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Psic: revista da Vetor Editora

Print version ISSN 1676-7314

Psic vol.4 no.1 São Paulo June 2003

 

ARTIGOS

 

Sofrimento e perda de sentido: considerações psicossociais e clínicas

 

 

Jacqueline Barus-Michel I; Christiane Camps II

I Universidade Paris
II Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Jacqueline Barus-Michel apresenta neste artigo considerações a respeito do sofrimento, que é por ela considerado como sendo tanto físico quanto moral. Discute distintas relações entre esse conceito e outros. Inicia abordando as relações entre sofrimento, trauma e violência, depois fala de sofrimento e gozo. Enfatiza o sofrimento existencial, da questão do ser no mundo, estabelecendo a noção de que as religiões e as ideologias são como esponjas de sofrimento face ao questionamento inquieto a respeito do sentido. São também discutidas as relações entre esse tema e a cultura, sendo que o sofrimento é sentido como infelicidade, mal-estar, desordem, injustiça, dependente do meio social e cultural, do sistema de representações e da simbolização, de sua solidez, força e riqueza. A autora aborda dimensão psicossocial, mostrando que aquele que sofre se encontra na confluência da subjetividade e da realidade exterior, do individual e do social, e a injustiça concentra o sofrimento social. Daí temos as comparações entre o sofrimento sociopolítico e o individual, sendo que o sofrimento pode passar de individual a coletivo. Finalmente a autora aborda as alternativas ao sofrimento, afirmando que é necessário encarar o sofrimento como uma expressão do mal-estar do sujeito.

Palavras-chave: Sofrimento, mal-estar, Subjetividade, Dimensão individual, Dimensão social.


ABSTRACT

In this article, Jacqueline Barus-Michel examines suffering, which she considers as being both moral and physical. She discuss the different relationship between this concept and others. She begins by approaching the relationships among suffering, trauma and violence and later she discusses suffering and pleasure. The author emphasizes the existential suffering of the question of 'being' in the world, establishing the notion that religions and ideologies act as sponges of suffering: when facing the questioning regarding sense, ideologies and religions are able to give people an answer. It is also discussed the relationship between this issue and culture. Suffering is experienced as unhappiness, indisposition, disorder and injustice. It depends on the social and cultural environment, as well as on its strength, richness and solidity. The author approaches the psychosocial dimension, pointing out that the one who suffers in the confluence of the exterior reality and the subjectivity, of the individual and the social; injustice concentrates the social suffering. All this enables us to compare the social-political, individual and collective suffering. Finally, the author discusses alternatives to suffering, concluding that it is necessary to face it as an expression of the individual's indisposition.

Keywords: Suffering, Indisposition, Subjectivity, Individual dimension, Social dimension.


 

 

Etimologia e semântica

Encontramos nas origens: pherein, no grego, e no latim, ferre, carregar, suffere, carregar por debaixo, que também significa oferecer, suportar, permitir, tolerar. No século XV, sofrimento, em francês, queria dizer dor e carregava a idéia de resignação e tolerância possível ou não. Desde o século XVI, sofrer remete a experimentar uma dor. Contudo, nos dicionários, a palavra dor é, ela mesma, definida como sofrimento ou sensação penosa, uma definição remetendo à outra, como se as palavras estivessem sempre tentando captar o real.

As qualidades atribuídas ao sofrimento são diversas e esclarecedoras: ele pode ser, como a dor, agudo, vivo, dilacerante, fulgurante, lancinante, surdo, atroz, intolerável, extremo... Os sinônimos apresentam toda a infelicidade do mundo: aflições, pesar, dilaceramento, luto, tormento, desgosto, tristeza, angústia, infelicidade, dilaceração, abandono, mal-estar, miséria, feridas... Nós retornaremos sobre o que revelam os verbos que manifestam sofrimento tais como: berrar, gemer, gritar, queixar-se, lamentar-se, expor seu sofrimento, ser esmagado, aniquilado pelo sofrimento...

O sofrimento é, usualmente, tanto físico quanto moral. No entanto, nós aqui deixaremos a palavra dor para o que remete à dimensão física, entendendo essencialmente por sofrimento aquilo que diz respeito ao "moral". Torna-se ainda necessário explicar o que entendemos por moral, categoria que logo cedo esteve atrelada ao termo sofrimento. Pensou-se primeiro em "humor", que corresponderia razoavelmente bem a estados subjetivos emocionais, relacionados a fluidos internos. Depois, já no século XVIII, pensou-se em "faculdades mentais" que parecem relacionar-se mais ao pensar do que ao experimentar. Nos dias de hoje, e nas ciências humanas, privilegiamos o "psíquico" que remete à subjetividade em suas dimensões intelectual e afetiva - psíquico: conjunto de fenômenos mentais formando a unidade subjetiva (interioridade do sujeito), intelectual e afetiva, a ideação e os aspectos qualitativos (moção, emoções e sentimentos). Deixemos de lado qualquer referência à "alma" em função de seus antecedentes religiosos que a concebem como um elemento separado do corpo, imortal, postulado não passível de verificação, levando as ciências humanas a abandoná-lo. Do mesmo modo, "espírito" ora remete ao pensamento apenas consciente, à sua agilidade, ora a um sopro divino que atravessaria o sujeito (espiritualidade), retornando ao postulado acima. Psíquico tem o mérito de definir um objeto de observação e de estudo sem emitir qualquer julgamento sobre sua natureza original, o que permitiu introduzir a psicologia nas ciências humanas.

