ressaltado diz respeito aos modos como lidam com os remédios indicados aos seus filhos. De forma geral, trata-se de uma relação permeada por desconfortos e questionamentos, como podemos identificar no discurso de Vera e Fernanda, duas mães que reclamam do fato de a medicação induzir sono em excesso nos filhos. Fernanda disse que, incialmente, não queria levar o filho ao CAPSi, pois temia a avaliação do psiquiatra e a consequente indicação de psicotrópico, como havia ocorrido por ocasião de uma consulta com neurologista. Com o passar do tempo, transpôs seu receio e acompanhou o filho numa consulta com médico do serviço, mas recusa-se a dar-lhe a medicação prescrita.

O encaminhamento foi da APAE, mas eu não queria passar pelo doutor Lucas... porque eu sabia que ele ia passar os remédios, que a primeira doutora [neuro] lá passou. E eu não queria porque ele dorme muito, e ele fica muito agitado, aí eu fiquei assim ‘vou passar por ele vai acontecer tudo de novo’. Já tinha essa coisa do medicamento ou ele dorme demais ou ele fica agitado, aí quando foi no dia dele vir consultar com o doutor Lucas, eu fiquei meio... mas mesmo assim cheguei em casa e não dei remédio, falei assim não vou dar esse remédio, vai que acontece tudo de novo e eu vou ter que ir pro hospital, que eu tenho mais um menino, vou ter que ir pro hospital de novo, já tinha ido pro hospital com ele por causa desse problema dele (Fernanda, mãe de Ricardo).

Relatos como o de Fernanda nos indicam que as demandas e usos do serviço são sempre singulares: enquanto alguns pais buscam diretamente a medicação, outros se recusam a utiliza-la ou fazem-no de modo diferente daquele orientado pelo médico. Portanto, a hegemonia do saber biomédico encontra alguns movimentos de resistência, indicando que os usuários fazem usos sempre específicos daquilo que lhes é ofertado, o que depende de sua inserção sociocultural, mas também de suas experiências pessoais, pois, nem todas as experiências humanas são inteiramente cooptadas pela medicalização.

Essa observação de que muitos responsáveis fazem referência a diagnósticos de transtornos mentais para explicarem os problemas e os modos de seus filhos se relacionarem com o mundo, é bastante comum numa sociedade que vive o que Allen Frances (2017) denomina de “epidemia diagnóstica”. Trata-se de uma terminologia através da qual o autor comenta o elevado número de diagnósticos existentes e suas consequências, como o consumo exacerbado de drogas psicotrópicas. Contudo, cabe observar que há contradições nesse quadro (como em quaisquer processos sociais), de tal modo que alguns pais se referem a seus filhos a partir de denominações relacionadas a outras vivências socioculturais, para além do campo da biomedicina.

Gilson tem 15 anos, ele ficou com problema desde que a mãe dele faleceu. Então ele não saia de casa não, não ia nem a escola. tem 2 anos e pouco que ela faleceu. Uns 2 anos e uns 4 meses. Então, depois acho que depois ele ficou meio estressado, ele era muito colado com ela. Ai começou a dar problema com ele, não saia de dentro de casa (Nilton, pai de Gilson).

Resumidamente, podemos afirmar que, de modo geral, os pais identificam a necessidade de buscar tratamento para os filhos quando percebem nestes alguns comportamentos diferentes do esperado. Muitas vezes, associam tais comportamentos a experiências familiares e sociais, culpando-se ou responsabilizando-se inteiramente pela resolução dos problemas. Nos percursos em busca de ajuda, nem sempre encontram acolhimento dos profissionais para suas questões e seus saberes. Ao acessarem os serviços, tendem a enunciar suas demandas a partir da incorporação do discurso biomédico, mas o fazem de modo singular, a depender de suas experiências pessoais e sua inserção sociocultural. Assim, o saber psiquiátrico é a fonte hegemônica para a nomeação dos problemas das crianças, mas convive com compreensões pautadas também nas experiências psicossociais das crianças e suas famílias.

Eixo 2: Vivências relacionadas ao CAPSi

Neste eixo, abordaremos as trajetórias dos sujeitos nos processos de procura e acesso ao serviço, bem como as percepções dos responsáveis acerca dos atravessamentos institucionais.

