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Psic: revista da Vetor Editora

Print version ISSN 1676-7314

Psic vol.3 no.1 São Paulo June 2002

 

ARTIGOS

 

O manejo na psicoterapia psicanalítica - uma visão winnicotiana

 

 

Roberto Kehdy *

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor descreve o "manejo" da transferência no setting das psicoterapias psicanalíticas, dentro de um ponto de vista da teoria de Winnicott. Acredita que, para ter-se uma idéia clara deste conceito, é necessário situá-lo dentro do pensamento de Winnicott. Para exemplificar, cita três situações clínicas sendo uma do próprio Winnicott.

Palavras-chave: Manejo, Adaptação do setting às "necessidades" do paciente.


ABSTRACT

The author describes the "handling" of transference on psychoanalytical psychotherapies within Winnicott's theory's point of view. He believes that, to have a clear notion of this concept, it's necessary to place it inside Winnicott's thinking. To exemplify, the author quotes three clinical situations, one of them from Winnicott himself.

Keywords: Handling, Adaptation of setting according to the patient's needs.


 

 

"Onde não há jardim, as flores nascem de um secreto investimento em formas improváveis"

Carlos Drumonnd de Andrade

 

Para que possamos falar em manejo, dentro de uma visão Winnicotiana, penso ser necessário que o situemos - o manejo - dentro do corpo teórico do pensamento de Winnicott. Do contrário corremos o risco de cair em simplificações e até mesmo numa visão ingênua onde as interferências do analista possam ser vistas como um "vale tudo", uma "love story" ou até mesmo atitudes de sedução por parte do terapeuta.

Todos nós conhecemos a célebre frase de Winnicott - não existe alguma coisa como um bebê - mas às vezes tenho dúvidas, se todos se dão conta do alcance desta formulação. Está postulando com esta assertiva que toda vez que um bebê nos é apresentado alguém o faz e este alguém está cuidando dele. Insere assim, de uma maneira inequívoca, a mãe que cuida dele e o ambiente que o sustenta. Traz, portanto à cena, a importância dos cuidados dispensados ao bebê, - a maternagem - e todas suas conseqüências para o desenvolvimento harmônico do mesmo.

Cria assim os conceitos de preocupação materna primária e de holding - que são pilares para que possamos compreender toda a extensão e desenvolvimento de seu pensamento.

Winnicott acreditava que existe um impulso biológico em direção ao desenvolvimento emocional, em direção ao progresso.

Postulou a importância do ambiente em adaptar-se às necessidades do bebê. - Quando esta adaptação é adequada a sensação de "continuidade do ser" do bebê é mantida e com a continuação destas experiências o bebê evoluirá para um desenvolvimento harmônico. Se a adaptação ambiental não for suficientemente boa, isto é, adequada às necessidades do bebê - estas falhas Winnicott chamou de intrusões - o bebê reagirá e perderá o sentimento de continuidade do ser. Se estas falhas se repetem o bebê tenderá a organizar defesas contra elas e resultará no que Winnicott chamou de falso self.

A falha materna provoca reação à intrusão e as reações interrompem o "continuar a ser" do bebê. O excesso de reações não provoca frustrações, mas uma ameaça de aniquilamento. O ego não estando ainda desenvolvido não tem condições de discriminar o eu do não eu. Não tem, portanto, condições de experimentar ódio pelo ambiente que não o sustenta e que não corresponde às suas necessidades. Em vez de ódio experimentará angustias inomináveis e ameaças de aniquilamento.

A meu ver, esta ansiedade é muitíssimo primitiva, muito anterior a qualquer ansiedade que inclua a palavra morte em sua descrição.1

Freqüentemente encontramos em nossas clinicas, pacientes com este perfil. Em vez de sentirem ódio pelas situações que os frustram e os magoam experimentam o vazio e o sentimento de inutilidade, nada vale a pena. Nestes momentos da analise a indignação e o ódio são, em geral, sentidos pelo analista.

