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Psic: revista da Vetor Editora

versão impressa ISSN 1676-7314

Psic v.3 n.2 São Paulo dez. 2002

 

ARTIGOS

 

Ciúme e crime: uma observação preventiva

 

 

Eduardo Ferreira Santos *

Hospital das Clínicas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo discute a questão dos crimes passionais e do ciúme, no plano psicológico e das relações afetivas. Analisando detalhadamente o ciúme, são apresentadas - a partir dos "sinais de alerta" - possibilidades de prevenção da violência e dos desfechos muitas vezes fatais.

Palavras-chave: Crimes passionais, Ciúme, Agressividade, "Sinais de alerta", Possibilidades preventivas.


ABSTRACT

This article discusses the matter of passion crimes and jealously, in the psychological and affective relationships angles. The author analyses in details the jealously and introduces possibilities of prevention of violence and miserable results, sometimes mortal.

Keywords: Passional crimes, Jealously, Aggressiveness, Prevention possibilities.


 

 

Não é preciso estar muito alerta, para ter sua atenção chamada quase que diariamente para estrondosos crimes passio-nais envolvendo personalidades e outras pessoas não tão notáveis, porém com o mesmo e melancólico desenlace de uma situação relacional por meio de um homicídio e/ou um suicídio. A imprensa leiga é pródiga em nos apresentar, com detalhes bastante próximos da realidade, aquilo que há tempos tanto o Direito quanto a Medicina, por meio da Psiquiatria Forense, vêm procurando estudar e compreender: o crime passional. Quando ocorre um crime destes na esfera da sociedade elitizada, então os jornalistas se desdobram para encontrar causalidade e previsibilidade na imponderabilidade do ser humano. Não basta tentar compreender, sumariamente, o ser humano em sua ampla esfera biopsicossocial, pois esta mesma é apresentada de maneira confusa e contraditória pelos seus maiores seguidores. O aspecto biológico, por exemplo, tem encontrado, recentemente, nas alucinantes e mesmo alucinadas pesquisas da Genética, supostas respostas para os mais variados comportamentos humanos. Já se fala em gene para o Transtorno Afetivo Bipolar, gene para a Esquizofrenia, gene ou genes para os comportamentos hesitantes, pusilânimes, fóbicos, ansiosos ou obsessivos. Por que não se falar em possíveis genes e sua destinação na capacidade de matar. Há anos, falava-se na síndrome do duplo cromossomo Y (XYY), em seus casos raríssimos, mas que comprovadamente se apresentavam em pessoas de alta agressividade e, portanto, periculosidade. No plano psicológico, então, justamente combatido por seus opositores "biologistas", a profusão de teorias, versões e vertentes que procuram dar um sentido à existência humana, mais nos confunde do que esclarece. Desde o combatidíssimo Freud e seus brilhantes, ainda que parciais, estudos criadores da Psicanálise, que demonstraram a estrutura inconsciente da psique e afirmavam o poder desse inconsciente sobre as ações humanas, até Beck e sua atualmente badaladíssima Terapia Cognitivo Comportamental, na qual há apenas que se desaprender os comportamentos aprendido-los que tornam as possibilidades opostas de compreensão um labirinto intransponível e inexpugnável, que nos leva à interpretações e inferências que mais se aproximam da mais pura especulação do que de um estudo científico mais profundo e validado à luz da falaciosa ciência matemática. E os componentes sociais, então?! Destes, se ousarmos falar diretamente, cairemos em um conjunto de construtos teóricos e pontos de vista tão antagônicos, que nos assusta penetrar. Só de pensarmos em basear observações à luz da Vitimologia, não haverá quem não se levante e se oponha a essa suposta inversão de responsabilidades. O cunho político, então, chega a entender pacificamente a passionalidade como uma resposta socialmente justificável. E o plano religioso, então? Neste, se matar é universalmente aceito como crime, o ciúme é até mesmo defendido como um direito bíblico do homem e apresentado até como "prova de amor".

Trata-se, pois, de um assunto extremamente polêmico e complexo, isso quando abordado apenas sob o ponto de vista "médico" pois do "jurídico", ou forense, há ainda uma outra série de opiniões e jurisprudências que têm levado inúmeros autores, principalmente de língua latina e notadamente os franceses, a escreverem, a partir da segunda metade do século XIX, uma série de livros e artigos sobre o terna.