O acesso ao CAPSi

Tratamos até aqui sobre os modos como os responsáveis percebiam, entendiam e nomeavam os problemas das crianças e dos adolescentes. Apresentamos também alguns dos caminhos percorridos por eles até que o CAPSi surgisse como possibilidade de tratamento. Nesta categoria, apresentaremos algumas das experiências que envolveram o acesso, a chegada e a permanência no serviço: as trajetórias até o serviço - incluindo a sua evitação; o conhecimento do serviço e das formas de acesso a ele; como se sentiram ao chegar ao CAPSi; as descobertas sobre seu o modo de funcionamento.

No que tange às trajetórias até o acesso ao serviço, alguns entrevistados têm em comum a experiência de, antes de acessarem o CAPSi, terem procurado atendimentos em outros municípios ou clínicas privadas, seja porque assim escolheram ou por não saberem da existência do serviço. Ficou evidente um desconhecimento, tanto por parte de algumas pessoas que procuravam ajuda, quanto de alguns outros serviços públicos do próprio município, da possibilidade de acesso ao CAPSi por demanda espontânea, sem necessidade da mediação ou encaminhamento, tal como podemos observar no relato de Vânia:

O que eu fiz? Eu fui num posto ali fora, peguei encaminhamento com o pediatra e vim. Aí fiz a porta de entrada e consegui. Fui ao Pediatra só para pedir encaminhamento para vir para cá, porque para eu entrar com ela aqui era só com porta de entrada, aí tive que ir no pediatra lá fora e pegar o encaminhamento, no caso, para fazer a porta de entrada (Vânia, mãe de Mônica).

Duas das mães, que procuraram ajuda em outras cidades antes de chegar ao CAPSi, apontam que, inicialmente, percebiam uma necessidade de tratamento para os filhos, mas as pediatras dos mesmos desencorajaram-nas a buscar um serviço de saúde. Houve também casos em que os pais levaram os filhos para tratamento em cidade vizinha porque possuíam convênio médico, ainda que reconhecessem a existência de “amparo de serviços mais próximos de casa”, como mencionou um pai, ao reconhecer a existência de serviços públicos de saúde a que recorrer, embora, naquele momento, tenham preferido o setor suplementar. Quadros como esse podem indicar, por um lado, valorização de serviços particulares ou supostamente mais especializados, em detrimento do setor público. Por outro lado, a posterior procura pelo CAPSi evidencia que a proximidade geográfica e o vínculo com o território são fatores determinantes na facilidade do acesso. No exemplo a seguir, podemos notar que Vania valoriza não apenas a localização do serviço, mas a possibilidade de um contato mais rápido (e aparentemente facilitado) com a psicóloga, apresentando indícios de um processo de vinculação:

Eu vim para cá, porque eu sabia que aqui tinha o amparo para isso, porque eu moro aqui desde que nasci né? Então, antes de levar ela pro Rio eu tentei trazer ela aqui, mas meu esposo não quis, ele disse “vamos levar ela, pois temos plano de saúde, então leva pro Rio”. Aí resolvemos levar, mas aí eu falei “não está adiantando. Não adianta nada a gente pagar e não ver resultado, porque não está resolvendo, então vamos tentar aqui para ver como é que vai ser, porque ali tem a psicóloga, a hora que a gente precisar a gente pode chamar ela, ligar para ela, levar a Mônica lá”. Ia ser mais fácil pra mim e fica cansativo para ela... Aí eu não tratava ela aqui, eu tratava lá (Vânia, mãe de Mônica).

Em outro caso, a busca pelo CAPSi fora motivada pelo interesse dos pais no acompanhamento de psicologia e fonoaudiologia, áreas não cobertas pelo convênio que pagavam. É importante ressaltar que em um dos casos, o CAPSi foi apresentado como possibilidade de tratamento através da comunidade, do contato social.

Foi por inciativa própria! Própria! Própria! Própria! Porque eu já não tava aguentando mais... Os conhecidos da rua fala! Ai vai vendo ele daquele jeito e agressivo e tal! E as pessoas indicam, uma pessoa boa do coração vai e indica vendo situação sua. Era as pessoas da rua quem indicou!! (Elton, pai de Antônio).

