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Psic: revista da Vetor Editora

versão impressa ISSN 1676-7314

Psic v.3 n.1 São Paulo jun. 2002

 

ARTIGOS

 

Um estudo sobre os cuidadores familiares de pacientes internados com doenças hematológicas

 

 

Maria Clara Nogueira de Sá

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O interesse em desenvolver este estudo surgiu através da minha experiência de estágio em psicologia hospitalar na Clínica de Hematologia do Hospital das Clínicas de São Paulo, onde tive a possibilidade de acompanhar o processo de internação dos pacientes desta unidade e do acompanhamento de seus cuidadores. Este estudo foi proposto com o objetivo principal de compreender as alterações ocorridas na vida dos cuidadores de pacientes internados com diagnóstico de doenças hematológicas, além de procurar compreender a visão que estes cuidadores têm do processo de internação de seus familiares. O referencial teórico utilizado para conduzir este estudo foi o psicanalítico. Pois busca o significado interno que um determinado fenômeno causa em cada indivíduo. O método utilizado foi o qualitativo, sendo realizada uma entrevista com os cuidadores familiares, com aplicação de um questionário e de um desenho-estória com tema. Na análise qualitativa dos dados obtidos, as respostas foram combinadas com a literatura levantada sobre o tema para permitirem uma compreensão maior das alterações enfrentadas pelos cuidadores, na situação estudada.

Palavras-chave: Cuidador, Família e doença, Câncer e transplante de medula óssea.


ABSTRACT

The interest in developing this study appeared through my experience of period of trainee in health psychology in the Clinic of Hematology of the Clinics Hospital of Sao Paulo, where I could have the possibility to follow the process of internment of the patients of this unit and the accompaniment of each caregiver. This study was considered with the main objective to understand the occured alterations in the life of the caregivers of patients interned with diagnosis of hematological disease, besides looking for to understand the vision that these caregivers have of the process of internment of their familiar ones. The theoretical referential used to lead this study was the psychoanalyses, therefore it searches the meaning internal that one determined phenomenon cause in each individual. The used method was the qualitative one, being carried through an interview with the familiar caregivers, with application of a questionnaire and a drawing-history with subject. In the qualitative analysis of the gotten data, the answers had been combined with the literature raised on the subject to allow a bigger understanding of the alterations faced for the caregivers, in the studied situation.

Keywords: Caregiver, Family and disease, Cancer and bone marrow transplantation.


 

 

Introdução

1. O adoecer e a iminência de morte na família

O Homem é O único ser que possui a capacidade de abstrair, de saber de sua finitude; mas, apesar de saber tal característica de todo ser vivo, os homens preferem não pensar, não levam muito em consideração tal realidade, afinal, é muito doloroso, e quem vive com medo, preso à iminência da morte, acaba não vivendo; porém ao deparar-se com a possibilidade de estar doente, ou com uma doença, não há mais como fugir, a iminência de morte faz-se presente: o adoecer coloca o Ser diante de sua mais dolorosa realidade: a possibilidade da morte.

O diagnóstico de uma doença orgânica, muitas vezes, é recebido pela pessoa e por sua família como uma agressão, pois, com o advento de uma doença, seja ela grave ou não, a pessoa tem seus planos e sua própria vida interrompida, perde seus sonhos e sua esperança depositada no futuro e vê-se totalmente diante de sua própria finitude, como descreve Boss: "toda doença é uma ameaça à vida e, com isso, é um aceno para a morte, ou até um primeiro ou último passo em direção à morte. Vida e morte são inseparavelmente unidas e pertencem uma à outra."

Normalmente, não é só o paciente quem adoece, mas todo o complexo familiar é abalado, vê-se a dissolução de um de seus mitos, como aponta Rolland, "de que doenças fatais só acontecem com os outros".

Como descreve Rolland (1998), "as famílias enfrentam a perda da vida 'normal', tal como era antes do diagnóstico, sendo obrigadas a fazerem o luto pela perda da condição de vida que tinham enquanto unidade familiar antes da doença, bem como o luto decorrente da perda dos sonhos e da esperança depositada no futuro"; ou seja, há uma desorganização total da unidade familiar. Os irmãos de pacientes sentem que perderam seus pais, ficam voltados inteiramente para o membro doente. A partir dessa desorganização familiar os irmãos sentem medo de adoecer também e culpados pela doença do outro, pois no momento que uma doença grave ocorre no âmbito familiar, há um resgate de algum evento passado sobre doenças, conflitos e perdas vividas por esta família e, essas vivências passadas, estão relacionadas com o enfrentamento dessa família a todo o processo de tratamento e do lidar com o estresse nele envolvido. É necessário manter orientações, esclarecimentos e permitir visitas desses familiares, informando sempre a verdade sobre o estado de saúde do paciente.

Segundo Futterman et alli (1996) durante a hospitalização, os cuidadores como os pais, no caso de crianças e adolescentes e o esposo(a) ou parceiro(a) são freqüentemente as principais fontes de suporte emocional para esses pacientes. Estes familiares precisam gastar uma parte de seus dias com os pacientes, deixando em segundo plano determina das necessidades. Há uma preocupação em torno das responsabilidades sobre a criação dos filhos que é delegado para outros e também sobre deixar temporariamente o trabalho. O esposo(a) tem de equilibrar a demanda de múltiplas regras; ele tem de negociar consigo mesmo o isolamento emocional, incertezas, medos e a possibilidade da morte do outro. Não sendo distante a possibilidade do cônjuge entrar em depressão, ansiedade e exaustão emocional no período que precede e sucede à hospitalização do paciente.