Esboço de uma definição dinâmica

O sofrimento (moral): sensação penosa, emoção desagradável, sentimento de infelicidade num grau mais ou menos intenso, com uma certa duração, ligado a uma representação difícil ou impossível de suportar. Mesmo sendo obscuro, indefinido, ou até ignorado, supõe-se sempre que o sofrimento tenha uma causa, esteja ligado a uma experiência, a um acontecimento que feriu, abalando o equilíbrio psíquico, afetando-o negativamente. Mas é mesmo a representação do acontecimento que é o fator de sofrimento o acontecimento apontado pode não ser forçosamente a causa desse sofrimento. Pode haver um outro fator do qual nem se falou (acontecimento: a morte de um pai; representação: "a perda trágica do meu pai").

O sofrimento afeta o sujeito (a subjetividade) em sua unidade e integridade, sua coesão e coerência. Corresponde ao que a Psicanálise atribui ao ego, instância reguladora, preservando, nas ambivalências e contradições (a divisão do sujeito) e sob a pressão da realidade e das outras instâncias (id e superego), uma unidade de identidade e uma estabilidade emocional. "O sofrimento surge assim que as nossas capacidades de manter a continuidade e a integridade de nosso eu tornam-se deficitárias [...]" (Kaës, 1987).

O mal-estar, a doença, o patológico, literalmente o que é sofrido, é uma ruptura ou desestabilização dessa unidade e desse equilíbrio. Essa ruptura é experimentada como difícil de suportar, causando sensações desagradáveis, equivalentes, no plano psíquico, à dor física, podendo a dor psíquica e a dor física converterem-se uma na outra ou se sobreporem uma à outra.

Existe sofrimento quando a capacidade de controle e de elaboração das sensações e das representações fica ultrapassada, quando as capacidades intelectuais se esgotam, a repercussão emocional atravanca o psiquismo, abafando a atividade intelectual, a capacidade imaginativa (aquela de formar novas representações). Se a repercussão emocional é excessiva as pulsões podem, por sua vez, sufocar o sujeito e desencadear violência: somatização (degradação física localizada ou generalizada - dessa vez, efeito e não causa), exteriorizações (agitações, atuações), revolta contra si mesmo (suicídios, depressão, melancolia), interiorização em "dispersões fantasmáticas" (acessos delirantes).

O sofrimento inibe as capacidades e destitui a linguagem: "eu não posso mais pensar"; ele paralisa a atividade simbólica: o grito e a queixa substituem a palavra e a troca. A queixa torna-se monótona e repetitiva, ela acompanha de modo linear o mal-estar, testemunhando do que o sujeito está isolado, exilado no tempo e no espaço, "pregado", destinado a um aqui impossível de ser transposto, preso no presente indefinido do sofrimento: "Isto não vai acabar jamais?"

Relatividade do sofrimento

O sofrimento é qualitativo, subjetivo, relacionado à incapacidade de ser senhor de si (força do eu), portanto variável de acordo com os indivíduos, as circunstâncias, as culturas. Quanto mais sólida a capacidade imaginativa e simbólica (tramas e elos ideológicos muito interiorizados) mais forte será a tolerância: "Eu não sinto mais a dor", "Aprendi a não sofrer mais", "Meu sofrimento não é nada ao lado daquele dos outros, eu não tenho nada a dizer", "Eu tenho o suporte de Deus, ele sempre me carregou durante as provações", "Eu cuido dos outros, eu não tenho tempo para pensar em mim", " Eu desvio meu espírito do sofrimento..." Dos testemunhos existentes, parece que aqueles que melhor resistiram, do ponto de vista moral, nos campos de concentração, foram os que estavam imbuídos de um forte ideal, colocado fora deles mesmos e motivando uma ação de empenho. Primo Lévy (1958) escrevera: "Talvez também tenha eu encontrado um apoio em meu interesse jamais desmentido pelo espírito humano [...] a vontade que tenazmente conservei, mesmo nas horas mais sombrias, de sempre ver, em meus colegas e em mim mesmo, homens e não coisas, evitando assim essa humilhação, essa desmoralização total que para muitos levava ao naufrágio espiritual."

A preservação de uma concentração intelectual, de vínculos afetivos, de uma atenção voltada aos outros, pode atenuar, apagar, anular o sofrimento. Mas, esse domínio só é possível quando o ego já é forte, a relação objetal está garantida, o narcisismo de base é suficiente para que o sujeito não se sinta nem roubado, nem atacado pelo que, novamente, evoca perda, frustração, ausência de poder, culpa. O chefe descrito por Freud em Psicologia das massas e análise do eu (1921), é um ser insensível: "ele é dotado de uma natureza de mestre, seu narcisismo é absoluto, ele é confiante e independente", como o pai da horda primitiva cujo "ego não era menos limitado em função dos vínculos libidinais [...] não se perdia, além da conta, face aos objetos". Assim sendo, existem dois modos de resistir ao sofrimento: ter um ego impermeável ou, ao contrário, um ideal de ego atrelado a valores fortes, sob o auspício da sublimação; talvez os dois não sejam tão contraditórios.

Sofrimento das origens

O sofrimento está certamente ligado aos acontecimentos e às situações que o desencadeiam, mas, se ele é subjetivo e relativo, é porque ressuscita fragilidades arcaicas.

O sofrimento está aí, desde a origem da vida, e diante dele o humano encontra-se desarmado. Todo esforço de desenvolvimento será feito no sentido de transpor e abafar essa vulnerabilidade primeira.

O princípio do prazer tem por reverso tentar escapar ao sofrimento que, no início, é confuso, físico e psíquico, endógeno e exógeno, experiência subjetiva e corporal sem distinção possível, sofrimento decorrente da não-satisfação das necessidades, da perda do objeto, a impotência de mantê-lo sob o controle inerente ao encontro da realidade e da alteridade como obstáculos do desejo e do prazer. De acordo com Kaës " [...] Tão logo retomamos contato com a angústia primitiva, assim que nossas identificações fundamentais ficam ameaçadas, quando a confiança desaparece [...]", o sofrimento emerge (Kaës, 1987).