Em contraste com a situação acima, destacam-se dois casos encaminhados ao CAPSi pela secretaria de saúde e pela escola, após certa peregrinação dos pais por outros profissionais e serviços. Este é um dos fatos que configuram a ausência de diálogo entre os serviços, bem como do trabalho que prevê a intersetorialidade, princípio fundamental de uma rede de cuidados, principalmente em contextos que envolvem crianças e adolescentes (COUTO; DELGADO, 2010; AMSTALDEN; HOFFMAN; MONTEIRO, 2010; PINHEIRO et al., 2010). Sobre a importância de diálogo e do trabalho colaborativo, territorializado, podemos recorrer a Lima e Yasui (2014) que destacam a importância da parceria entre serviços de saúde e entre estes com a comunidade para operar o cuidado, na medida em que as necessidades das pessoas são por demais complexas para serem contempladas por apenas um serviço, por mais completo que este seja.

Houve também uma mãe que procurou na escola apoio e mediação para o encaminhamento do filho ao CAPSi, o que pode expressar seus vínculos com os professores, mas também certa insegurança em procurar atendimento por conta própria e/ou um desconhecimento da abertura do serviço à demanda espontânea. Trata-se de um desconhecimento que chama muito a atenção também porque que o seu filho mais velho já havia feito tratamento no CAPSi.

Em dois casos as mães procuraram ajuda de outros serviços como o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e o Conselho Tutelar, com o intuito de conseguir encaminhamento para o CAPSi. Uma das mães alegou que procurou o Conselho Tutelar porque a escola não identificava necessidade de fazer o encaminhamento, já que não reconhecia, ou “não via o caso de seu filho como um problema”, diferentemente de como ela pensava. Em relação à mãe que procurou o CRAS, é importante sinalizar três aspectos: ela também procurara a unidade básica de saúde, mas os profissionais desta apenas a informam que não havia atendimento; seu interesse no CAPSi relacionava-se a uma categoria profissional específica: fonoaudiólogo; o CAPSi lhe fora apresentado por uma amiga, como possibilidade de tratamento.

Acerca desses caminhos percorridos pelos responsáveis na busca pelo CAPSi, podemos destacar que muitos encaminhamentos são realizados de forma burocrática, sem diálogo entre os profissionais/serviços. Diálogo que, de modo geral, não é iniciado pelo profissional/serviço que encaminhou, nem pelo CAPSi, ao receber os sujeitos para atendimento. Isso pode expressar a ausência do trabalho colaborativo, tal como preconizam Teixeira, Couto e Delgado (2017), e revelar uma transferência de responsabilidades de um serviço ao outro (CAMPOS; DOMITTI, 2007; CAVALCANTE; JORGE; SANTOS, 2012; RANNA, 2010), indicando problemas na configuração da rede de saúde e intersetorialidade.

A pesquisa aqui apresentada não abarcou os profissionais do CAPSi, o que nos impediu o conhecimento da dinâmica de trabalho a partir da perspectiva desses sujeitos. Contudo, a menção à ausência de diálogo entre os profissionais/serviços pode-nos servir como alerta para a necessidade de que todo CAPSi privilegie o trabalho territorializado, cuja inexistência ou ineficácia pode dificultar o reconhecimento do serviço como espaço de direcionamento de demandas em saúde mental infantojuvenil. Como destacado na introdução deste artigo, os sujeitos procuram serviços como o CAPSi visando a obtenção de acesso às ofertas e aos benefícios que podem ser proporcionados pelos atendimentos. Lembremos, então, que o acesso pode ser entendido como sendo aquilo que é ofertado pelo serviço em relação ao que é demandado a ele (PINHEIRO, 2001; SCHMIDT; FIGUEIREDO, 2009; COUTO, 2004; COUTO et al., 2008). A implementação de um CAPSi objetiva responder à necessidade de ampliação do acesso ao tratamento, contudo, a gestão dos territórios nos quais está inserido, bem como a promoção do trabalho colaborativo, devem ser parte do cotidiano destes serviços.

Após discorrerem sobre os caminhos percorridos e as formas como acessaram o CAPSi, os responsáveis descreveram suas percepções do serviço, no momento em que chegaram até ele. Dentre tais descrições, destaca-se o fato de que em comum encontra-se a menção à então secretária do CAPSi:

Fui recebido pela Aparecida lá na frente, que ela faz a sua fichinha, aí você senta ali e espera. Que eu já conhecia ela desde lá do hospital psiquiátrico de vista né, nem sabia que ela era secretária aqui. Aí ela faz a ficha da gente, como o Nilton [outro entrevistado] falou, muito educada com todo mundo, muita paciência (Elton, pai de Antônio).