É claro que os literatos precederam os estudiosos e desde a Mitologia Grega há relatos de ações e crimes por conta do ciúme. Nessa área não há como deixar de citar Shakespeare e seu notável Othelo, que veio a inspirar psiquiatras da Inglaterra a classificar um comportamento homicida motivado por um ciúme delirante de "Síndrome de Othelo".

Como curiosidade, cito a descoberta que fiz, ao realizar um estudo genealógico da família de minha mãe, de um romance registrado na Biblioteca Nacional sob o título Honra e ciúme, publicado em 1860 por Manoel Duarte Moreira de Azevedo, irmão de meu tataravô (trisavô, na terminologia genealógica).

O sentimento de ciúme

O muito discutido e complexo sentimento de amor sempre é acompanhado de um outro sentimento agregado que é o de cuidado, de zelo para com a pessoa amada.

Quem verdadeiramente ama, quem quer bem, cuida para que a pessoa amada se sinta realmente bem, acolhida, querida, respeitada. É um sentimento de alteridade, isto é, voltado para o outro (alter) e não para si mesmo. É querer o bem do outro pelo outro e para o outro.

Uma distorção desse zelo e que, curiosamente tem sua origem etimológica ligada a ele, é o sentimento de ciúme que vem do latim zelumem e do grego zelus. Essa confusão de palavras leva muita gente, principalmente os de origem latina, a apresentar um certo cultivo desse desagradável sentimento, chegando, mesmo, a encará-lo como uma prova de amor.

Mas, se analisarmos mais detalhadamente o ciúme, podemos perceber, logo de início, que não se trata de um sentimento voltado para o outro, mas sim voltado para si mesmo, para quem o sente, pois é, na verdade, o medo que alguém sente de perder o outro ou sua exclusividade sobre ele. É um sentimento egocentrado, que pode muito bem ser associado à terrível sensação de ser excluído de uma relação.

O normal, mais comum, é a pessoa sentir-se enciumada em situações eventuais nas quais, de alguma forma, se veja excluída ou ameaçada de exclusão na relação com o outro.

Em um grau maior de comprometimento emocional, quando há uma instabilidade neurótica ou de auto-afirmação, a pessoa pode apresentar-se como ciumento. Nesse caso, a sensação permanente de angústia e instabilidade, a insegurança em relação a si mesmo e ao outro, além da fragilidade da relação afetiva, podem levar à pessoa a manter um permanente "estado de tensão", temendo ser traído ou abandonado. Qualquer sinal do outro pode significar algo e a angústia da dúvida corrói a alma de quem é ciumento.

Em uma terceira situação, ainda mais grave sob o ponto de vista de comprometimento do psiquismo, podem ocorrer situações delirantes em que, a desconfiança do ciumento cede lugar a uma certeza infundada de que está mesmo sendo traído ou abandonado. O pensamento delirante muitas vezes toma conta de todo o psiquismo e atinge níveis insuportáveis de tensão interna.

Paralelamente a esse sentir ciúme, podemos avaliar a forma de reagir perante esse sentimento.

Para a pessoa supostamente saudável, o sentir-se enciumado a leva a se ques-tionar sobre esse sentimento; chega a compartilhar com o outro este sentir e pode tirar daí algumas conclusões importantes sobre sua forma de ser.

Já o ciumento, que pode até não ter muita ciência desse seu sentimento, permanece em vigília o tempo todo, tenso, aflito, tomando atitudes algo destemperadas, sempre procurando uma forma de confirmar suas suspeitas. Isso pode ir de um soturno ato de vasculhar bolsas e bolsos, checar ligações telefônicas e até seguir ou mandar seguir o outro pelas ruas em busca de provas de sua infidelidade. Suas reações no dia-a-dia são geralmente agressivas, acusadoras, desconfiadas, causando um grande mal-estar na relação.

O terceiro tipo, o chamado ciúme patológico, também conhecido como "Síndrome de Otelo", em referência ao personagem shakespeariano que sofria desse mal, pode levar a pessoa a cometer atos de extrema agressividade física, configurando aqueles casos que recheiam as crônicas policiais de suicídios e homicídios passionais.