O comportamento motor e o acesso à linguagem são determinados pela luta contra as insuficiências e os desprazeres que surgem. O sofrimento instala-se quando esses últimos são fortes demais em intensidade ou em duração e quando o combate para dominá-los mostra-se em vão. Esses são os primeiros lutos. Mas o jogo, a linguagem, a confiança e a segurança promovidos pelo ambiente ao redor (desempenhando função de continência) permitem um equilíbrio, uma construção de identidade, uma estabilidade narcísica.

Portanto, uma outra dimensão e fonte de sofrimento logo aparece: a culpa. As figuras amorosas e de autoridade distinguem-se e estruturaram-se como figuras investidas. A criança sabe que ela pode perder o amor e atrair um castigo, que sua conduta e também sua experiência subjetiva, suas pulsões, desejos, intenções podem causar-lhe essa perda do amor e o castigo. A criança sabe que sua exclusão ou promoção serão de sua responsabilidade. Ela sabe também da destrutividade que carrega e se responsabiliza efeitos fantasmáticos ou reais. Essa culpa sobrepuja os contragolpes de seu próprio desejo e ancora um sofrimento difuso sempre pronto a ressurgir ou sempre presente.

Sofrimento consciente, sofrimento inconsciente

O sofrimento é ao mesmo tempo consciente e inconsciente, a representação dolorida ocupa, em geral, o campo da consciência, mas um sofrimento desconhecido, ligado a incapacidades psíquicas ou a maus tratos e a lapsos (brancos do imaginário) na história subjetiva, não é necessariamente expresso como tal pelo sujeito. Ele o ocupa, ele o captura desde o seu interior, diminui sua superfície de expressão, sua mobilidade, encobre seu humor, ele ata profundamente os fantasmas destruidores e angustiantes que se revelam por meio dos sonhos, dos atos falhos, das inibições, dos desafios à repetição, às vezes por acessos depressivos ou ainda de condutas de adição.

Dito de outra forma, o sofrimento pode não ser "consciência sofredora", mas permanecer difuso, como um estado não nomeado, não nomeável, uma suspensão do ser no mundo, nos outros ou em si mesmo. Sob o efeito de um choque muito forte, ele mesmo e sua ocorrência permanecem fora do campo da consciência, selados.

As realidades, os acontecimentos e as situações, que reacendem essas dores antigas, são, de fato, da mesma ordem, mas atuais, eles as reforçam e reavivam, fazendo estourar em representações doloridas conscientes, o que permanecia em estado latente. Frustrações, vergonhas, lutos (em outras palavras, falta, culpa, perda), feridas que cortam ou rasgam os vínculos e a identidade, contínuos ou brutais, comprometendo "o sentido da vida", indo inscrever-se como sofrimento ("A vida para mim perdeu seu sentido"), devolvendo o sujeito ao estado de coisa, "pobre coisa", gemente, boba; isso quer dizer que não fala mais, não mexe mais, não troca mais, não projeta mais: na sua ausência de desejo, o avesso do desejo... "Que isto não seja mais!".

Sofrimento, trauma, violência

O sofrimento tem algo a ver com o trauma. Esse último rompe o elo simbólico, a trama da linguagem capaz de segurar a pulsão. O trauma pode definir-se como violência sofrida, arrombamento: o externo perdendo-se no interno, destruindo o equilíbrio, levando o sujeito, ou os sujeitos, à desordem e ao sofrimento. Se recorrermos à etimologia do trauma, encontraremos a idéia de ferir, de perfurar: é mesmo uma ferida com invasão, uma lesão de uma violência extrema provocando um fluxo excessivo de excitações, não domináveis.

O trauma suscita defesas patológicas, desordenadas, não defesas "normais" do ego, organizadas e adaptadas: o ego fica desordenado pelo sofrimento.

O fluxo de excitações intoleráveis demanda a ser liquidado. Diversas vias são possíveis: a expulsão da excitação em sua corporeidade faz literalmente o trauma ir embora roubando o externo, no instante mesmo, de um modo atemporal: "O ato de violência externaliza, então, a angústia de um ego que corre o risco de indiferenciação." (Avron, 1985). O invólucro da unidade egóica, estando fraturado, pode causar uma explosão ou fechamento. O fechamento explica a repetição, reprodução. Há incorporação da agressão sem resolução, uma verdadeira identificação corporal, não diferenciação entre o agressor e o agredido levando à reprodução em situações comparáveis, mas invertidas: o agredido é agressor, o violado, o violador. Pode também haver implosão, destruição interna, loucura, suicídio. A violência não tem outra saída senão retornar. A violência que rompeu a integridade física e psíquica deixa marcas, imprime de modo traumático o corpo e o psiquismo que só pode, então, reproduzir em vez de transpor, de dar uma resposta.

O violento sofre, sofreu e faz sofrer. Os violados tornam-se freqüentemente violadores, os maltratados aqueles que maltratam. Os bruscos, ladrões, dealers, são também aqueles que foram excluídos dos sistemas de simbolização por uma sociedade que não reconhece mais o valor das trocas, que não sabe mais se simbolizar a si mesma. A exclusão é um trauma contínuo e algumas delinqüências são o sintoma social decorrente. Por sua vez, a violência é freqüentemente a expressão de um sofrimento não expresso.

Sofrimento e morte

O sofredor é excluído, abandonado, "Por que você me abandonou?" Ele não tem mais subjetividade apenas a violência da infelicidade. Se ele tenta construir representações de sua infelicidade, para além da constatação da devastação, essas só podem inscrever-se como arrependimento do passado. O sujeito aguarda uma interrupção que, aos seus olhos, só pode ser a morte: "Deixem-me morrer! Que a morte me leve!" O sofrimento é um morrer devagarinho; uma morte experimentada, sendo que a única esperança é que ela finalmente chegue. "Que a morte ponha um fim ao meu sofrimento." Tânatos, desejo de morte e de esquecimento, é um recurso contra o que a vida inflige.