Repetindo, Winnicott enfatiza que a base para o estabelecimento do ego dependerá, portanto, da capacidade da mãe de "sustentar" o seu bebê, fornecendo-lhe um ambiente que Winnicott chamou de suficientemente bom. No começo da vida, trata-se de necessidades corporais, que só aos poucos são transformadas em necessidades do ego e uma psique emerge a partir da elaboração de experiências físicas.

Como já mencionei, o fracasso da adaptação da mãe às necessidades do bebê levará à formação de um falso self. Vale lembrar que o autor estabeleceu uma diferença entre um verdadeiro e um falso self. O falso será organizado para defender o verdadeiro self contra as angustias iniciais. Tem sempre, portanto, uma função defensiva e será o ambiente e suas falhas que determinarão a extensão do mesmo.

O bebê crescerá, mas as marcas estão lá. Seu sentimento de existência, de ser verdadeiro, de ser si mesmo, está comprometido. Pessoas com estas características estão sempre tentando corresponder às expectativas dos outros e do ambiente. Muitas vezes conseguem até muito sucesso pessoal e profissional mas o sentimento de vazio, de estar blefando - está sempre presente solapando o seu sentimento de ser consistente, de ser "inteiro". A possibilidade de apropriar-se de seus desejos, de sua vida, de dizer eu quero, me convêm, me interessa, estão fortemente comprometidos, pois como já aludi o self se organiza para corresponder às expectativas ambientais.

Todos nós, em nossos consultórios e até mesmo nas nossas relações sociais encontramos pessoas com este perfil.

Fiz toda esta digressão pois, como já mencionei anteriormente, não acredito que se possa falar de manejo sem entrarmos no pensamento de Winnicott.

Mas, retornemos às falhas ambientais. Nos casos de falhas ambientais mais graves Winnicott falará de deprivação e a conseqüência será conduta anti-social e delinqüência. Dependendo da intensidade e, se situadas muito precocemente, darão origem às psicoses. Vemos, portanto, e entendo ser esta uma das características mais importantes do pensamento de Winnicott - a ênfase dada ao ambiente e a maternagem. Nas situações comuns da vida chamou de ambiente ou de mãe suficientemente boa, a mãe devotada comum. Suficientemente boa porque está incluindo aí as falhas inevitáveis de todos os seres humanos; não está postulando um ambiente ideal, mas um ambiente que sustente o bebê e que permita que o seu "continuar a ser" não tenha grandes interrupções e por um tempo demasiadamente longo. Essas experiências de ser sustentado de forma repetida e constante darão, então, ensejo ao surgimento do verdadeiro self.

Winnicott acreditava que todo ser humano tende a um desenvolvimento e se for dado a ele um suprimento ambiental, esta tarefa se cumprirá satisfatoriamente. Claro está, que estão incluídas aí todas as características e singularidades do ser humano. Winnicott entendia que quando a "continuidade do ser" é ameaçada por intrusões ambientais repetidas, mesmo assim permanecerá no inconsciente a esperança de que caso seja dado um suprimento ambiental satisfatório poderá ser retomada a "continuidade do ser" com a emergência do verdadeiro self.

Então, toda vez que uma pessoa em sofrimento procura uma ajuda psicológica estará no fundo vivendo a esperança de poder encontrar uma relação confiável, onde a interrupção do "continuar a ser" possa ser retomada, agora, numa outra situação.

Cito Winnicott: "É preciso incluir na teoria do desenvolvimento do ser humano a idéia de que é normal e saudável que o indivíduo seja capaz de defender o eu contra falhas ambientais específicas através do congelamento da situação da falha. Ao mesmo tempo há a concepção inconsciente (que pode transformar-se numa experiência consciente) de que em algum momento futuro haverá oportunidade para uma nova experiência, na qual a situação da falha poderá ser descongelada e revivida com o indivíduo num estado de regressão dentro de um ambiente capaz de prover adaptação adequada"2. Cabe lembrar, portanto, que para o autor "estariam congeladas" no inconsciente do bebê estas situações das falhas e sendo dado um setting adequado e confiável o paciente reviverá estas situações de falhas "congeladas" tendo assim uma nova oportunidade de retomar a linha de "continuidade do ser".

