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Psic: revista da Vetor Editora

versão impressa ISSN 1676-7314

Psic v.3 n.2 São Paulo dez. 2002

 

ARTIGOS

 

O morto e o vivo

 

 

Ana Maria T. Trinca *

PUC-SP e USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A permanência e influência da pessoa morta na vida mental do indivíduo é discutida a partir de referenciais psicanalíticos. Fatos reais, superpondo-se às peculiaridades do funcionamento psíquico da criança em determinado estágio de seu desenvolvimento psicossexual, determinam a incrementação de fantasias e interpretação pessoal dos fatos. A questão da morte é focalizada a partir do desenvolvimento das fantasias de uma criança de cinco anos de idade, que perde seu pai por assassinato e tem que se submeter a uma cirurgia de fimose. É descrito o modo pelo qual a criança mantém inconscientemente o pai morto em sua mente, que assim se torna vivo e perseguidor. Novas experiências de vida, inseridas dentro de um contexto histórico predeterminado, fazem a criança atualizar situações emocionais pregressas. Medos, angústias de castração e utilização de mecanismos de defesa são enfatizados com um colorido próprio às configurações edipianas.

Palavras-chave: Morte, Complexo de Édipo, Cirurgia infantil, Psicanálise.


ABSTRACT

The permanence and influence of a dead person in an individual's mental life is discussed drawing on psychoanalytic references. True facts, by superposing the peculiarities of a child's psychic functioning in a certain stage of his/her psychosexual development, determine increased fantasies and personal interpretation of facts. The issue of death is focused from the development of fantasies by a five-year-old child, who loses his father in a murder and has to undergo a phimosis surgery. The author describes the way the child unconsciously keeps his dead father in his mind, who thus becomes alive and persecutive. New life experiences introduced into a predetermined historical context make the child bring foregoing emotional situations to his present time. Fears, castration anxieties, and use of defense mechanisms are emphasized with colorfulness peculiar to Oedipean configurations.

Keywords: Death, Oedipus complex, Child surgery, Psychoanalysis.


 

 

Introdução

O tema da morte acompanha o ser humano desde os primórdios de sua existência, tanto no sentido ontológico quanto vivencial. Nossos mais remotos antepassados recorriam aos deuses como último recurso, talvez, para enfrentar o temor do desconhecido, conseqüência inevitável decorrente da perda da vida. Ao longo dos milênios de sobrevivência da espécie humana, a luta pela manutenção da vida contra o desaparecimento, contra a morte - especialmente a morte prematura - criou, nos confins da mente, sinais e símbolos representativos dos temores evocados pela fragilidade da existência humana. A perspectiva constante de extinção da espécie incrementou o desenvolvimento de sistemas mentais e socioculturais sofisticados e intrincados a fim de permitir ao indivíduo lidar com as angústias de se defrontar com o seu desaparecimento. Surgiram as religiões, os rituais e os mitos, usados como tentativas de explicar e dar conta da imensa gama de emoções despertadas pelo temor da morte.

A morte que se instala de modo gradativo ou súbito no indivíduo e oferece, a quem o observa, a visão do desaparecimento dos sinais vitais, da inércia paralisada e irrecuperável das expressões faciais, da imobilidade do corpo apesar das súplicas, traz à tona, no vivente, emoções imemoriais de sua própria mortalidade. O reconhecimento do corpo morto, semelhante a seu próprio corpo vivo, identifica-o na fragilidade tênue do passamento do último suspiro exalado. Como não se aterrorizar? Como não ser atraído morbidamente na observação do corpo que jaz, procurando nele algum resquício, algum sinal que indique o destino último daquele que foi e deixou de ser?

O corpo morto reacende emoções impensáveis em quem permanece vivo. Este não tem como evitá-las, nem como devolvê-las a quem as despertou, pois se torna prisioneiro de angústias ancestrais, que tiveram origem em seus mais remotos antepassados. Os ouvidos mortos e sem alma não podem receber as tentativas de descargas emocionais projetadas, nem as acusações do sofredor. Instala-se a incomunicabilidade, defronta-se o vivo com uma muralha surda e intransponível a qualquer súplica ou grito lancinante na tentativa irrealizável de um último contato.

O morto, porém, impregna o vivo. Penetra-o, domina-o e, apesar de morto, recupera-se como objeto interno carregado de significações e de intenções. Nossos antepassados não conheciam a Psicanálise. As lembranças e os sentimentos são, porém, inerentes ao ser humano e, com esses ingredientes, entre tantos outros, foram construídos, paulatinamente, os sentidos obscuros dos trajetos mentais inconscientes.