Enquanto os casos mais brandos de ciúme podem ser uma manifestação de má estruturação da auto estima, os intermediários refletirem estados neuróticos, os casos da "Síndrome de Otelo" são, indiscutivelmente causados por patologias psiquiátricas graves, as chamadas psicoses ou, ainda, por problemas neuropsiquiátricos como os diversos tipos de disritmia cerebral descritos na Medicina.

De qualquer forma, o complexo sentimento de ciúme, longe de ser aquele "condimento" que torna a relação amorosa mais "apetitosa", é um sentimento que leva, via de regra, ao sofrimento de quem o sente e, principalmente, de quem padece nas mãos de um ciumento desconfiado e agressivo.

O ciúme é, em última análise, um SINAL DE ALERTA! É uma "luz vermelha" que se acende no painel da vida, indicando que algo está falhando. Seja em um ou no outro, seja na relação, algum "ruído" está denunciado pelo ciúme. Quanto mais intenso e menos controlável, maior o problema. Quanto maior a intensidade desse sentimento, mais estaremos ultrapassando os limites da normalidade, para, aos poucos, podermos ser devorados por uma obsessão capaz de destruir qualquer relacionamento.

Relações em que há um sentimento de posse exacerbado e/ou uma submissão muito grande de um dos parceiros, sugere a fragilidade afetiva dessa relação e a manutenção da mesma pela "força" em seu sentido mais estrito.

Caso que grande repercussão na mídia foi o assassinato da jornalista Sandra Gomide por seu namorado/chefe/patrão, o também jornalista e editor chefe de um grande jornal de São Paulo, Antonio Marcos Pimenta Neves. Na relação de ambos, há tempos mostrava-se clara essa possessividade e os impulsos agressivos do assassino confesso, quando contrariado.

Poder-se-ia pensar que isso acabaria em morte?

É fácil ser engenheiro de obra pronta, diz o ditado popular, mas uma análise cuidadosa da situação e de todas as suas implicações, desde o início, deixava transparecer que a evolução daquela história teria um único final possível: a rendição incondicional de Sandra aos desejos de Pimenta Neves, que, de forma trágica e chocante, foi o que aconteceu.

E este é apenas um, dos inúmeros casos em que pessoas, aparentemente normais, deixaram-se levar por impulsos e mataram "em nome do amor"!

Há aqueles outros casos em que são evidentes as anomalias mentais, tais como o ciúme mórbido e perseguidor, geralmente acompanhando doenças demenciais como a demência alcoólica, a demência por Doença de Parkinson e outras nas quais o perigo, a ameaça são flagrantes e a urgência da procura médica e/ou jurídica, inevitável.

A grande questão, a meu ver, reside nestes "casos de amor" em que a mulher, sim, principal e quase que exclusivamente a mulher, procura um relacionamento que lhe dê conforto e segurança, geralmente com um homem bem mais velho e que demonstre claramente que se "preocupa" demais com ela (o que é compreendido como um sinal de proteção), entregando se placidamente a uma "gaiola dourada" que, quando, mais tarde, precisar ser aberta, haverá a terrível constatação que o destino reservado foi semelhante ao de uma "máscara de ferro", irremovível e eternamente aprisionadora.

Deixar passar isso tudo em branco, leva-nos a mal comparar com aquela terrível experiência do acidente aéreo na região metropolitana de São Paulo em que o piloto, segundo alguns comentá-rios iniciais, teria ignorado os sinais emitidos por um dos alertas por considerá-lo sem importância. O resultado todos nos sabemos...

 

Referências

Alves, R. B. (2001). Ciúme e crime: crime e loucura. Rio de Janeiro: Editora Forense.        [ Links ]

Azevedo, M. D. M. (1860). Honra e ciúme. Rio de Janeiro: Typographia de Paula Brito.        [ Links ]

Eluf, E. N. (2002). A paixão no banco dos réus. São Paulo: Saraiva.        [ Links ]

Santos, E. F. (1998). Ciúme, o medo da perda (4ª ed.). São Paulo: Ática.        [ Links ]

Santos, E. F. (2000). Ciúme, o lado amargo do amor. São Paulo: Gente.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
E-mail: efs@uol.com.br

Encaminhado em 23/01/03
Aceito em 15/03/03

 

 

Sobre o autor:

* Eduardo Ferreira Santos é Psiquiatra, psicoterapêuta e mestre em Psicologia Clínica pela PUC SP, médico supervisor do Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquaiatria do Hospital das Clínicas, da FMUSP e membro do NUFOR.