Segundo Ross (1991), existem sentimentos que são experimentados pelos familiares durante o processo de uma doença crônica. Inicialmente, quando é informado da doença, o paciente e seus familiares, especialmente seu cuidador, deparam-se com um choque inicial e sentimentos de negação. Existe uma recusa e uma incapacidade de aceitar suas condições atuais. Em um segundo momento, é mobilizado raiva, fúria havendo questionamentos sobre o porquê desse fato ter acontecido com ele e chega-se a invejar a saúde de outros.

Existe uma tentativa de barganhar ou adiar o inevitável. Os familiares buscam negociar com Deus, fazendo promessas relacionadas com a saúde e cura do paciente. Em um outro momento, os familiares se deprimem, havendo lugar para sentimentos como raiva, tristeza e perda. No final, aceita-se a condição do paciente e diminui-se a agitação prévia, aumentando a expectativa de cura e tranqüilizando a família.

Esses momentos estão descritos de uma forma didática, entretanto eles podem ocorrer sem seguir a ordem aqui estabelecida. Os familiares, em algumas situações, lutam contra a ameaça da perda do familiar e até contra perdas parciais (como seqüelas ou incapacidades) ou até, e sobretudo, contra a morte.

Nessas etapas é importante que a equipe repita para o cuidador informações sobre o estado do paciente e a evolução de sua doença, para que o cuidador possa passar tais informações aos demais membros da família, pois estes buscam, o tempo todo, compreender e encontrar explicações da causa deste acontecimento. Neste período pode haver acusação mútua entre os familiares, ou uma total união dos mesmos para garantirem mais forças no combate ao medo.

É importante que os familiares, em especial o cuidador, que exerce uma função bastante exaustiva, lamentem e falem de suas dores para haver um processo de aceitação da doença e da condição em que está o paciente.

2. Câncer e transplante de medula óssea

O diagnóstico de câncer ainda é considerado como uma sentença de morte tanto para o paciente como para sua família.

Do ponto de vista médico, o câncer é uma doença que tem diversas etiologias, porém o que sempre ocorre é uma mutação e conseqüente alteração de uma única célula, tomando-a capaz de se reproduzir indefinidamente, gerando massa tumoral em determinada região do corpo, ou em um órgão específico, cuja massa passa a se desenvolver, e de onde podem se desprender células, que irão migrar para outras regiões do corpo formando aquilo que recebe o nome de metástase (Manual do TMO do Paciente - HCFMUSP, 1998).

Além de atingir tecidos e parte óssea, as células neoplásicas, que são as cancerosas, podem atingir sistemas como o linfático e o circulatório. Quando as mutações atingem o sistema circulatório com o conseqüente aparecimento de células neoplásicas no sangue, fica caracterizado uma leucemia (nome específico para o câncer que atinge o sangue); é uma proliferação irregular ou acúmulo de células brancas (leucócitos) na medula óssea, com substituição dos elementos medulares normais.

O grau de malignidade de um câncer está relacionado à estrutura citológica do tecido atingido, à rapidez da capacidade de multiplicação celular, e à capacidade de infiltração dos tecidos vizinhos (Manual do TMO do Paciente - HC-FMUSP, 1998).

Além desses fatores, a destruição e degradação de funções vitais, o conhecimento dos aspectos dolorosos do câncer e, principalmente, a falta de informação levam o paciente e seus familiares a uma desestruturação da personalidade ao entrar em contato com um diagnóstico da moléstia.

Do ponto de vista psicológico destaca-se a necessidade da interação entre processos emocionais/psicológicos e processos corporais/biológicos. A partir de então, começa a emergir o reconhecimento de que características peculiares a cada paciente (sua história de vida, suas relações sociais, sua personalidade, seus processos mentais, seus mecanismos de defesa do ego, suas experiências anteriores) e processos biológicos precisam ser incluídos para se atingir uma conceitualização precisa de saúde e doença, e passa a ser relevante auxiliar esse paciente e sua família a lidar com as questões da internação hospitalar, dos tratamentos possíveis e da eminência da morte.

O Transplante de Medula Óssea (TMO) é um procedimento terapêutico que tem sido amplamente usado em uma variedade de doenças neoplásicas (hemopatias malignas e tumores sólidos), como também em doenças hematológicas hereditárias e adquiridas, com o objetivo de prolongar a remissão completa da doença ou curá-la. Este procedimento pode ser entendido como uma experiência única para o paciente e sua família e leva ao surgimento de graus variados de ansiedade, depressão e expectativas. (Futterman et alli, 1996).

O interesse pelas variáveis psicológicas associadas ao TMO vem aumentando significativamente nos últimos anos como tentativa de predizer alterações emocionais e fisiológicas do procedimento. As reações e alterações psicológicas no transplante sofre diretamente influência das condições do paciente que se submete, como personalidade, experiências anteriores e o enfrentamento das mesmas, qualidade das relações interpessoais com membros da equipe médica, cuidadores, familiares, amigos, bem como a reação dos familiares e da equipe médica em relação ao paciente e à sua doença.

A incerteza do sucesso do transplante, a admissão na unidade que requer isolamento, a realização de procedimentos médicos invasivos e o uso excessivo de medicação para o tratamento e controle de efeitos colaterais ameaçam a segurança do paciente. Esses aspectos, somados à complexidade do procedimento, toma comum o aparecimento de preocupações sobre a recaída da doença, dores e possibilidade de morte, fazendo com que o paciente e seu cuidador tomem-se ansiosos diante do menor evento; ou seja, ambos ficam em estado de alerta sobre qualquer ocorrência, às vezes interferindo na interpretação dos fatos, provocando mudanças de humor, alterações do sono e utilizando estratégias de enfrentamento mal adaptadas.