Aqui entra o conceito de manejo para Winnicott. Enfatiza que a necessidade de manejo por parte do terapeuta ocorre principalmente naqueles casos de graves falhas ambientais antes de um estabelecimento consistente do ego. Nestes casos o comportamento do analista é mais importante do que as interpretações. Lembrarei mais uma vez que o autor só sugere a necessidade de manejo nos pacientes onde houve graves falhas ambientais. Nos casos em que o paciente atingiu a etapa do concernimento que corresponde à posição depressiva descrita por M. Klein não haverá necessidade de manejo por já haver um maior desenvolvimento do ego.

Vejamos como no meu entender está colocada esta questão. Winnicott acreditava que para que fosse retomada a linha de desenvolvimento era necessário que o paciente revivesse na situação de transferência toda a constelação de emoções, fantasias e sentimentos que pelas falhas ambientais não puderam ser elaborados pelo bebê. Como já mencionei, com a instalação do setting e com a confiança fornecida pelo mesmo, o paciente pode agora "regredir" até as situações iniciais das "intrusões" às situações congeladas.

Winnicott enfatiza no seu artigo de 1954 "Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto analítico" que para que o paciente possa viver momentos regressivos está implícito toda uma organização egóica que irá permitir a regressão quando for encontrado um ambiente facilitador e confiável - o setting terapêutico - permitindo então a retomada do "continuar a ser" o self. Destaca também que a saúde é a possibilidade de um desenvolvimento que caminha para a maturidade, isto é, um desenvolvimento emocional compatível com a idade cronológica.

Mas, no meu ponto de vista, o mais importante dessa comunicação é que nela Winnicott destaca a sua confiança e esperança de que quando é oferecido um ambiente adequado todas aquelas vivências que estavam congeladas podem agora retornar à vida numa outra direção. Esta é, pois, uma mensagem de esperança.

Como já mencionei, Winnicott considerava que existe uma concepção inconsciente (que poderá transformar-se numa esperança consciente) que em algum momento do futuro haverá a possibilidade do resgate do verdadeiro self.

O comportamento do analista, representado pelo que chamou de "contexto", que por ser suficientemente bom em matéria de adaptação às necessidades é, gradualmente, percebido pelo paciente como algo que suscita a esperança e o encoraja a correr os riscos implícitos em poder "começar a viver" com o seu self verdadeiro.

Pelo ambiente de confiança suscitado por aquele que atende o paciente "o falso self entrega-se ao analista"3. É um período muito doloroso, daí a importância da formação daqueles que deles cuidam. Muito é exigido dos terapeutas que devem estar atentos para procurar seus próprios erros sempre que surgem resistências mas, e é só pela utilização de seus erros que poderá fazer a parte mais importante do trabalho nessas fases. Aquela que torna o paciente capaz pela primeira vez de sentir raiva e ódio das falhas do ambiente em vez de cair em sentimentos de inutilidade e de vazio. Poderá agora experimentar plenamente o seu ódio e é neste momento que se liberta de sua dependência ao ambiente.

O manejo será pois, a capacidade do psicoterapeuta de criar condições para que surgindo momentos regressivos seja capaz de lidar com eles, dando um suprimento, uma sustentação, exatamente ali onde o ambiente inicial falhou. Agora, com essa nova oportunidade, poderá haver uma retomada do "continuar a ser", está aí a esperança de que esta nova oportunidade realize, ainda que tardiamente, uma adaptação adequada. Em muitos de seus trabalhos Winnicott refere-se ao holding como a maneira de "sustentar" e de cuidar do paciente, sempre no sentido de aproximar-se de suas necessidades.

Obviamente a gradação do manejo vai depender da patologia apresentada por cada paciente. Entrarão características pessoais de cada terapeuta, sua sensibilidade, sua capacidade de colocar-se no lugar do outro, de sonhar com o mesmo e, sobretudo, de seu auto-conhecimento - percebemos aqui a necessidade da análise do terapeuta pela intensidade dos sentimentos que são provocados pelo trabalho.