O morto domina o vivo. Insinua-se de modo a se fazer presente em sua mente, modificado, camuflado, imiscuindo-se nos pensamentos ocultos, nas fantasias, nos sonhos e nos desejos. Torna-se vivo. Determinante de ações e pensamentos do vivente.

Mas, de qual morto estamos falando? Será daquele indivíduo que, enquanto vivo, tinha uma vida particular, com suas próprias motivações e emoções, que trabalhava, que amava e odia-va, que tinha uma família, que sentia frustrações, alegrias e dores, e que um dia morreu? Ou estamos falando do indivíduo morto e observado, do indivíduo captado pela relação estabelecida com o outro, transformado e interpretado por este conforme os seus próprios processos psíquicos?

 

Desenvolvimento

Os caminhos da transformação

Quem é esse homem que morre e deixa, por exemplo, um filho pequeno? Como defini-lo nas peculiaridades de sua identidade? Qual biógrafo conseguiria traduzir com fidelidade, post-mortem, o estilo, os sonhos, as crenças dessa pessoa? Como traduzir com clareza a natureza de suas relações afetivas, de seus vínculos? Que colorido emocional poderia ser descrito sobre a ligação que estabelecia com o filho pequeno? Com a morte, essa vida real termina. Para esse homem que morre, acontece um ponto final, que determina para essa existência um término absoluto. O homem que morre, morre para a vida. O que dele permanece após seu falecimento é de outro teor.

O homem de nosso exemplo não existe só. Há um filho pequeno, com quem se relaciona. Relação que é mútua, de troca. Boa ou má, pai companheiro e amoroso ou pai violento e distante. O filho tem um pai, relaciona-se com esse pai. Trocam experiências que podem ser boas ou ruins, gratificantes ou aterrorizantes. O pai com seu estilo de ser, e o filho com suas características próprias, no seu vir-a-ser. Vive esse filho, nos seus cinco anos de idade, toda a turbulência emocional que o seu desenvolvimento psicossexual lhe proporciona. Tudo, porém, tão camuflado, tão encoberto e escondido, apesar da força propulsora interna. Nem o pai, nem o filho jamais ouviram falar em Édipo e seu complexo. Nunca esse pai ousou sequer suspeitar que esse filho, também sem o saber, desejava que ele sumisse, desaparecesse, morresse... ou qualquer coisa parecida. Ocorre que, além dos dois, há uma terceira figura: uma mãe, linda, adorada e desejada com toda a força da alma pelo pequeno filho. E o pai do pequeno filho é, aos olhos deste, detentor da plena posse daquele tesouro. Homem odiado e pai amado. Ou pai odiado e homem amado. Porque dele depende e dele recebe afeto, atenção e, também, reprimendas, surras que o mantém sob controle em suas intenções ocultas e escusas. E porque é, também, o modelo, semelhante a quem deve ser para ser amado pela mãe-mulher-princesa adorada.

Como é complexo, pois, o contato que esse pequeno filho mantém com esse pai todo-poderoso! Quantos sentimentos contraditórios fazem seu pequeno coração oscilar numa gama imensa de emoções! Sonhar com a mãe só para ele, ocupar o lugar do pai, sentir-se culpado por esses sonhos, vir a tratar melhor o pai ou a agredi-lo pelas frustrações que sente e que atribui ao pai como o causador, sentir medo sem saber o porquê... E já, então, desde muito tempo, aquele homem-pai deixou de ser quem ele é na realidade para ser alguém imaginado, fantasiado, criado e recriado mil vezes na mente fértil do pequeno filho. Mil vezes ele quis o pai afastado, longe dele e de sua adorada. Tantas mil vezes desejou que o pai não existisse. Tantas mil vezes...

O sonho transformado em realidade. A primeira vez. Pai e mãe se separam. Não se entendem, o melhor lugar é a distância. Para o pequeno filho, surge o germe de uma perturbação maior. Reconhece a força do seu desejo. Satisfação e temor. E novamente o destino, cruel, com um prazer sádico, determina que essa pequena criança tenha o privilégio nefasto de despertar a mãe Jocasta. Não há mais marido? Há o filho para ocupar seu lugar. Justificativas? Muitas. "Medo". "Solidão" (a própria e a atribuída à criança). "É mais fácil cuidar do pequeno, se ele dorme comigo." Assim, o pequeno filho, realizando seu sonho ancestral e inconfessável, dorme ao lado da mãe, na mesma cama antes ocupada pelo pai. A criança tem, para suas fantasias, respaldo e cumplicidade maternas. Pode sentir-se onipotente senhor da adorada. O pai foi excluído, banido.