O TMO é um processo constituído de várias etapas. O tempo de duração de cada um pode ser previsto, mas tem uma relação entre outros fatores, com o estado clínico em que se encontra o paciente. Portanto, da mesma forma que o transplante ocorre por etapas, o paciente e o seu cuidador também passarão por diferentes estágios psicológicos que estão relacionados com cada fase do procedimento (Brown & Kelly, 1976).

Estágios psicológicos que paciente e familiares enfrentam no TMO

Segundo estudos de Brown & Kelly (1976), sobre os estágios que pacientes e familiares enfrentam, o primeiro deles é caracterizado pelas dificuldades emocionais que se intensificam logo na tomada de decisão sobre o transplante, onde muitos pacientes já passaram por tratamentos anteriores sem sucesso, apresentando em alguns casos seqüelas agudas ou crônicas. Há a necessidade de que a equipe médica forneça informações sobre todo o procedimento, incluindo riscos e benefícios causados pelo tratamento, possibilidade de fracasso e morte. Mesmo diante dos riscos, o transplante é visto como a esperança de cura para a doença, onde poucas vezes o paciente e sua família cogitam a possibilidade de não dar certo. Nesta fase, após a escolha pelo transplante, inicia-se o processo burocrático do tratamento, com a assinatura do termo de consentimento para a realização do transplante, busca do doador, solicitação de exames e outras medidas que aumentam cada vez mais o estresse da situação.

Novo estágio se inicia quando o paciente é submetido a alguns procedimentos invasivos como a realização de exames, colocação de catéter, tratamento da doença e coleta de células. Neste momento, o paciente e a família passam por uma reorganização psicossocial buscando cuidados práticos em relação ao início do transplante, identificação do sistema de suporte social, mudanças e restrições de papéis pessoais e familiares. As relações emocionais nesse estágio dependem, muitas vezes, da resolução ou não das medidas e decisões tomadas para o início do transplante, como por exemplo se a família e o paciente se organizaram psicossocialmente ou se deu certo a coleta de células.

O isolamento e o condicionamento são a próxima etapa a ser cumprida. Realizam se avaliações médicas multidisciplinares, cuidados clínicos para a manutenção do paciente; há a perda do controle e cuidado pessoal por parte do paciente, como higiene, horários e perda da privacidade, e em alguns casos surgem complicações clínicas em função da quimioterapia. O isolamento social e familiar é intensificado, o contato físico é ainda mais restrito, e aumenta cada vez mais a necessidade de se adaptar às regras da unidade de transplante. É comum que o paciente sinta-se deprimido, tenha sensação de desproteção em razão da imunossupressão, além do medo e a dúvida quanto à escolha pelo transplante se intensificarem.

A infusão medular ou transplante é o próximo passo, provocando em alguns pacientes alterações físicas que necessitam de controle clínico rigoroso. Para o paciente e sua família, esse momento é visto como a concretização do processo, trazendo sensação de alívio e aumento de suas esperanças. Ambos apresentam alegria ansiógena caracterizada por choro e inquietação.

O próximo estágio é o período de espera pela pega medular, com duração de dez a quinze dias aproximadamente. Há extenso uso de medicações e controle clínico do paciente. Iniciam-se alguns problemas clínicos que fazem com que o paciente permaneça sob cuidado constante e exposto a riscos devido à aplasia (pouca produção de sangue). É um momento crítico que aumenta o medo e a insegurança, provocando sentimentos de impotência diante da vida. O humor é instável, com demonstrações de irritabilidade e apatia. Para a manutenção da esperança há um apego maior à religião, cujo Deus detém todo o poder de salvação.

O último estágio se caracteriza pela possível pega da medula. Os cuidados clínicos são menos intensos, e os efeitos colaterais diminuem; há recuperação física e possibilidade de alta da enfermaria. Discutem-se questões como a necessidade de acompanhamento ambulatorial e readaptação à sua vida pós transplante. Existe ambigüidade de sentimentos: pois ao mesmo tempo em que o período de hospitalização e isola mento terminaram dando-lhes a sensação de vitória, existe ainda, para o paciente, a preocupação com o desligamento da unidade e, para o cuidador, o trabalho de cuidar sozinho deste enfermo, além do medo da possibilidade de rejeição medular ou recaída da doença, mantendo sempre um certo grau de insegurança. (Brown & Kelly, 1976).

3. Hospitalização e o cuidador familiar

A situação de hospitalização provoca profundas alterações na vida familiar, tanto no sentido de afastamento do doente do convívio no lar, dos filhos, amigos, do lazer, da escola e das atividades cotidianas, como no deslocar os familiares para o hospital. Ocorrem modificações na rotina, com a introdução de horários e esquemas novos, quase sempre muito diferentes dos habituais. A internação pode conduzir ao isolamento, quebra de relações sociais, familiares e de trabalho (Kovács, 1992).

Todos esses aspectos podem ter forte influência na forma como a família vai lidar com as demandas exigi das pela doença, mas os padrões de cada família, sua organização, distribuição dos papéis, funções e formas de enfrentamento vão ter forte influência no manejo da situação.

Segundo Kovács (1992), nessa turbulência de acontecimentos, surge uma figura que deve ser foco de atenção: o cuidador, o membro da família que fica responsável pelos cuidados, que acompanha o paciente, que está presente na internação e garante a adesão do paciente ao tratamento. Estabelece-se urna relação íntima, que vai depender das características pessoais dos membros envolvidos, podendo despertar os mais diversos sentimentos, como por exemplo, harmonia, compaixão e respeito. Pode também ser carregada de sentimentos ambivalentes, relações de poder e de submissão, de manipulação, de sadismo e de uma gama de outras possibilidades. Essas formas de interação são influenciadas pelas relações familiares anteriores: entretanto, o processo de doença pode inverter algumas delas. Assim, por exemplo, se é o pai que está doente e se antes era ele uma pessoa tirânica, poderosa e os filhos submissos, no processo de doença ele pode agora estar sob os seus cuidados, invertendo-se a relação. Esses tipos de alterações podem causar muito sofrimento até poderem ser assimilados.