No artigo "O ódio na contratransferência" este autor ressalta a importância de estar atento para as manifestações contratransferências pela carga de ódio que pacientes com este perfil despertam naqueles que deles cuidam. Destaca a importância de termos consciência de nosso próprio ódio, pois constantemente nos serão atribuídos intensos sentimentos e às vezes pequenas falhas do terapeuta despertarão fortes sentimentos de ódio.

Mas antes de passar às ilustrações gostaria de lembrar, embora já esteja implícito no que disse até agora, que Winnicott, no que se refere ao manejo descreveu três tipos de pacientes, com diferentes exigências de abordagem. No 1º grupo estariam aqueles pacientes que operam como pessoas totais e cujas dificuldades estão no âmbito das relações interpessoais. Nestes casos não teríamos nenhuma necessidade de adaptações técnicas.

No 2º grupo estariam aqueles pacientes nos quais a totalidade da personalidade está apenas começando e devem ser ajudados na procura de uma maior integração. O ego aqui já estaria mais estruturado. Winnicott enfatiza que nesses casos a analise dar-se-ia no estagio da preocupação ou concernimento - a posição depressiva de M.Klein e na terceira categoria estariam aqueles casos que realmente necessitam de manejo e seriam os pacientes cuja análise irá lidar com os estágios iniciais do desenvolvimento. Aqui o manejo será mais importante que as interpretações.

Para ilustrar a idéia de manejo citarei um exemplo do próprio Winnicott4 e duas situações clínicas:

Trata-se de um menino que estava roubando na escola. O diretor, ao invés de puni-lo, reconheceu que ele estava doente e recomendou uma consulta psiquiátrica. Esse menino de nove anos de idade estava às voltas com uma privação que era parte de uma idade anterior, e o que necessitava era de um período em casa. Sua família tinha se reunido e isso lhe dava uma nova esperança. Verifiquei que o menino tinha estado com a compulsão de roubar, ouvindo uma voz que lhe ordenava que o fizesse, a voz de um feiticeiro. Em casa ele ficou doente, infantil, dependente, enurético e apático. Seus pais satisfizeram suas necessidades e lhe permitiram ficar doente.

Ao final foram recompensados por ele ter uma recuperação espontânea. Depois de um ano foi capaz de retornar ao internato, e a recuperação resultou duradoura.

Seria fácil ter desviado esse menino do caminho que o levou à recuperação. Naturalmente, ele estava inconsciente da solidão e vazio intoleráveis que eram subjacentes à sua doença, e que o fizeram adotar um feiticeiro no lugar de uma organização mais natural do superego; a solidão fazia parte do tempo da separação de sua família, quando tinha cinco anos de idade. Se tivesse sido espancado, ou se o diretor lhe tivesse dito que ele deveria se sentir malvado, ele teria se endurecido e organizado uma identificação mais completa com o feiticeiro; tornar-se-ia então incontrolável e arrogante e eventualmente uma pessoa anti-social".

Descrevo agora, sucintamente, uma vinheta.

Lembro-me de uma jovem senhora que atendi há muitos anos atrás. Trazia queixas e mais queixas de um sentimento profundo de vazio e de inutilidade. Nada valia à pena. Durante algum tempo centrei minhas interpretações em seu ódio apontando aspectos destrutivos de seu jeito de funcionar, assentia com a cabeça e permanecia em silêncio por muito tempo até que um dia disse-me com uma profunda dor: "Tudo o que você fala tem muito sentido, é muito claro mas eu estou do outro lado do muro, não posso fazer nada com o que você me diz". Fiquei profundamente tocado por sua fala e a partir daí percebi que teria que olha-la de um outro jeito. Comecei a ficar muito mais atento às nuances de sua comunicação, ao que eu sentia, e certamente minha maneira de estar com ela mudou. Modifiquei a maneira de focalizar o que me trazia e passei a conversar com ela sobre seu sofrimento. Foi um divisor de águas em sua análise. Viveu um período com muitos momentos regressivos, recordo-me especialmente de um momento onde até fazer as coisas mais simples de seu cotidiano se tornaram tarefas muito difíceis. Dava-me a impressão que estava autorizada a viver todo o seu desamparo. Depois desse período evoluiu para um estado de vitalização onde se sentia viva e onde pôde apropriar-se do seu existir.