Qualquer que seja o seu grau, o sofrimento traz angústia, pânico, depressão, suspensão da alma, desmoronamento, ele inaugura o medo difuso e violento que anuncia uma destruição, uma perda, uma hemorragia narcísica em que o ego corre o risco de se dissolver. O sofrimento apresenta a proximidade de uma ameaça mortal, real ou fantasmática. Se sofrermos em função do que nos escapa o sentido e o controle, é mesmo, in fine, da morte que se trata, essa subtração de si mesmo.

A Shoah, infelicidade absoluta, sofrimento imposto sistematicamente com objetivo de morte, aproximou novamente a questão do sofrimento à questão do mal há tempos relacionadas pela religião, mas, dessa vez, entendendo o mal como potencial inerente à natureza do homem comum. É o que Hannah Arendt (1963) descreve como "a banalidade do mal". A Shoah foi um empreendimento de desumanização do carrasco, assim como da vítima, por meio de um sistema que reduz o homem ao sofrimento animal e que, por meio da reificação, despoja o carrasco de toda responsabilidade. À morte do pensamento corresponde o sofrimento puro: impossibilidade da vítima de falar. O sofrimento é redobrado; o esquecimento por sua vez torna-se impossível, pois ele é impossível, diferentemente do que acontece em um pesadelo, a expressão do que está além da palavra. Embora sua escrita difícil, "estudo sem paixão", de sua obra baseada na memória, tentativa de restituição desde a base dos fatos, Primo Lévy (1958), tendo estado sujeito ao inominável, acabou-se suicidando.

Sofrimento e gozo

Sofrimento e gozo podem transformar-se um no outro e também se compreender um ao outro. Podemos nos "comprazer na infelicidade". Podemos encontrar um gozo narcísico na escolha pela infelicidade (colocando em evidência o sofrimento, bancando o mártir); tira-se disso um benefício... secundário: exibir suas feridas, manter os outros ao redor de seu sofrimento, culpá-los, interessá-los, fazê-los sofrer com você, tornar-se um "crucificado", obter compaixão. Pode-se transformar o sofrimento em uma transferência de dor: sofrer pelos outros. O sofrimento torna-se redentor em um registro de culpa e de resgate: o universo do pecado. O sofrimento torna-se uma moeda de troca, de transação sagrada. "Oferecer seu sofrimento na reparação de..." É a versão mística da transferência, transferência de culpa, gozo na confusão das dores, suas e dos outros, confusão chamada Deus. A religião cristã aproxima de bom grado o sacrifício e o gozo por meio da oferenda. Santa Teresa de Ávila descreve sua experiência mística, a "transverberação", efeito do amor de seu senhor, intolerável e suave, uma prova tanto quanto uma graça.

No erotismo, outra mística dos corpos, gozo e sofrimento estão emaranhados ou trocados; o primeiro, muitas vezes, não se obtém sem o segundo. O romantismo é uma cultura dos sofrimentos do coração (Os sofrimentos de Werther, A flor de lis no vale, etc.) que tenta sobrepor-se ao corpo; as lágrimas são, portanto, experimentadas com deleite. Não foi necessário esperar o marquês de Sade para que ficasse marcado no corpo essa furiosa aliança. Os amantes podem dizer: "Meu sofrimento é gozo", "Teu sofrimento é meu gozo" sem por isso serem perversos. Procura-se a fusão com o outro entre gozo e sofrimento. As fantasias, bem como o ato amoroso, integram violência e doçura. Sem dúvida, no extremo da sensação, sofrimento e gozo confundem-se, a diferença é que, no gozo, a excitação nos limites do suportável encontra uma via de descarga e o sujeito sabe que pode atingi-la. Ele consente em perder-se, deixar-se levar, sem de fato perder o sentido. O gozo permanece em seus planos. O sofrimento pode, então, tornar-se um meio de acesso, cientemente empregado, para se obter o gozo.

Sofrimento e trágico

O sofrimento desenrola-se em torno do drama humano, da condição de homem sujeito às suas paixões - pulsões, a seus deveres e constrangimentos morais, às prescrições e interdições de sua cultura, a despeito dos outros.

Fruto do trágico, encontramos sofrimento na contradição, no conflito, injunção paradoxal entre desejo e dever, amor e poder, segurança pessoal e exigência coletiva, honra e interesse. O herói trágico assume o desfecho, e a tragédia coloca em cena o sofrimento e o amplia; permite ver e lastimar as situações patéticas nas quais se debatem os heróis tão infelizes quanto admiráveis. Vemos o conflito lançá-los em uma incoerência próxima da loucura, até o ápice, o momento trágico por excelência, que eles atravessam geralmente com a morte, o suicídio ou o assassinato.

A morte é sempre o que se apresenta no horizonte do sofrimento. O que escapa ao domínio, hemorragia libidinal, destino trágico, ameaça à integridade: o que anuncia a morte do sujeito, mas também o destino humano.

Nascido para morrer, nascido para sofrer, esse é o destino de que apenas o homem entre os vivos tem consciência e cujos teólogos e filósofos aproximam-se a cada dia. O sofrimento, quase mais que a morte, é um enigma metafísico que se aproxima do absurdo.