A tarefa de acompanhar um paciente em tratamento de câncer é muito difícil, estressante e desafiadora para quem mantém vínculos afetivos estreitos com o enfermo. Essa pessoa, que na condição de familiar e cuidador do paciente, já sofrera o impacto do diagnóstico e da decisão de fazer o transplante de medula óssea, agora se vê diante de uma outra responsabilidade, que é auxiliar totalmente o paciente no decorrer se seu tratamento, que muitas vezes dura anos.

O cuidador assume um papel que lhe é imposto pela circunstância e por um desejo exorbitante de ajudar e estar ao lado da pessoa amada. Apesar de, no início, ele achar que esta missão naturalmente seja sua, o que acontece é que este cuidador familiar ainda não tem a noção do trabalho que lhe espera e do quanto lhe será exigido.

Os acompanhantes, tomados muitas vezes pela ansiedade e pela incapacidade de absorver todas as informações técnicas que lhe são passadas pela equipe médica, freqüentemente acabam desempenhando este papel de forma alucinada e por vezes esquecem que existe urna família a qual ele pertence e que pede por sua presença.

Segundo Mendes (1995), na literatura existente sobre cuidadores de pacientes dependentes comentada por Barer e Johnson (1990), é consenso apenas a característica estressante da atividade de cuidar. Os critérios utilizados para identificar esses cuidadores, no entanto, não são claros, existindo múltiplas definições. Algumas delas restringem os cuidadores à esfera das relações familiares, ou seja, o cuidador é definido, pelos vínculos parentais existentes com a pessoa cuidada. Outras definições são baseadas no tipo de cuidados prestados ao paciente dependente, podendo ser caracterizado como cuidador desde aquele que dá apenas uma retaguarda por cuidados até aquele que oferece dedicação exclusiva por longos períodos.

Segundo estes autores, a definição dada por Stone, Cafferata & Sang (1987) é a mais explícita, pois distingue o cuidador principal e o secundário segundo o grau de envolvimento experimentado por cada um nos cuidados prestados ao paciente. O cuidador principal é aquele que tem a total ou a maior responsabilidade pelos cuidados prestados ao idoso dependente, no domícilio.

Os cuidadores secundários seriam os familiares, voluntários e profissionais, que prestam atividades complementares. Usa-se a denominação de cuidador formal (principal ou secundário) o profissional contratado, (atendente de enfermagem, acompanhante, empregada doméstica, etc.) e de cuidador informal, usualmente, os familiares, amigos e voluntários da comunidade.

De fato, essas definições não dão conta do processo de cuidar de um paciente dependente, reduzindo o foco da análise à atividade em si.

Uma doença grave não atinge só a pessoa doente, mas toda a família que passa a ser a unidade de cuidados (Parkes, 1986).

Portanto, assim como os pacientes, os cuidadores passam também por fases neste processo de hospitalização (Torrano-Masetti, Oliveira, Santos, 2000):

1. Fase de adaptação - os acompanhantes verbalizam o fato de não terem conseguido "guardar" (reter na memória) todas as informações que eram passadas pela equipe de profissionais e se justificam - ora se responsabilizando, ora responsabilizando a equipe.

2. Repercussões do diagnóstico - inc1uemse nesta categoria, as reações, sentimentos, atitudes e condutas suscitadas no acompanhante/cuidador e demais familiares, após a comunicação do diagnóstico.

a) Impacto do diagnóstico: esse era sempre apontado como o pior momento: a descoberta da doença colocava-se como uma linha divisória em suas vidas. É muito mais freqüente aqui o surgimento da metáfora de uma bomba, que veio do nada, destruiu tudo O que havia sido construído e o que se planejava construir.

b) Aceitação da doença: é um processo gradual, que em geral evolui desde a negação da condição patológica até sua assimilação e resignação. A comunicação do diagnóstico era acompanhada sempre de sentimentos de revolta ou indignação.

Cada membro da família pode reagir de maneiras muito diversas e, segundo Frude (1991), isso pode estar relacionado com a forma como significam e interpretam a doença e suas conseqüências. De acordo com Kovács (1992), cada membro da família pode passar por essas fases acima citadas, que nem sempre são coincidentes em tempo e intensidade, provocando desequilíbrio, mal-estar e necessidade de novas formas de relacionamento entre os seus membros.

Considerando-se a família como um organismo, o surgimento de uma doença tende a provocar uma reorganização na sua estrutura e distribuição de papéis. Dependendo do lugar que o paciente ocupa na família; se é, por exemplo, o chefe que garante o sustento dos outros ou se é aquele que provê a casa, garantindo os cuidados, a não-possibilidade de realização dessas funções vai demandar que os outros membros tenham que cuidar dessa parte e se reorganizarem para que estas funções sejam mantidas (Kovács, 1992).

 

Objetivo

O presente estudo tem como objetivo fazer uma análise qualitativa das mudanças ocorridas na vida dos cuidadores familiares de pacientes com leucemia, internados na Clínica de Hematologia do Hospital de Clínicas da USP.

Visamos conhecer um pouco os conteúdos emocionais, ansiedades e fantasias expressos através do instrumento projetivo de Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema, sobretudo, de buscar compreender melhor as conseqüências dos tratamentos dados a esses pacientes, nas famílias dos mesmos.

O estudo não pretende apresentar generalizações, mas promover discussões sobre o tema, buscando assim uma compreensão do fenômeno em algumas dessas pessoas.