Relato agora uma experiência clínica gentilmente cedida pela colega Roberta Wanderley Kehdy de um atendimento que teve início em um hospital escola por ocasião de sua especialização, onde todas as referências feitas ao manejo anteriormente - a importância do terapeuta atender às necessidades do paciente estão explicitadas.

Cito Roberta:

Este atendimento começou em 1997. F. veio para o atendimento ambulatorial encaminhado pelo pronto-socorro e a única anotação no encaminhamento era: "Urgente".

No primeiro atendimento, contou-me que vinha precisando de psicólogo há alguns meses. Freqüentava o PS do hospital desde outubro de 96, pois vinha se sentindo mal; às vezes sentia formigamento nos braços e nas pernas e em outros momentos ficava muito desanimado, sem conseguir fazer nada. Falou-me também que perdera o pai em dezembro de 96 e que achava que vinha piorando depois disso. Comentou que não se dava muito bem com ele, assim como tinha um péssimo relacionamento com a mãe e com os irmãos. É o segundo filho, tem uma irmã mais velha e 2 irmãos menores. Seguiu falando que foi até bom o pai morrer pois bebia muito e estava sempre brigando com sua mãe. Tendo crescido num ambiente de muitas brigas, onde nunca se sentiu acolhido, tanto que entre os 13 e 17 anos, passava o maior tempo possível fora de casa. Acrescentou que naquela época usou drogas - maconha, cocaína e chegou a experimentar o crack, mas não se deu bem. Ele falava lentamente, apresentando um razoável tempo de latência entre uma frase e outra, olhava pouco para mim, passando a maior parte do atendimento de cabeça baixa. Contou-me também que parou de estudar e de trabalhar.

Nas sessões seguintes continuou falando de como se sentia só e desanimado. Mencionou que, durante algum tempo, as drogas lhe proporcionavam certa estimulação, mas que das últimas vezes, ficava muito deprimido, enfatizando que "depressão por cocaína‚ é uma coisa horrorosa, é pior do que estou me sentindo agora" (sic).

Contou-me que tocava violão e que gostava de Blues e de jazz, mas não tinha com quem compartilhar suas preferências, pois os colegas preferiam rock ou pagode.

Foram atendimentos difíceis, ele cada vez falando menos, relatava que tem ficado mais tempo na cama, sem vontade de fazer nada, mal conseguindo tomar banho ou escovar os dentes.

Passava muito tempo em silêncio, olhando para o chão e quando seu olhar cruzava com o meu percebia um sofrimento intenso. Falava-me de algumas crises que tinha à noite, quando era invadido por uma angústia muito forte e que, nestes momentos, saia andando pelo bairro e, às vezes, vinha ao hospital sozinho.

Eu saía destes atendimentos com uma grande sensação de vazio e parecia-me que ele vivia num grande deserto de afetos, onde predominava o desamparo. Percebia-me tendo uma vontade crescente de cuidar dele. Chamava-me a atenção, contudo, sua capacidade de procurar ajuda por conta própria, mesmo quando tomado por tamanho sofrimento.

Decidi, então, encaminhá-lo para fazer uma avaliação com um psiquiatra e propus atendê-lo 2 vezes por semana. Com isso, houve uma mudança de horários e ele faltou 2 vezes. Mandei-lhe um telegrama e ele retornou ao atendimento.

Num dos atendimentos seguintes, antes de iniciar o tratamento com a psiquiatra, falou-me de uma médica que o vinha tratando no posto de saúde e por quem se apaixonou. Contou-me, então, que os amigos teriam feito uma brin-cadeira e estimularam-no a falar umas bobagens, gravaram uma fita que mos-traram para a médica que, depois disso, não quis mais atendê-lo. Mencionava, também, que não gostava de bajulação e perguntou-me se tinha microfones nas salas de atendimento do Hospital. Disse-lhe que não. Fiquei pensando se ser atendido 2 vezes por semana e ainda ser acompanhado por uma psiquiatra, não teria sido vivido por ele como bajulação, excesso de cuidado, coisa que até ali ele parecia não ter tido.