Sofrimento e contradição

O sujeito constitui-se numa tensão em busca de sentido: dar sentido ao que ele é, ao que faz, à sua experiência, às suas relações com os outros. Essa tensão origina-se na demanda, que por sua vez também sofre a tensão do desejo sempre insaciado, e encontra o outro a quem ela se endereça e que também constrange. A realidade em si apresenta-se sob forma de obstáculos, sempre a serem controlados, e nos quais o desejo tropeça. O sujeito segue buscando a continuidade de seu desejo e o contorno das angústias e frustrações, organizando-se de modo significativo: tratando de dar uma coerência ao caos das excitações e às exigências que o agitaram. Ele tenta, com perseverança, falar. Ser de linguagem, nascido no meio de linguagem, ele encontra sua unidade e continuidade apenas na construção da linguagem: poder reunir os elementos disparatados e contraditórios de sua experiência, para colocar para si, em palavras, para contar a si mesmo, na temporalidade (seu passado, seu presente, seu porvir), na sua relação com os outros. O sentido é apenas possível na relação que temos com o outro, seja essa relação acolhedora ou não por parte do outro. O discurso que temos sobre nós mesmos tem sempre este outro em nós mesmos representando um interlocutor privilegiado mais ou menos dissimulado.

Primo Lévy (1958) escreve no prefácio de seu livro Si c´est un homme: "A necessidade de contar para os 'outros', de fazer os 'outros' participarem, adquiriu em nós, tanto antes quanto depois da nossa liberação, a violência de um impulso imediato, tão irresistível quanto as outras necessidades elementares."

O sofrimento nasce, para o sujeito, tanto da dificuldade de elaborar um sentido para a sua experiência ("Eu não sei mais em que ponto estou, eu não sei mais o que me acontece, eu não sei mais o que eu quero."), quanto da recusa de um outro em reconhecê-lo. Por meio de seu propósito, a proposição que ele faz de sua unidade, que só pode acontecer se for significativa, o sujeito coloca-se à prova do outro, ele pode ser reconhecido, entendido, como pode ser ou sentir-se rejeitado, não correspondido.

O sentimento de ser compreendido funda a confiança e a amizade, o prazer de estar integrado. O amor é a crença na coincidência, o compartilhamento total do sentido tanto quanto dos sentidos. O sofrimento vem ao se perceber, pouco a pouco, ou de forma abrupta, que o outro "não vê as coisas do mesmo modo", que o que tinha sentido para um não tem para o outro. O que, do outro, vem contradizer o sentido que o sujeito procura elaborar é uma forma de aniquilamento. "Eles não me compreendem, pior do que isso, eles não querem me compreender" equivalendo rapidamente a "eu não sou nada para eles".

O maior sofrimento vem dessa contradição, dessa recusa recebida como corte. Nessa perspectiva, o silêncio torna-se a única resposta possível ao sofrimento: o retraimento dos autistas, dos idosos, das vítimas de traumatismos, bem como dos depressivos, encerra também o sofrimento de não terem palavras a dizer sobre si mesmos e de não terem uma escuta suficiente.

Sofrimento e ausência de sentido

O sofrimento é a perda de sentido, desordem das emoções, dos sintomas, a impossibilidade de colocar em palavras, de se explicar, de se representar, de simbolizar (sofrimento "indescritível, não passível de ser traduzido, não dizível", "os grandes sofrimentos são mudos"). O conflito torna-se crise, a discussão interior não tem saída, o sujeito sente-se pesado, "a dor não pode ser compartilhada".

A queixa ou o sintoma seriam as marcas de uma demanda não articulável, algo que tem dificuldade em se expressar, mas que é dirigido ao outro. Essa queixa é um pedido de sentido, de restaurar algo que pode ser dito, a introdução novamente, no circuito da vida, das trocas, na coerência que constitui cada um de nós em nossa identidade, nosso vínculos. "O que tenho? O que me acontece? O que isto quer dizer? Por que sou assim? Digam-me, expliquem-me!" O pedido de alívio ou de ajuda passou o primeiro estágio do emplastro e pede explicação, compreensão, devolução de sentido.

O trágico nos remetia à consciência infeliz, a esse sofrimento existencial ligado à questão do ser no mundo, que á a questão do sentido, o aparecimento da ausência de sentido: do absurdo. As religiões, as ideologias são como esponjas de sofrimento face ao questionamento inquieto a respeito do sentido, elas trazem uma resposta: "Tem sentido, o sentido da história ou da vontade de Deus."

Se ele se voltar para o outro lado, o homem, face à necessidade de enfrentar a morte, o outro, a perseguição das coisas, deve buscar um sentido ele mesmo, elaborar seus valores, elaborar uma ética, sabendo que ele terá benefício apenas em função de seu esforço, sem qualquer garantia e com a certeza de revés. Só existe sentido dado pelo homem e solução para o sofrimento no desafio. De acordo com Camus (1942), Sisyphe e Promethée oferecem a saída da dignidade e da revolta, conquista de si mesmo na consciência de sua finitude.

Os tóxicos calafetam o sofrimento reconstituindo uma unidade, embora não significativa, uma homogeneidade não articulável: dos estados eufóricos ou que causam espanto, um amálgama tendo como avesso o buraco, o vazio. Repleto/vazio, alternâncias que carregam numa espiral sem fim onde uma pseudocoesão só pode ser obtida em detrimento da responsabilidade e da coerência (domínio do sentido), como um anestésico que calafeta de modo provisório a brecha, esconde o rasgo e deixa o paciente adormecido.

Sofrimento e cultura

O sofrimento, sentido como infelicidade, mal-estar, desordem, injustiça, depende do meio social e cultural, do sistema de representações e simbolização, de sua solidez, força e riqueza.

Em primeiro lugar é o que a sociedade oferece enquanto solidariedade, satisfação, explicações (mitos, ritos, vias de acesso e suportes religiosos, éticos, ideológicos, políticos, econômicos). O sofrimento desaparece, acalma-se ou se exacerba-se.