O bom daqui que eu já vi também, é que a Aparecida, a Aparecida é secretária, as crianças já chegam e ela já fala: oi, Lucas, oi Cássio. Então desde a secretária as crianças já pegam confiança (Sueli, mãe de Tiago).

Pode-se creditar tais experiências ao fato de Aparecida ser quem, geralmente, recebe as pessoas na entrada do serviço, tanto no primeiro contato, quanto durante todo o período em que os sujeitos permanecem o frequentando. Acrescenta-se a isto o fato de que os responsáveis costumeiramente aguardam na própria sala de recepção enquanto as crianças e os adolescentes são atendidos, sendo a secretária, para muitos deles, a pessoa com quem mais têm contato. Trata-se de um cenário que indica a importância da equipe, permitindo-nos ponderar que, apesar de em alguns momentos os discursos valorizarem os especialistas, em outros, indicam a valorização das relações construídas com todos os profissionais.

O acolhimento, segundo preconiza o Ministério da Saúde, é uma postura transversal e, sendo assim, deve ser exercida por toda a equipe:

[...] o acolhimento é uma prática presente em todas as relações de cuidado, nos encontros reais entre trabalhadores de saúde e usuários, nos atos de receber e escutar as pessoas, podendo acontecer de formas variadas (“há acolhimentos e acolhimentos”). Em outras palavras, ele não é, a priori, algo bom ou ruim, mas sim uma prática constitutiva das relações de cuidado (BRASIL, 2013, p. 19).

As menções que os entrevistados fazem à secretária podem indicar que há práticas de acolhimento bastante apropriadas no CAPSi o que, certamente, contribui com a construção do vínculo dos responsáveis com o serviço e do compromisso com o tratamento. Além das menções às secretárias, existiram referências à equipe de modo geral, também com valorização do acolhimento.

Eu gostei muito por causa do, como é que fala? É... abraçaram a nossa causa junto com a gente, com os nossos filhos, com a gente mesmo, que quando a gente chega aqui que eu vim conversei com a E. e com a outra que saiu, me senti que eu fui bastante acolhida, e ele também foi bem acolhido. E eu gostei muito do tratamento aqui, tanto é que eu venho e trago ele, ele vem feliz, ele levanta cedo, tem a expectativa de ele levantar e ele tá sentindo, que ele tá evoluindo, e eu to sentindo também, eu to gostando bem do tratamento dele aqui (Fernanda, mãe de Ricardo).

Os relatos apresentados permitem-nos destacar a importância que os responsáveis dão à forma como são recebidos, acolhidos, reforçando a diretriz de que a postura do acolhimento deve permear toda a equipe. A esse respeito, Schmidt e Figueiredo (2009) destacam que desde o primeiro contato são postos à prova todos os recursos do serviço, envolvendo o que o este pode oferecer e como pode avaliar e discriminar a demanda. Para as autoras, a forma como se dará o primeiro contato definirá toda a sequência de atendimentos.

Situação diferente foi narrada por Lúcia, mãe de Denis, que direcionou suas reclamações a uma profissional em específico, o que reafirma a importância do processo de acolhimento, já que, o fato dela não sentir sua queixa legitimada fez com que se sentisse mal recebida. Outros responsáveis também relataram que não gostaram de suas primeiras experiências no CAPSi, o que é comum em se tratando de processos sociais, que inevitavelmente englobam divergências e trazem descontentamentos. Sendo assim, ressaltamos que coexistiram nos grupos avaliações muito positivas e negativas no que concerne ao acolhimento realizado pelo serviço. Luciana, mãe de Paulo, contou que chegou até mesmo a deixar de frequentar o CAPSi por um tempo. Também é interessante observar no discurso de Luciana a ênfase dada às categorias profissionais e a duração dos atendimentos, em comparação ao tratamento que o filho já fazia:

Não, eu não gostava muito. Na primeira vez eu não gostava, porque eu achava que ele... porque como ele estava acostumado com a terapia que ele tinha [em outro município] a terapia de lá era muito complexa, era muito... tinha tudo. [...] não tinha muita coisa para ele aqui, porque o Paulo precisava mesmo era de uma T.O., terapia ocupacional, porque ele precisava muito, noventa por cento terapia ocupacional mais a terapia... e aqui quase não tinha isso e aí isso começou a me fraquejar um pouco. Na APAE tinha, só que na APAE é meia hora por semana e ele fazia três horas por dia e era três vezes na semana, quer dizer nove horas semanais. Então... ele fazia nove horas semanais na APAE para chegar aqui no CAPSI e pegar meia hora por semana? Era muito ruim, então é uma decadência... Eu saí, mas não sei por qual motivo que eu cismei de voltar. Não sei. Eu acho que foi por causa da escola... aí comecei a ver que quando ele entrou para escola, né? A ir lá, aí isso me chamou a atenção de voltar aqui, de ver como é que estava o desenvolvimento. E desses anos para cá, ele melhorou cem por cento (Luciana, mãe de Paulo).

Sobre o modo de funcionamento do CAPSi, alguns responsáveis se mostraram surpresos e acharam interessante a variedade de profissionais que compunham a equipe, fator que desconheciam quando foram encaminhados ou quando procuraram os serviços espontaneamente para um tratamento com uma especialidade específica. Foi, por exemplo, o caso de Brígida, encaminhada para tratamento com fonoaudióloga:

Ah eu gostei porque vi que tem outras coisas sem ser fono, tem psicólogo, tem psiquiatra, tem técnico de enfermagem, achei interessante porque eu pensei, sei lá, mais tarde, precisar de uma ajuda psicológica né, não sei como vai ser na escola, porque ela ainda não tá e aí aqui eu sei que tem (Brígida, mãe de Micaela).

Já apontamos acima que nosso material empírico indica intensa valorização de especialidades ou a demanda por profissionais em específico. Contudo, esse quadro pode mudar de acordo com o que é ofertado pelo CAPSi, seja no decorrer dos atendimentos, ou no momento do encaminhamento. Foi o que ocorrera no caso de Lúcia, que desejava um psicólogo para o filho:

O Denis na verdade, além da minha vontade de procurar ajuda, atendimento pra ele, na verdade eu pensei num psicólogo em si, só que chegando aqui eles acabaram fazendo... a escola também pediu pra ele vir também, ao mesmo tempo que eu pensei em pedir uma ajuda do psicólogo eu fui conversar com a escola e a escola também já estava pensando e a escola pediu psicossocial que é uma junta médica, que são vários especialistas pra estar fazendo o tratamento pra chegar num comum acordo!! (Lúcia, mãe de Denis).

Esse relato demonstra a importância e o efeito do trabalho colaborativo, visto que a escola conhecia, minimamente, o funcionamento do CAPSi. Com isso, não realizou um encaminhamento para avaliação médica, como costumeiramente ocorre em consequência da lógica biomédica vigente, e sim, considerou o aspecto psicossocial, que pressupõe um trabalho em equipe. Por outro lado, cabe indicar que, apesar de não negar o trabalho em equipe, o significado de “psicossocial” aparece, para Lúcia, como sendo “uma junta médica”, o que denota a coexistência de pelo menos duas lógicas de tratamento; a biomédica e a psicossocial, tal como é comum em processos sociais complexos.

O CAPSi na Visão dos Usuários: (Des) contentamentos com a Instituição

Após responderem sobre o que haviam achado do serviço quando nele chegaram, os responsáveis discorreram sobre os motivos pelos quais permaneceram no CAPSi, seus contentamentos e insatisfações com a intuição como um todo, o que será descrito nesta categoria. Ao falarem sobre o modo como se sentiam ajudados pelo CAPSi, reafirmaram a percepção da melhora dos filhos e também explicaram os efeitos do tratamento. Neste sentido, destacam-se as contribuições relacionadas à segurança em ter um lugar para recorrer, de poder contar com profissionais especializados, bem como os processos de socialização das crianças e adolescentes. Destaca-se, contudo, que embora os relatos tenham mostrado que, para alguns pais, a socialização indica que o tratamento está tendo bons resultados, para outros, trata-se ainda de um processo a ser desenvolvido junto às crianças. Por outro lado, que em alguns momentos, os responsáveis disseram não saber o que os filhos estavam precisando.