Permanece esse pai, porém, como uma sombra, uma ameaça. E se voltar e retomar seu lugar? E se quiser eliminar o usurpador? Temor e rivalidade se confundem. O pai amado e cuidador fica distante. O destino, porém, trama suas teias e armadilhas para determinar o futuro dos seres, ainda na prematuridade do desenvolvimento.

A segunda vez. O pai, homem semelhante aos seus ancestrais, frágil como todos os seres humanos, é assassinado. Não na fantasia do filho, que pode (e quem sabe, deve, para se desenvolver sadiamente) destruir inconscientemente o pai um milhão de vezes, sabendo que ele permanece magicamente vivo, na rea-lidade. O destino determina que, nesse caso, a seqüência da história do desenvolvimento dessa criança seja trágica. O desejo oculto realiza-se. A morte faz-se presente, com requintes de crueldade. O assassino real do homem-pai (um mero ladrãozinho), sem permitir nenhum heroísmo, nem qualquer ação que pudesse dignificar o assassinado, transforma em realidade atual aquilo que para o pequeno filho era vivido como realidade virtual. O pai morre de fato. O pequeno filho fica de fato sem o pai. Este se torna estátua rígida e fria na calçada da própria casa. E desaparece, some, não volta mais.

A mãe - mulher insensível - mostra o pai morto ao filho. "Não sentiu nada", diz, "fazia um ano que 'nóis tava' separado". Os olhos do filho vêem. Vêem aquela crueza sangrenta e, ao registrar essa morte, superpõe-na às tantas outras mortes e ataques inconfessáveis, inconscientemente fantasiados, que fez ao pai. Aí está, no entanto, a representação concreta, verídica, de todo o imaginado. A confusão é inevitável. Ontem, os ciúmes, a inveja, o ódio, a frustração; hoje, a paralisação contundente daquele que se transformava em ameaça ao pequeno usurpador. A oscilação nos sentimentos: ficar feliz ou triste? A ambigüidade de emoções. Uma dificuldade imensa em organizar os pensamentos e em discernir datas e fatos predispõe-no a fazer uso urgente de recursos mentais defensivos. A negação, o amortecimento dos sentimentos, a substituição da depressão pela perda do pai por uma satisfação maníaca em ter conseguido eliminar o rival tomam conta da mente do pequeno sem-saber sofredor.

E sua vida continua. Sem o pai vivo, mas com um pai morto-vivo internamente o acompanhando. O ontem se transforma em hoje e a ameaça se faz constante, presente. O pequeno usurpador e o mero ladrãozinho assassino se confundem e se fundem na mente da criança. O pai-morto se faz vivo e se dissemina em inúmeras outras figuras, que assumem o caráter de ameaça e perseguição.

A tragédia atualizada

O jovenzinho tem, agora, sete anos. O mesmo destino que com ele brinca, que faz dele um joguete das circunstâncias que lhe são criadas, propõe nova armadilha em que procura colocá-lo, enredando-o e conduzindo-o por uma trilha única, sem alternativa. Há um problema de ordem física: a irritação e a inflamação constante no pênis do pequeno ameaçado. Há uma indicação cirúrgica, postectomia, que do ponto de vista médico consiste na simples eliminação da pele prepucial excessiva que recobre a glande. A família, especialmente os tios, para os quais o jovenzinho que cresce representa no inconsciente coletivo masculino, um futuro rival, brinca sadicamente com o evento, que chamam de "castração" do garoto. A mãe não se pronuncia. Ao pequeno filho sem pai vivo, mas com pai morto vivo dentro de sua mente, resta esperar maniacamente que a cirurgia o transforme em homem. Dentro desse espírito defensivo e cheio de expectativas busca uma cueca do pai, morbidamente guardada pela mãe, para ser usada quando sair do hospital! Como a mente procura desesperadamente por recursos para enfrentar o medo, o fantasma que de repente se torna tão próximo!

A ameaça de vir a ser castrado pelas ousadias cometidas, pelas fantasias tão proximas da realidade, pela culpa reprimida impossível de ser aceita, pelo impedimento factual de poder retificar e reparar os danos imaginados ao pai, está aí, próxima, prestes a acontecer. A ida ao hospital está programada, o cirurgião o aguarda, a anestesia que o tornará inerte (como ele viu o próprio pai ficar, quando morto) está preparada para ele. E ele, pequeno filho órfão de pai assassinado, pequeno filho de pai morto-vivo, que o observa expectante dentro de sua mente, pequeno filho de mãe Jocasta que não o protegeu de seus próprios desejos e fantasias, tem que se enfrentar, solitariamente, com seus medos, aflições e angústias.