Os sofrimentos assumem as formas propostas ou autorizadas pela cultura. A sensibilidade ao sofrimento varia de acordo com as épocas e as sociedades. A capacidade de resistir à dor física é, ela mesma, sujeita a variações. O sofrimento moral depende dos objetos de apego propostos numa dada cultura. Pode acontecer que a proximidade da morte, ou a perda de um ente querido, seja considerada como um evento natural ou mesmo feliz, pode acontecer da filosofia ou da religião aprenderem a considerará-la calmamente. No centro de um mesmo grupo, o status social é o que vai determinar a expressão do sofrimento, mas também o seu ressentimento.

Na antiguidade, os estóicos elaboraram uma filosofia do sofrimento que propunha a seus seguidores afrontá-lo sem medo. O cristianismo é uma religião, que, como outras, foi constituída em torno do sofrimento, um sofrimento por sua vez aceito como benefício, como um modo de se comprar de volta ou de se adquirir uma felicidade futura. "Bem-aventurados aqueles que sofrem." Sofrer na fé, sofrer como mártir, abre as portas do paraíso.

Algumas épocas dão valor ao sofrimento: para os românticos era doce sofrer de amor e de uma paixão infeliz. Existem também sofrimentos ridículos: as comédias do início do século transformavam o traído pela esposa, o ciumento, aquele que sofre por não ter o seu objeto de amor, em personagens cômicas.

Os ferimentos decorrentes da desonra, da humilhação, esse sofrimento relacionado à auto-estima e à degradação de sua própria imagem encontram pretextos muito diferentes de acordo com o sexo, a idade, o status social, a época, a sociedade.

Nas sociedades chamadas modernas, vemos eclodir o que chamamos de novas patologias: estado limítrofe (borderline) sem estrutura, depressões, inconstâncias, violências, condutas de adição, surgiram num contexto social de maior fluidez dos costumes. Elas substituíram os quadros nosológicos clássicos em sociedades paradoxais, que freqüentemente roubam, dificultam, os meios de se chegar à liberdade e à responsabilidade às quais somos convidados (desemprego). Cada um deve construir suas referências e definir seus limites, buscar suas identificações; aqueles que se encontram no centro dos paradoxos não conseguem criar suas referências, fogem na dependência, na depressão ou violência. O sofrimento psíquico, ele mesmo, parece não encontrar mais seus modelos, mostrando por aí que a sintomatologia acompanha sua época e seu meio.

À exceção de alguns que ocupam posições proeminentes na atualidade e que não servem de modelo, o anonimato em que muitos estão mergulhados confina à exclusão, pois eles são, ao mesmo tempo, continuamente solicitados a consumir e participar; na família, não se encontram mais figuras fortes e estruturadas, religiões e ideologias estão desacreditadas. Nesse contexto, a construção da identidade fica comprometida. Nas sociedades modernas, apenas o sistema econômico é proposto como algo externo que regula os vínculos sociais. O ético, o estético e o erótico são deixados para a elaboração de cada um. O que pode parecer um imenso progresso enquanto liberdade e responsabilidade permanece inaccessível a muitos. Um sofrimento cultural difuso, mas às vezes agudo, a dissolução do ego, a angústia da identidade levando a novas patologias. Entendemos também a busca desesperada de refúgio ao abraçar propostas religiosas e étnicas de integração, que radicalizam a problemática da identidade e fornecem de um modo extremista ou sectário um núcleo firme de identificação. O mal localiza-se no exterior, podemos atribuir-lhe nossa raiva e agüentar um sofrimento, por sua vez impossível de ser expresso.

Dimensão psicossocial

Aquele que sofre se encontra na confluência da subjetividade e da realidade exterior, do individual e do social. O sofrimento remete a uma invasão mútua, a um roubo de um pelo outro, a um conflito sem diálogo, é também ser esmagado, sofrer o peso da infelicidade, da miséria, da injustiça, da humilhação, da desonra, dos anos, isto é, da incapacidade e da rejeição, o que pode ser resumido por noções de exclusão e de solidão.

A injustiça concentra o sofrimento social. É sofrer de falta de reconhecimento, de exclusão, ser lesado em seus direitos, sua dignidade (em sua auto-estima), frustrado em suas necessidades vitais. O reconhecimento, bem como a injustiça, é uma noção psicossocial: necessidade vital do sujeito social, que permite estar no olhar do outro, existindo, ao mesmo tempo semelhante, admitido, e distinto, recebido em sua singularidade. O não-reconhecimento é objeto de uma queixa constante nas estruturas. Ch. Dejours (1998) percebe uma retribuição simbólica ao lado da retribuição material, julgamento com uma dupla utilidade (econômica, social e técnica) e beleza (de acordo com as regras da arte e originalidade). O reconhecimento garante o pertencimento e a diferença necessária para a identidade. Sua ausência assinala uma morte social: sofrimento e exclusão.

Em seu livro Souffrance en France, Dejours dedicou-se a analisar o que é o sofrimento no trabalho em condições administrativas modernas: repressão, reificação, desumanização são exercidas por meio da tecnologia e da economia que comanda as relações humanas, esvaziando-as de seu sentido. A tolerância à injustiça cresce, os novos métodos administrativos progressivamente recolocam em pauta o direito ao trabalho e às aquisições sociais, uma verdadeira guerra econômica esmaga o direito e a subjetividade em prol de uma única unidade que valha: a empresa.

Isso vem acompanhado de um retorno do sofrimento sobre si mesmo: "É por meio da mediação do sofrimento no trabalho que se forma o consentimento a participar do sistema [...] o sistema gera, em retorno, um sofrimento crescente [...] Homens e mulheres levantam defesas [...] estratégias de defesa [...] armadilha que pode voltar-se sobre aqueles que, graças a elas, conseguem agüentar o sofrimento sem se curvar [...] [elas] ajudam a fechar os olhos." Um imaginário de coragem e virilidade, uma ideologia do realismo político fazem das vítimas carcereiros de si mesmos e de outros, portanto que o ajudem a suportar o sofrimento.