F. foi à psiquiatra, começou a tomar neurolépticos e teve uma resposta muito rápida. Na sessão seguinte, disse-me que aquelas coisas que me contou dos amigos não aconteceram, foram apenas idéias da sua cabeça.

A esta altura, percebia-me muito mobilizada por este paciente. Seguiu-se um período onde F. estava mais animado, falava de voltar a estudar e de procurar um emprego; recomeçou também a se encontrar com os amigos. Estávamos em dezembro e ele faltou a última sessão antes das férias. Fiquei um mês de férias e ao voltar, soube que também tinha faltado na última consulta com a psiquiatra antes do recesso de fim de ano e que ela havia deixado medicação para ele no PS, mas não foi buscá-la. Não apareceu na primeira consulta, mas assim que lhe mandei um telegrama, retornou ao atendimento.

Fui percebendo, então, que ele parecia esperar um movimento meu para vir ao atendimento. Esta dinâmica se manteve por muitos anos, toda vez que experimentávamos alguma mudança ou férias eu tinha que procurá-lo e penso que isto foi fundamental, pois parecia não acreditar que eu voltasse.

Na primeira sessão do ano chegou afirmando que estava bem, que se matriculou na escola e estava procurando emprego. Contou que estava indo jogar bola com alguns colegas mas sentia-se meio deslocado, pois eles eram mais velhos e gostavam de coisas diferentes dele. Relatava que ficou todo este tempo sem medicação e propus, então, que conversasse novamente com a psiquiatra para decidirem se era necessário o uso dos remédios. Neste momento apresentou uma piora: volta a se isolar e a ficar muito tempo deitado. Falava que agora tinha um diabinho que o perseguia e que não conseguia parar de pensar na médica do Posto de Saúde. Houve uma nova tentativa de uso de medicação, mas se mostrou desconfiado e reticente.

Seguiu-se um longo período onde o atendimento a F. foi muito difícil e instável; com muitas faltas. Em algumas sessões chegava, ficava em silêncio, não olhava para mim, às vezes ia até a janela. Na maioria das vezes, era eu que tentava alguma conversa, mas me respondia com monossílabos. Via-me só conseguindo fazer perguntas sobre seu estado geral; se vinha dormindo, saindo de casa, ficando sozinho, etc. Eu tinha muito sono, não sabia o que fazer. Passei, então, a levar lápis e papel, mas nada parecia interessá-lo, e depois de alguns minutos quer ir embora. Algumas vezes, pedia para que ficasse. Outras, não conseguia nem isto, pois era tomada pela mesma letargia que ele. Sentia-me impotente e não conseguia vislumbrar qualquer possibilidade de saída desta impotência. Nestas sessões que constituíam a maioria dos atendimentos, ele parecia não estar presente, como se eu não estivesse diante de um ser humano, mas sim de um zumbi. Qualquer alteração, atraso ou mudança, levava F. a faltar ou a ficar ainda mais retraído. Tais atitudes sugeriam uma tolerância mínima às mudanças, pois estas pareciam ser vividas como catastróficas, talvez reeditando vivências anteriores de desamparo.

A atmosfera emocional de outras sessões era diferente; ele estava ali e conseguia esboçar como se sentia. Lembro-me bem de uma sessão onde propus que desenhasse a rua onde morava. Ele aceitou e depois de ter desenhado, conversamos sobre os lugares que freqüentava. Fiquei perplexa com o seu confinamento: sua circulação se restringia à Pizzaria da esquina de sua rua e o mais longe que estava indo era até o Hospital, que fica a 4 quadras da sua casa. Neste período, via-me propondo atividades, estimulando qualquer conversa, em uma postura muito ativa e bem distante de qualquer abstinência.