 

Método

1. Método clínico

Este trabalho configura um estudo clínico qualitativo, de natureza longitudinal, desenvolvido a partir da análise de cinco cuidadores familiares de pacientes com diagnóstico de leucemia, internados na Clínica Hematológica do Hospital das Clínicas da USP, devido ao meu interesse em compreender de forma mais clara as mudanças ocorridas nas vidas desses familiares depois que passam a se tornar cuidadores de pacientes.

Estudos que utilizam desse método não procuram a regularidade como objetivo básico; ao contrário, propõem-se a observar os fenômenos quando e onde surgem, independentemente de sua freqüência num conjunto de sujeitos (Anderson & Anderson, 1967, apud Trinca, 1997).

Segundo Trinca (1997), deste enfoque procede a idéia de que as verdadeiras variáveis de personalidade são aquelas que se revelam tal como ocorrem no indivíduo, e que os diferentes esquemas apresentados no processo de interação são essenciais para a obtenção e a ordenação dos dados da série de processos organizados, que denominamos dinâmica da personalidade. A utilização do método clínico parte da suposição básica de que as respostas do sujeito não são produzidas por mero acaso mas, pelo contrário, são determinadas pelas condições psicológicas da pessoa. Por não fornecerem ao indivíduo estímulo externo ou direção para agir, há uma grande liberdade para este manifestar-se favorecendo o surgimento de contextos psíquicos inconscientes que refletirão a organização fundamental de sua personalidade.

De acordo com Dorin (1978, apud Flores 1984), o método clínico não se presta para demonstrar a existência de leis, mas sim para fornecer indícios, provocar hipóteses e enriquecer as discussões sobre o assunto.

2. Amostra

Os cinco sujeitos selecionados para esse estudo são cuidadores familiares de pacientes internados na Clínica de Hematologia do Hospital das Clínicas da USP, que no momento da aplicação do instrumento estavam presentes na enfermaria e dispostos a colaborar.

3. Instrumento

a) Entrevista

Primeiramente foi feita uma entrevista preliminar com o cuidador para garantir a compreensão do mesmo sobre este estudo e, em seguida, a aplicação de um questionário que visava levantar dados sobre o grau de parentesco desse familiar em relação ao paciente, as mudanças ocorridas em sua vida após o início de seu trabalho como cuidador e de que forma esta função lhe foi atribuída. (ver Anexos 1 e 2)

b) Procedimento de desenhos-estórias com tema

Em um segundo momento, utilizamos o Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema, pois sua fundamentação é baseada em princípios de associação livre aliados a princípios de organização do material, a partir de dados incompletos, ou pouco estruturados, em que o indivíduo tenha liberdade de composição, além desta técnica projetiva destinar-se a investigação de aspectos da dinâmica da personalidade, especialmente quando esta apresenta comprometimento emocional. Proporcionando ainda, meios de incentivar a expressão e a comunicação de conflitos e perturbações inconscientes da personalidade, ajudando na elucidação desses dinamismos (Trinca, 1997).

Segundo Aiello-Vaisberg (1987), o Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema foi desenvolvido a partir do Procedimento de Desenhos-Estória (Trinca, 1976), tendo em vista a pesquisa de representações sociais. Sua utilização em diversos trabalhos proporcionou urna riqueza de material passível de ser interpretado psicanaliticamente, elucidando os pressupostos lógico-emocionais estruturantes das representações, vale dizer, seu inconsciente relativo. O Desenho-Estória pode ser empregado para o conhecimento dos focos conflitivos que se expressam corno desajustamentos emocionais, pois tanto a produção gráfica como a verbal, devem ser consideradas como mensagens com as quais o sujeito responde às solicitações do pesquisador.

Este procedimento tem se revelado um facilitador da expressão de aspectos inconscientes, que estão relacionados com foco de angústias presentes em determinado momento ou em determinada situação da vida da pessoa e, de acordo com Tardivo (1987), o Procedimento de Desenhos-Estórias é um instrumento aberto, cujas possibilidades de utilização e avaliação está se adaptando à medida que avança o conhecimento (Trinca, 1987).

4. Procedimentos

Os cinco sujeitos selecionados para este estudo são cuidadores familiares de pacientes internados na Clínica de Hematologia do Hospital das Clínicas da USP, que no momento da solicitação para participarem do estudo, estavam presentes na enfermaria e dispostos a colaborar com o mesmo.

Os cuidadores foram submetidos individualmente a uma entrevista que contou com dois momentos distintos de coleta de dados, primeiramente a responder o questionário e em seguida a fazer um desenho-estória com terna. Todo o procedimento foi realizado em salas disponíveis ou na sacada da própria Enfermaria de Hematologia.

O tema escolhido para o desenho foi o de urna pessoa internada em um hospital, para que pudéssemos elucidar a expressão subjetiva dos sentimentos, ansiedades e expectativas desses familiares, no momento atual de internação dos pacientes com doenças hematológicas.

 

Resultados

Considerando os cinco desenhos temáticos como produções de um grupo de cuidadores familiares de pacientes internados, percebem-se manifestações de conteúdos de expressividade gráfica bastante semelhantes. Essas manifestações nos leva a inferir que a dificuldade em lidar e cuidar de um ente familiar enfermo é peculiar em todos os desenhos e está ancorada na esfera psicoafetiva desses sujeitos, pois a tristeza, a impotência, assim como a expressividade verbal contada nas histórias fazem emergir, nessa esfera da afetividade, um elemento significativo, as expectativas diante do desconhecido e a eminência da morte, objetivado e motivado por diferentes causas individuais, que vão desde sentimentos como medo, angústia e responsabilidade do cuidar, até a problemática de conflitos nas mudanças ocorridas na vida e na estruturação familiar.