Sobre os motivos relacionados à permanência no serviço, alguns responsáveis mencionaram o acolhimento e a confiança na equipe, elementos que são fundamentais para a manutenção do tratamento.

Pelo o que eu já conheço do CAPSi e ter confiado de trazer o meu outro filho aqui é porque eu sei, que já vim antes aqui, que tem um ótimo resultado entendeu. Aqui, tem ótimos profissionais. Tenho certeza que vai me ajudar muito com relação ao meu filho, que vai ter uma melhora muito grande (Lúcia, mãe de Denis).

Alguns responsáveis falaram também que continuavam levando seus filhos ao CAPSi para que estes tivessem com quem conversar, ou, nas palavras de uma das mães, “desabafar”, reconhecendo também a existência de uma dificuldade de diálogo entre pais e filhos:

Na minha condição acho melhor [continuar vindo] porque aqui é uma forma com ele desabafa, comigo não. Eu pergunto e ele chora, chora, chora e não quer falar. Então pra mim é bom que é uma forma dele falar, conversar com ele. Por isso que eu acho melhor trazer. Pra mim eu acho que é uma forma dele desabafar com a psicóloga, porque ela falou ali que ele conversa muito com ela, então eu vou trazer mais... Ele não gosta de desabafar comigo porque ele acha que eu vou brigar ‘se eu te falar a verdade, a senhora vai brigar’. Ele acha que se for falar do pai dele eu vou brigar (Sueli, mãe Tiago).

Destaca-se que ao longo das discussões ocorridas no grupo, a maioria dos responsáveis não falavam espontaneamente sobre eles mesmos, concentrando suas expressões sempre nos filhos. Em função disso, foi-lhes solicitado que também falassem um pouco sobre si mesmos, explicando se o serviço lhes ajudava de alguma forma. As respostas tiveram em comum o fato de os responsáveis terem nomeado o que sentiam como um “alívio”. Além disso, em alguns casos as demandas apresentadas pelos pais podiam ser traduzidas pela necessidade de ter um lugar. Mesmo que em alguns momentos não soubessem nomear seus problemas, o que sentiam ou o que precisavam, mostravam-se apaziguados com a possibilidade de saber que existe um lugar ao qual podem recorrer. Por outro lado, em certas situações se ressentem do fato de não receberem muitas informações sobre o modo como o tratamento funciona, os objetivos das estratégias terapêuticas, suas funções e potência, o que nos permite reforçar que seria muito proveitoso se houvesse uma ampliação de oportunidades de diálogos entre os pais e os profissionais que acompanham seus filhos.

Outra questão a ser destacada acerca da avaliação que os responsáveis fazem do CAPSi diz respeito à frequência e à ênfase de referências às trocas de profissionais, que aconteceram no serviço durante a realização das entrevistas. Sabemos que qualquer serviço está sujeito a mudanças de trabalhadores, e, certamente, os usuários que estão no CAPSi há muitos anos já vivenciaram isso. A diferença, na ocasião, foi que, em um período recente, praticamente todos os profissionais foram trocados. Esse cenário, que não é exclusivo da cidade onde o estudo foi desenvolvido, inevitavelmente nos leva a refletir sobre o desmantelamento dos serviços públicos de saúde, em especial os de saúde mental e atenção psicossocial.

Pareceu que para os usuários estava sendo difícil lidar com processo de reorganização que o CAPSi vivia, já que os vínculos com os técnicos de referência foram abruptamente rompidos. Importante notar que, além de abrupta, tal interrupção não foi explicada aos usuários, dificultando a elaboração e fragilizando os vínculos com o serviço. Alguns pontos muito relevantes foram destacados nos discursos dos responsáveis, como um sentimento de abandono e o incômodo frente à necessidade de recomeçar todo o processo de tratamento, o que envolvia refazer as entrevistas iniciais a cada troca de profissional.

No relato de um pai pôde-se destacar uma observação acerca da responsabilidade do governo sobre as mudanças, o que foi consensual para outros quatro responsáveis:

[...] agora trocou tudo, a mulher ficou aqui quase um ano com ele, isso daí deu um baque. A maioria saiu tudo, que eu vejo aqui... o psicólogo ele chega junto na profissão dele, só que a prefeitura não chega junto. Aí eu te pergunto, a prefeitura chega junto? Chega junto da profissão deles? Dá o apoio que eles precisam? Eu creio que não, porque se chegasse nenhum deles tinha saído daqui não” (José, pai de Claudio).