Um dia, F. chegou cantando uma música e eu arrisquei acompanhá-lo, era Conversa de Botequim de Noel Rosa e perguntou-me se eu tinha a letra. Fiquei de procurar e a trouxe na sessão seguinte. Copiou-a em um papel e cantamos juntos. Encontramos então, uma nova forma de comunicação: a música. Foram vários meses onde nas sessões cantávamos juntos, em geral músicas da bossa-nova que falavam, principalmente, de solidão ou desencontros afetivos. Eu tentava engatar uma conversa sobre estes temas, mas não era muito produtivo. Naquele momento, só era possível cantarmos juntos. Contudo, para mim, isto já era uma grande conquista, tinha a impressão que pela primeira vez, eu passava a existir para ele. Esboçava-se um dueto o que implicava em uma mínima discriminação entre um eu e um outro. Certo dia, trouxe seu violão, o que achei um sinal de confiança. Em outra sessão, em que F. estava bem distante, com aquele olhar para o infinito, cantei-lhe um trecho de música: "tão longe de mim distante, onde andará, onde andará seu pensamento". Ele sai do alheamento, olha para mim e conseguimos conversar sobre sua vivência de ter a cabeça vazia, de não controlar seus pensamentos.

A partir de então, o atendimento a F. passou a ter nova apresentação. Acabaram as faltas, mostrava-se mais falante e começou a esboçar um desejo de tentar entender o que lhe aconteceu; perguntava-se se retomaria a vida que tinha antes. Demonstrava ter mais confiança em mim e na sua possibilidade de melhorar.

Dois anos se passaram e ao terminar a especialização neste hospital, propus continuar atendendo F. em meu consultório. Ele aceitou prontamente, indicando estar mais integrado e podendo enfrentar melhor uma grande mudança. Para chegar ao novo consultório, precisaria voltar a andar de ônibus, coisa que não fazia há 3 anos.

Depois desta mudança, aconteceu uma situação que considero muito importante: um dia, estava no elevador e F. chegou. Subimos nós dois juntos com a ascensorista do prédio. Cumprimentei-o, mas não alonguei a conversa. Durante a sessão, percebi-o calado e distante, mas não fiz ligação com o episódio do elevador.

Ele faltou várias sessões sem avisar, coisa que não acontecia há muito tempo. Neste período, hipotetizo que o encontro no elevador possa tê-lo mobilizado. Uso novamente a estratégia de enviar-lhe um telegrama e ele retornou.

Perguntei-lhe o que aconteceu e verbaliza que sentiu-se desprezado por mim. Conversamos sobre o ódio que experimentou e também sobre o alívio de encontrar-me viva e disposta a continuar atendendo-o. Esta experiência passou a ser uma referência para ele.

O atendimento a F. continua até hoje.

Penso que nos exemplos citados foi da maior importância a possibilidade de que fragilidades e desamparos fossem vividos e considerados. No primeiro caso pela família do menino e, no segundo e terceiro caso, pela presença dos terapeutas. Acredito que estes exemplos ilustram a idéia do manejo possibilitar a regressão e a retomada do desenvolvimento do - "continuar a ser" - Winnicotiano.

Encerro com a expectativa de que estas breves considerações tenham se aproximado do pensamento deste autor que tem influenciado de maneira marcante, muitos daqueles que cuidam do sofrimento humano. Retomo o belo verso do poeta que serviu de epígrafe a este trabalho:

Onde não há jardim, as flores nascem de um secreto investimento em formas improváveis.

 

Referências

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Drummond de Andrade, C. (2002). Campo de flores - Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.        [ Links ]

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Endereço para correspondência:
E-mail: betokehdy@uol.com.br

 

 

Sobre o autor:

* Roberto Kehdy é analista didata e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
1 Winnicott, D.H. - Preocupação materna primária (1956). In Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2000, página 403.
2 Winnicott, D.H. - Aspectos clínicos e metapsicológico da regressão no contexto analítico (1954). In Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2000, página 387.
3 Winnicott, D.H. - Formas clínicas da transferência. In Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2000, página 396.
4 Winnicott, D.H. - Psicanálise ou sentimento de culpa (1958). In O Ambiente e os Processos de Maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990, página 30.