 

 

Nesta produção o que fica, principalmente demonstrado no rosto da pessoa internada, é a ausência de olhos, nariz e boca, que pode indicar ausência de relação com o meio, dificuldade de contato, fuga às respostas e aos estímulos exteriores e imaturidade para se comunicar com outros na situação de crise.

 

 

Nesta produção feita em eixo horizontal do papel, observa-se um comportamento controlado, desejando satisfazer suas necessidades e impulsos. O desenho da figura humana do acompanhante do quarto é graficamente mais detalhado do que o próprio familiar internado, estabelecendo uma dificuldade em lidar com a situação/problema atual.

 

 

Apesar de centralizado, esta produção não possui detalhe algum, tampouco a presença de objetos que caracterizam um paciente internado em um hospital, o que pode demonstrar um sentimento de vazio e energia esgotada, característica de indivíduos que empregam defesas pelo retraimento e, as vezes, depressão em situações de crise, evitando entrar em contato com os sentimentos que incomodam.

 

 

Nesta produção, a leve pressão ao desenhar oferece indicação sobre o baixo nível de energia do sujeito, o medo e a impotência diante da situação que o envolve. Mostra um fraquejador do ego, através de uma figura humana pouco definida, com ausência de um braço e de pescoço.

 

 

Esta produção, feita na linha superior acima do ponto médio da página, pode indicar um desajuste do indivíduo com relação às suas dificuldades, pois acha que está lutando muito e talvez sua meta seja inatingível, tendendo a procurar satisfação na fantasia.

 

Discussão

Considerando que se buscou fazer uma análise qualitativa das mudanças ocorridas na vida dos cuidadores familiares de pacientes internados com doenças hematológicas, os resultados são apresentados de forma que a síntese referente ao material coletado na entrevista (questionário e teste projetivo) é acompanhada de comentários que refletem uma análise crítica do conteúdo expresso pelos sujeitos, além dos referenciais teóricos encontrados na literatura estudada.

Fazendo uma reflexão mais abrangente sobre o conteúdo das entrevistas dos sujeitos, de acordo com Ross (1991), existem sentimentos que são experimentados pelos familiares durante o processo de uma doença crônica; quando é informado da doença, o paciente e seu cuidador, deparam-se com um choque inicial e sentimentos de negação, como os relatos de algumas entrevistas podem exemplificar: "No começo eu achava que era só uma anemia que a minha esposa tinha, eu nem podia pensar que era uma coisa mais grave que isso ... eu falava que tudo ia passar depois dos exames... ia tomar um remédio e tudo bem. " ; " No começo eu não sabia o que fazer, na verdade eu nem entendia direito o que estava acontecendo... nossa vida se transformou da noite para o dia, nos pegou desprevenidos". A seguir um relato da estória contada por uma mãe cuidadora de filha (17 anos) portadora de leucemia há quatro anos, a partir do procedimento do desenho solicitado: "Alguns anos atrás, eu conheci uma pessoa em meu ventre. Cuidei dela até os doze anos de idade como se fosse uma princesa cheia de saúde. Algum tempo depois eu descobri que ela tinha uma doença, aí eu passei a cuidar dela com mais carinho e amor ainda... e cuido até hoje. Eu cuido hoje e cuidarei sempre porque al?ora Deus mostrou pra mim e pra ela um meio de ser curada: o transplante. E daí por diante, com a graça de Deus e de Nossa Senhora ela vai poder ter a sua vida normal de volta. Para ela poder curtir as coisas boas que Deus deixou para nós. Assina sua mãe que vai lhe amar hoje, amanhã e sempre". Título da Estória: A Bela Adormecida.

Existe uma recusa e uma incapacidade de aceitar suas condições atuais. Em um segundo momento, é mobilizado raiva, fúria, havendo questionamentos sobre o porquê desse fato ter acontecido com ele e chega-se a invejar a saúde de outros.

Existe uma tentativa de barganhar ou adiar O inevitável. Segundo Ross (1991), os familiares buscam negociar com Deus, fazendo promessas relacionadas com a saúde e cura do paciente. Em um outro momento, os familiares se deprimem, havendo lugar para sentimentos como raiva, tristeza e perda: "Eu imploro a Deus pra que tire o meu irmão dessa ... ele mora comigo há dez anos. Nossos pais estão no Nordeste, e não sei o que seria se alguma coisa de ruim acontecesse. Mas Deus está do nosso lado e não vai nos abandonar. Eu prometi que, quando tudo isso acabasse, nós todos da faml1ia vamos nos encontrar, com ou sem dinheiro vamos dar um jeito". No final, aceita-se a condição do paciente e diminui-se a agitação prévia, aumentando a expectativa de cura e tranqüilizando a família, como descreve a filha da paciente com diagnóstico de anemia plástica severa: "Nós temos que ter fé em Deus e nos médicos que estão aqui com todo carinho para cuidar da minha mãe, afinal nós estamos em um dos melhores hospitais daqui, temos que acreditar que as coisas vão melhorar".

Pudemos perceber que o cotidiano do cuidador é radicalmente modificado pela doença, como narra uma mãe que tem sua filha internada na unidade: "Eu agora vivo em função de minha filha, não consigo deixá-la nem um minuto sequer. Nem mesmo ela me deixa sair deste quarto. Nós sempre fomos amigas, mas agora é diferente... somos unidas". Velhas relações pessoais estão sendo redefinidas. Novas atividades e relações pessoais e sociais estão sendo introduzidas em seu cotidiano. "Agora eu passo a maior parte do meu tempo lendo e conversando com Deus". De certa forma a doença põe em suspensão a vida cotidiana da família. Uma nova vida cotidiana se instala aos poucos. "Nossa rotina é acordar, ir para o trabalho, passar no hospital para ver o meu irmão, voltar para casa e rezar antes de deitar".