Luzio e L’Abbate (2009), em uma pesquisa sobre as ressonâncias da reforma psiquiátrica em municípios de pequeno e médio porte, ressaltam que a inclusão de ações ligadas às políticas públicas de saúde mental na agenda destes não garante que, de fato, assumam um projeto de Saúde Mental que leve em conta os princípios e diretrizes da reforma psiquiátrica. Assim como podemos observar na realidade do presente estudo, as autoras constataram que os gestores municipais nem sempre estão comprometidos suficientemente com a política nacional de saúde.

Os responsáveis reconhecem, contudo, os esforços dos trabalhadores em minimizar os prejuízos advindos de decisões da gestão municipal. Uma das mães disse que, mesmo com a equipe defasada, eles se “espremeram de todo jeito” para garantir algum atendimento aos seus usuários. Frente a esse reconhecimento, acrescenta que “só esse esforço da equipe já foi muito importante”. Outra mãe também ressaltou que apesar de tudo, mesmo trocando todos os profissionais, ela continuaria frequentando o CAPSi enquanto fosse necessário. Expressões como essas nos permitem compreender que os vínculos dos usuários se dão com o serviço como um todo, e que, tal qual a sensação apaziguadora de ter um lugar ao qual recorrer, isto permitiu, no cenário estudado, que resistissem aos esgarçamentos das relações com os profissionais que são desligados da equipe. Contudo, é preciso admitir que se trata de uma resistência que, certamente, tem limites, envolve sofrimento e riscos de agravamento de problemas.

Considerações Finais

Um dos aspectos que se destacaram no material empírico aqui apresentado diz respeito à inexistência de ofertas de dispositivos, no CAPSi, para trocas de experiências e apoio mútuo entre os pais ou para tratamento destes. Essa lacuna dificulta a elaboração do sofrimento advindo da relação com o filho em tratamento, assim como o discernimento sobre as demandas direcionadas ao serviço.

Para além das possibilidades de trabalho in loco, esta pesquisa reforça também a importância de um trabalho colaborativo e territorializado. Destacamos a necessidade de que o CAPSi possa desempenhar com vigor a gestão dos territórios aos quais está inserido, levando em conta as parcerias entre os serviços de saúde e, em igual importância, entre os estes e a comunidade. Trata-se de um tipo de gestão que deve respeitar a complexidade, as vicissitudes e pluralidades que envolvem as demandas, sempre em construção, dos sujeitos daquele território.

Esta pesquisa confirmou, ainda, que os tipos de demandas direcionadas a um serviço podem indicar as limitações e potencialidades de uma equipe e sua produção de cuidado. Observamos, também, que aquilo que é ofertado pelos serviços influencia as construções das demandas por parte dos usuários, em uma relação circular.

Finalmente, é importante ressaltar que o desenvolvimento das entrevistas em grupo oportunizara que os pais se encontrassem, se conhecessem, compartilhassem experiências, desabafassem, descobrissem dificuldades em comum, e até mesmo propusessem a formação de um “grupo terapêutico”. Tratou-se de uma experiência que concedeu à pesquisa certo efeito de intervenção. Sabemos que toda pesquisa intervém na realidade e, no caso aqui apresentado, o que notamos foi que as entrevistas em grupo oportunizaram a criação e/ou fortalecimento de certa grupalidade entre os sujeitos, além das trocas sociais.

Isto posto, reiteramos a importância de espaços diversificados, plurais, como assembleias ou associações de pais e responsáveis, grupos e outros tipos de encontro entre tais sujeitos, de modo que possam participar das decisões sobre o funcionamento do serviço, ao mesmo tempo que tenham seu próprio sofrimento acolhido. Assim, é fundamental que os CAPSi construam e sustentem ambientes que permitam que os profissionais ouçam as perspectivas dos responsáveis sobre as necessidades de seus filhos, e construam estratégias de tratamento de modo compartilhado. Espaços estes que priorizem confiança e acolhimento, fundamentos que se reafirmaram essenciais para a manutenção de um processo terapêutico, mas também a legitimação da experiência e do saber dos responsáveis pelas crianças e adolescentes.

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Tramitação

Recebido em: 25 ago. 2018

Aceito em: 17 fev. 2019

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