A criança permite que nos aproximemos de seu mundo interior, que tomemos contato com suas fantasias e seus fantasmas transformados. Conta-nos, já internada no hospital, antes de sua cirurgia, com desenvoltura e muita vivacidade, uma rica estória1, depois de fazer o desenho de uma casa:

"Era uma vez um menino, e a mãe mandou comprar R$20,00 de carne, ele comprou R$ 20,00 de bala. Aí tinha um defunto perto da casa dele e ele arrancou um pedaço do bumbum do defunto e deu pra mãe dele, e a mãe dele pensou que era carne e fritou um bife e deu prá ele comer. Aí ele não queria comer. Quando foi de noite na hora de dormir o defunto falou: 'Joãozinho, Joãozinho, cadê meu pedaço de bumbum, estou debaixo de sua cama, estou dormindo com você, estou subindo para dormir com você!' Aí foi cedo, cedo a mãe foi fritar de novo, o defunto apareceu de novo falando: 'Minha senhora, cadê o pedaço de minha bunda que o seu filho pegou?' e aí o Joãozinho apareceu perto do defunto, o defunto puxou o pé dele para debaixo da terra e ele morreu também. E aí a mãe quis procurar ele, não achou. De noite ficou preocupada e de noite um homem foi levar a notícia que ele tinha morrido. Aí o defunto pegou a mãe dele e a mãe dele morreu. E aí é o fim da história. A casa ficou sozinha."

Uma breve estória, que testemunha a permanência e a atualidade do morto dentro do vivo. O pai morto - aqui o defunto - está presente, reclama, ameaça e exige a devolução do que lhe pertence. O pedaço de bumbum que lhe foi tirado representa o próprio pênis paterno, nessa ótica de deslocamento, que o pequeno filho usa para lidar com sua intensa angústia. Naqueles tempos anteriores ele almejou possuir esse objeto mágico, que permitiria atrair a mãe somente para si; agora, permanece a acusação de roubo e crime cometidos. Tem que dar conta do dano que causou ao pai, tornado defunto. O revide paterno é de igual intensidade: a castração, representada pela cirurgia iminente, pela qual o pai-defunto retomará o objeto que lhe foi roubado, e a morte, simbolizada pela sufocação por meio da anestesia; na estória, é simbolizada por esse lugar assombrado, lugar dos mortos, que é debaixo da terra. O sentimento da participação cúmplice da mãe determina uma outra vingança, na mesma intensidade: a morte.

 

Conclusão

À guisa de conclusão

Este trabalho foi escrito com base no material clínico obtido no atendimento de uma criança que aguardava cirurgia. Os fatos são verídicos, estão em conformidade com as informações obtidas pelas entrevistas com o menino e com sua mãe. As interpretações são desenvolvidas a partir de referenciais da teoria psicanalítica. As conjecturas referentes ao trajeto do desenvolvimento emocional da criança e seus relacionamentos com o pai e mãe ficam por conta de nossa imagi-nação.

O desenvolvimento de técnicas de abordagens psicológicas, bem como a recorrência a teorias da personalidade permitem que tenhamos acesso a uma compreensão profunda a respeito de questões básicas com que se defronta o ser humano ao longo de sua existência. A morte pode vir a ser compreendida quando acompanhada passo a passo, naquilo que pode determinar na mente humana. As tragédias são inevitáveis, mas a incrementação de processos doentios por despreparo ou má compreensão dos fatos pode ser combatida e diminuída.

 

Referências

Bromberg, M. H. P. F., Kovács, J., & Carvalho, V. (1996). Vida e morte: laços de existência. São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Freud, S. (1976). Luto e melancolia. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 14). Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

Torres, W. C. (1999). A criança diante da morte: desafios. São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Trinca, A. M. T. (1987). A apreensão de conteúdos emocionais de crianças na situação pré-cirúrgica. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, USP, São Paulo.        [ Links ]

Trinca, W. (1976). Investigação clínica da personalidade: o desenho livre como estímulo de apercepção temática (2ª ed.). São Paulo: E.P.U.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
E-mail: amtrinca@usp.br

Encaminhado em 01/04/03
Aceito em 03/04/03

 

 

Sobre a autora:

* Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Doutora pelo Instituto de Psicologia da USP, Professora Assistente-Doutor na Faculdade de Psicologia da PUC-SP, Docente-Supervisora de Estágio no Curso de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica da USP.
1 Aplicação do Procedimento de Desenhos-Estórias (ef. Trinca, 1987).