A racionalidade do mal desemboca numa banalização do sofrimento pelo trabalho.

Sofrimento sociopolítico e sofrimento individual

O sofrimento pode passar de individual a coletivo. O sofrimento social é ser abandonado, excluído, perseguido em suas crenças, opções, seus vínculos, seus bens, ser humilhado. Um regime autoritário pode acalmar as angústias individuais, obrigando a seguir vias já delineadas, sem escolha, sem empolgação (os "normopatas" evocados por Dejours), mas o sofrimento pode transformar-se em sofrimento coletivo, uma exasperação do sentido de constrangimento que levará a revoltas ou mesmo revoluções. O regime autoritário oferece uma unidade, contudo, à custa de opressão e em meio a uma grande pobreza de sentido e a impossibilidade de elaboração pessoal. Sofrimento dos povos: tirania, ditadura, repressão, nas sociedades monolíticas onde a unidade imposta acontece no pensamento único, na ordem e conformismo absolutos. A diferença é erradicada (limpeza étnica), as perseguições raciais ou ideológicas a condenam. Categorias inteiras de populações são destinadas ao silêncio ou à morte.

O sofrimento manifesta-se sempre e em primeiro lugar, como impossibilidade de falar, como destituição de sentido.

ALTERNATIVAS AO SOFRIMENTO HISTÓRIA DA EFICÁCIA

Do religioso ao medicinal, do sinal ao sintoma

O sacrifício é o tratamento mais antigo para o sofrimento: ele permite libertar-se de um sofrimento transmutando-o em oferenda, de si e dos outros, vivos ou objetos, que se tornam veículos numa transação entre aquele que sofre e uma entidade espiritual. O sacrifício recoloca o sofrimento numa trajetória significativa, em que ele é reencontrado, do outro lado da corrente, transcendido. O sacrifício substitui, para aquele que faz o pedido, um outro ser vivo (o carneiro) cujo sofrimento fica comodamente relegado a segundo plano, passando até mesmo por desapercebido. O sofredor-sacrificado torna-se o beneficiário da operação. Sabemos do sucesso do sacrifício em todas as religiões, as quantidades de sangue derramado é fenomenal e freqüente. Testemunhando essa afirmação, podemos relembrar a largura dos esgotos subterrâneos sob o templo de Jerusalém, os relatos relativos à abundância de sangue banhando as esplanadas de Teotihuacan na época das cerimônias Astecas...

O sofrimento, o seu, mas principalmente o dos outros, serve como uma moeda de troca para obter favores do sobrenatural. Economia letal, como chamou S. Duverger (1979): morte para comprar a vida, sofrimento para comprar o bem-estar e a saúde, riqueza e segurança. Uma troca para a qual foi necessário procurar um mediador, padre, guru, feiticeiro, médium, que se apresenta como intérprete e organizador das entidades que permanecem escondidas ou enigmáticas. São eles que conferem ao sofrimento o estatuto de sinal que as entidades esperam ou reclamam, inscrevendo-o numa dialética significante de transformação.

Em contrapartida, o sofrimento, tratado como sintoma pela medicina, remete sem nenhuma operação transcendental à unilateralidade de uma causalidade talvez pouco visível, mas achatada (natural). O sofrimento fica circunscrito num campo de uma racionalidade científica, um sentido mecanicista, de primeiro grau, em que o significado junta-se ao significante. Nesse nível, o sofrimento não quer dizer nada, ele manifesta apenas, ele não é significante, mas sinal, um índice, que apenas remete a fatos. Assim sendo, o sofrimento, tendo preenchido o seu papel de sinal ou de signo associado, acabou sendo negligenciado. Certamente, há bastante tempo, existe uma preocupação em anestesiar, em calar a dor, contudo, a dor dos bebês foi escandalosamente negada, a dos idosos negligenciada, e por muito tempo o sofrimento da parturiente associado a uma herança de pecado original. "Tu terás teus filhos na dor" é uma fala inquestionável, definitiva.

Portanto, o sofrimento como simples sintoma, com valor se sinal, está simplesmente associado a uma desordem orgânica ou a um traumatismo moral, interessando apenas no sentido de alertar e orientar pesquisas. O vínculo, mesmo que certo, permanece, freqüentemente, obscuro.

O sujeito, que sofre em seu ser, sua identidade, seu porvir, que sofre tanto de angústia e abandono quanto de dores físicas, foi por muito tempo excluído da preocupação dos médicos.

Essa preocupação surgiu há um decênio e agora falamos de parto sem dor, de acompanhamento para os moribundos tanto quanto de cuidados paliativos; podemos ler publicações recentes que salientam o fato de que os bebês não são simples pequenos que berram, mas também sofrem. Ao aceitar a subjetividade do doente (ao contrário da redução médica que fala em leitos, órgãos, atos mais voltados a designar a doença do que o doente), foi necessário encarar o sofrimento como uma expressão do mal-estar do sujeito. Tratava-se de um apelo endereçado ao outro, que precisava ser ouvido e escutado numa relação voltada a ajudá-lo, a colocar em palavras sua infelicidade, palavras em suas angústias. Era recolocar o sujeito que sofre na relação, na continuidade de um discurso inacabado ou interrompido e, com certeza, devolver-lhe, dessa forma, a dor suportável, restaurando-lhe a palavra, envolvendo o sofrimento e reabsorvendo-o por meio do discurso, para além do efeito anestesiante dos calmantes.

Os cuidados paliativos, ao mesmo tempo, procuram a dose suficiente, o patamar, de morfina a ser administrada e instauram novamente a relação. O sofrimento pode ser elaborado.