Esta suspensão da vida cotidiana não é fuga; é um circuito, porque se sai dela e se retoma a ela de forma modificada. À medida que essas suspensões tornam-se freqüentes, a reapropriação do ser genérico torna-se mais profunda e a percepção do cotidiano fica mais enriquecida (Falcão, 1987).

Como descreve Rolland (1998) apud Torrano-Massetti (2000), as famílias enfrentam a perda da vida "normal", tal como era antes do diagnóstico, sendo obrigadas a fazerem o luto pela perda da condição de vida que tinham enquanto unidade familiar antes da doença, assim como descorre a mãe de uma paciente jovem: "Ela sempre foi a nossa princesinha. Nossa vida era tão boa e feliz... e agora vem essa bomba que parece que destrói tudo e que não explica o porquê ... ela sempre foi fraquinha, tinha muita anemia quando era pequena... mas nós estamos todos juntos, meu marido, ela e o meu filho mais novo que com a graça de Deus foi cem por cento compatível para doar a medula".

São momentos densos demais para serem compreendidos e internalizados de imediato. Sem a tomada de consciência das relações pessoais que cada nova atividade desenvolve, esta mesma atividade permanece como algo exterior.

Pode-se notar que o Procedimento de Desenho-Estória pôde ser um instrumento facilitador que levou o cuidador a refletir sobre a sua nova vida cotidiana, lançando um novo olhar sobre o que faz e sobre as dimensões do que faz, como citou a filha de uma paciente com anemia: "A minha vida nunca foi muito legal, eu nunca fiz muitas coisas por mim, mas agora eu tenho uma função importante... eu cuido dela com carinho e ela sente isso da minha parte, mesmo que nós não conversamos sobre isso. Eu sei que a minha mãe depende de mim neste momento e eu estarei sempre aqui". O momento da pesquisa fornece a distância necessária para que o cuidador passe a repensar as mudanças que ocorreram em si mesmo no cumprimento da responsabilidade que exerce na situação em que se encontra: "Eu desenhei um palhaço sorrindo, que diverte as pessoas, que vem para ajudar e que faz sorrir, mas com uma lágrima no rosto caindo ... o título da minha estória é o contrário do que eu estou sentindo neste momento O Palhaço Feliz".

Não é apenas o fazer que define a identidade do cuidador, mas a consciência da atividade de cuidar e o significado desta em sua vida. Refletindo sobre o que faz e as relações que esta atividade cria no seu cotidiano, que a pessoa passa a identificar-se ou não com este novo papel. Este é um processo que não acontece de repente: a consciência só surge com o passar tempo (Mendes, 1995).

Segundo a mesma autora, ao assumir a tarefa de cuidar de uma pessoa de sua relação familiar, o cuidador o faz sem questionamentos. Tal atividade é colocada como uma obrigação, um dever, são os sentimentos e a responsabilidade moral do cuidador com relação ao outro que o impelem a isso; destacam-se aqui dois relatos das entrevistas: "Eu sou a mãe. Quem mais haveria de cuidar da minha filha?" ; "Meu pai trabalha, meu irmão também, e minha irmã é uma adolescente que estuda e não tem condições para isso. Se minha mãe não tivesse mais filhos, tudo bem de pedir ajuda para o restante da família, como uma tia ou uma irmã de minha mãe ". mas eu sou afilha e posso fazer isso ". eu devo ajudar quando eu posso". Os sentimentos são sempre mediados pelos valores morais. O bem e O mau imperam no próprio ato de sentir. Assumir que gosta ou não da atividade de cuidar é um assumir com implicações morais, ser bom ou não.

O cuidador pensa muito ao responder as perguntas sobre o que sente desempenhando tais cuidados; demonstra uma atitude de surpresa. No início, não consegue exprimir O que sente e manifesta quase sempre apenas medo: "Foi difícil suportar tudo isso de uma vez... eu tive medo do que ia acontecer com a nossa família". Parece que no início, raiva, nojo, irritação, culpa, revolta, perda de liberdade ou injustiça são sentimentos que não podem ser experimentados. É como se existisse um veto que impedisse que a atividade de cuidar fosse analisada em sua concretude. Os sentimentos de repúdio são contrapostos com a norma moral do dever de cuidar.

Existe uma dinâmica no processo de cuidar. É uma relação tencionada em que os sujeitos envolvidos (cuidador e paciente) constroem seus espaços respectivos, dentro dos limites dessa nova inter-relação.

Segundo Mendes (1995), a dinâmica das relações familiares também possui relações de micropoderes. Ao tomar-se O cuidador principal, as relações de poder são alteradas na esfera familiar. Saber cuidar também reveste-se de um poder, cuja legitimidade vai sendo construída na relação familiar onde o cuidar é reconhecido como uma atividade imprescindível e específica, assim como relatou o esposo de uma paciente internada: "Eu não sei o que seria da saúde da minha mulher se a nossa filha não estivesse aqui com ela. Ela é o meu braço direito, o esquerdo e todo o corpo ".Coitada, ela deixou de viver a vida dela para estar aqui ao lado da mãe ". Ainda bem que eu tenho ela aqui pra segurar esta barra".

Com o passar do tempo, o cuidador familiar tem necessidade de falar de sua vida, de sua relação com O paciente, de sua insegurança, de sua tensão, da família diante do paciente e dos cuidados, dos conflitos com o paciente e demais familiares, de sua responsabilidade e de sua opção de cuidar do outro, como relata a esposa de um paciente com leucemia e já transplantado: "A minha vida agora é cuidar de meu marido. Eu venho todos os dias, mas quem está sofrendo mesmo com afalta dele é minha filhinha de três anos ". Ela só pergunta 'cadê o papai?' ... eu não conto com a ajuda de muita gente não, graças a Deus eu tenho saúde pra tocar sozinha essa tarefa".

O dia-a-dia do cuidador é construído em virtude das necessidades do outro. Lidar com este novo cotidiano é muito difícil. O sujeito que se transforma em cuidador foi surpreendido pela doença, e as informações dadas sobre O transplante de medula óssea são insuficientes para responder às necessidades que vão surgindo na prática diária.

Segundo Kovács (1992), a internação de um membro da família provoca profundas alterações na vida familiar, tanto no sentido de afastamento do doente do convívio no lar, dos filhos, dos amigos, do lazer, da escola e das atividades cotidianas, como no deslocar os familiares para o hospital, como relata o irmão de um paciente transplantado: "Eu acho que meu irmão se sente muito só por aqui, longe de todo mundo que ele gosta, só ouvindo e vendo desgraça todo dia, gente chorando, sofrendo e até morrendo ... essa semana ele ainda está pior ainda por causa das feridas na boca ... nem falar ele consegue".

Todos esses aspectos podem ter forte influência na forma como a família vai lidar com as demandas exigidas pela doença; mas os padrões de cada família, sua organização, distribuição dos papéis, funções e formas de enfrentamento terão forte influência no manejo da situação, assim como narra a esposa de um paciente; "Se cada lágrima que caísse do meu rosto fosse salvar o meu marido, eu passava todos os dias da minha vida chorando ... mas as coisas não são assim; eu preciso trazer força e alegria pra ele, e não ficar aqui triste e pensando no pior".

Ao ser questionado sobre a sua saúde, o seu lazer, a sua vida social, o cuidador pára e pensa em si, descobrindo que não tem muito que falar, como relata uma mãe: "Faz assim uns oito meses que nós não podemos ir ao shopping, ao parque ... a gente fica com medo da nossa filha pegar alguma coisa pelo ar porque ela está sempre fraca e sem defesa no corpo, então não podemos abusar muito". A sua nova vida é realizada através desta nova relação. O fato de estar cuidando do outro significa aparentemente que sua saúde esta boa e que está em condições de se dedicar exclusivamente a essa nova atividade; "A minhafaml1ia não tinha dinheiro para eu estudar em um curso caro, mas este ano deu para eu começar a fazer o curso de auxiliar de enfermagem que eu queria... só que a minha mãe ficou doente, e eu parei tudo pra cuidar dela ... eu não deixaria ela só quando mais precisa de mim".

Assumindo a condição de cuidador, as pessoas se redefinem e criam novas relações no seu fazer. Uma nova imagem de si é gestada para si e para o outro. Esta percepção de si e do outro é um processo dialético que leva o cuidador a transformar-se e construir um novo eu.

 

Conclusão

Foi possível, pelos instrumentos utilizados, fazer uma análise das mudanças ocorridas e das fases do processo de hospitalização na vida de cuidadores familiares de pacientes internados com diagnóstico de doenças hematológicas.

Verificou-se que quando uma doença grave atinge um pessoa, toda a família é submetida aos temores desse diagnóstico e futuro tratamento. São tomados por dúvidas, medos e expectativas quanto à recuperação e cura da enfermidade. Dessa forma, tanto os pacientes como seus cuidadores familiares passam por diferentes estágios psicológicos durante o processo de hospitalização.

Apesar de cada cuidador passar pelas fases de impacto do diagnóstico, negação da condição patológica, ansiedade e medo diante da possibilidade de morte, aceitação e assimilação das informações clínicas da doença e tratamento, tentativas de adaptação às novas condições de vida e expectativas quanto ao tratamento e cura, elas nem sempre são coincidentes em tempo e intensidade, mas o que é confirmado nas entrevistas e na literatura pesquisada é que o surgimento da doença grave provoca um desequilíbrio geral em um estado pré-existente de estruturação familiar, isto é, um mal-estar e um medo generalizado impactuam esta família que se depara com a possibilidade de finitude de um de seus membros.

A atividade de cuidar de um membro da família doente, exige que o cuidador se coloque objetiva e subjetivamente no seu novo cotidiano de forma inteira. Este cotidiano o absorve de forma total, não existindo muito espaço para outras atividades, como o trabalho que teve de ser abandonado, o lazer que teve de ser adiado, o restante da família que teve que compreender a falta de um de seus membros no seu lar, e a escola que teve de ser adiada, com exceção das conversas com Deus, cuja companhia é indispensável para a sobrevivência com a enfermidade e a possibilidade da morte e as conversas com os acompanhantes de outros pacientes da enfermaria que passam pelo mesmo momento de vida e podem compreender e acolher as lamentações e medos de cada cuidador.

A construção de sua nova identidade como cuidador ocorre no próprio processo de cuidar; é no fazer que a dimensão de cuidar vai sendo internalizada e concretizada. É pensando no que faz e nas relações que esta atividade desencadeia no seu cotidiano que ele passa a construir sua identidade de cuidador, exigindo deste sujeito, criatividade, energia, modos de superação das aflições e medos e, acima de tudo, afeto. Afeto este que é intensamente ampliado na relação cuidador-paciente, pois transforma essa união familiar já existente numa relação imposta e ao mesmo tempo natural, de dependência e aceitação entre ambos.

Cuidar de um familiar dependente com diagnóstico de doença grave hematológica é uma atividade nova para a qual os cuidadores ainda não estão preparados e não sabem o que os aguarda, mas que vão descobrir e construir na situação de necessidade. As alterações bruscas e muitas vezes radicais que se operam na dinâmica familiar desarticulam e desestabilizam os personagens após o impacto do diagnóstico.

O processo conflitante exige tempo para desenhar um novo cotidiano, com novas articulações, para esta família, e principalmente para este cuidador que ama, dedica-se e cuida.

 

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