Hipótese básica: o sentido e a eficácia simbólica

O sujeito tem uma necessidade vital de uma unidade de identidade (coesão e coerência), de se sentir ele mesmo em sua integridade e significação, como singularidade operante e reconhecida. O sofrimento provém do revés dessa pretensão, seja em função de golpes recebidos do exterior, seja da inaptidão e degradação interna, seja dos dois (ataque dos outros, das coisas - humilhação, violência, acidente, doença, luto - hemorragia narcísica, autodesqualificação, fraqueza do ego, impossibilidade de enfrentar, de assumir, vindo de uma incerteza das identificações, mas também dos reveses repetidos ou provocados).

O sujeito funda-se no reconhecimento de sua "mesmice" (é um semelhante) e de sua singularidade (distinção, originalidade), mas também em sua aptidão em retomar suas escolhas, seus atos, seus pensamentos, seus projetos dentro de uma intencionalidade e uma coerência. "Eu, o que eu quero, do que eu gosto, o que eu fiz..." Mesmo os reveses ou as contradições, ele tenta explicá-los pela sua evolução ou ambivalências que apenas lhe pertencem, que ele assume como momentos relacionados, propiciando sua riqueza tanto quanto sua mobilidade. Se os reveses são devidos às circunstâncias, ele obtém a certeza da conservação de uma vontade intacta: a incoerência tendo vindo do exterior não revelaria nada dele.

O sofrimento pode ser considerado como uma perda do sentido ou da capacidade de elaborar relacionada a um roubo ou uma submersão interna da pulsão.

O tratamento do sofrimento vai necessariamente passar, para além de sua eliminação, graças aos meios técnicos, por uma recolocação de sentido, restituição de coerência, reinscrição numa cadeia de linguagem que substitui sua dinâmica ao caos da experiência.

No capítulo de Antropologia estrutural, Lévi-Strauss, analisando o processo de cura do xamã, chegou à "eficácia simbólica". O sofrimento sendo o caos de elementos incontroláveis e não comunicáveis, perda de sentido, a restituição da linguagem (declamação de um mito pelo feiticeiro) permite uma reorganização e a transposição, a saída do caos (curar). Uma estrutura de linguagem e imaginária retomou o que, num estágio do vivo, social, psíquico, somático, tinha desorganizado-se. Lévi-Strauss percebe nisso um efeito estrutural no nível imaginário e simbólico, efeito sobre o real somático e psíquico. Trataria-se de uma recolocação em forma psíquica agindo sobre o soma, graças aos sistemas fornecidos pelo social (mitos, códigos, rituais, configurações instituídas), servindo de grade intelectual e afetiva, reinvestindo o psíquico e o somático para transformá-los.

O efeito que se obtém é o alívio e a cura. O sentido reapareceu. Pode ser por meio de um insight repentino ou de uma compreensão difusa, mas que permita ao doente reinvestir. "Eu sei o que eu tenho, eu vou poder agir. Eu sei o que quer dizer, de onde vem, eu vou sair dessa, eu farei o necessário para..."

O tratamento consiste em recolocar o sofrimento em uma cadeia discursiva associativa ou lógica na qual se pode inserir novamente a experiência louca, a representação aberrante.

Os recursos ou alternativas

Aquele que sofre se volta primeiro para os recursos oferecidos e permitidos em seu meio cultural e em função de seu status socioeconômico: tratamentos, terapias mais bem-conceituadas e mais acessíveis em seu meio.

O recurso apresenta-se em dois registros: primeiro fazer diminuir ou eliminar a dor, abafando, de modo imediato, apagando o sinal, a representação aberrante, segundo entender o sinal e rein-tegrá-lo num sistema que permitirá deslocá-lo, transformá-lo, domá-lo, recuperar o domínio sobre o que, até então, é aberrante.

Esses recursos são, por exemplo, no caso que estudamos (Michel Robert [1998], homem com curso superior, angustiado por um golpe desconhecido que o atinge e o limita progressivamente, ver, nesse mesmo fascículo, o artigo de F. Giust-Desprairies): a medicina especializada, e também as equipes médicas nos hospitais que inscrevem novamente o sofrimento psíquico (angústia face à estranheza de golpes que atingem o físico e face ao desconhecido do destino) num corpo médico e científico.

A busca de um diagnóstico e de um prognóstico, e depois, de um tratamento com médicos especialistas, deve ser entendida como a tentativa de reinscrever o sofrimento em uma seqüência que forneça uma dinâmica operatória do sentido (direção da ação, objetivos). Mas isso, sem, no entanto, atribuir ao sofrimento um outro sentido que puramente mecanicista, quase material e prático.

Paralelamente, o paciente, que já se interessou pelo campo teórico e clínico da psicologia e que mesmo tendo em anos anteriores empreendido uma psicanálise, vai se voltar para psicoterapias de diversas tendências para inscrever seu sofrimento e os sintomas a ele relacionados em um contexto (contexto de representação e de idéias) que lhe dê um sentido mecanicista, tal causa tal efeito, mas um sentido remetendo a intencionalidades ocultas. À inteligibilidade puramente racional acrescenta-se a possibilidade de juízo de valor, a questão da escolha ou da liberdade e responsabilidade do sujeito que, em um determinado momento, não saberia, não teria podido, não iria querer assumir uma coerência interna e teria deixado escapar o significante, tornando-se louco, estourando em sofrimento e sintoma, desancorado da continuidade e realidade psíquica e mesmo física.

As diferentes formas de psicoterapia, que os sujeitos que sofrem procuram, são do mesmo modo contextos significantes, teorizações mais ou menos estruturadas, mas pretendendo ligar os registros que justamente o cliente clivou, conscientes, inconscientes, corporal, espiritual. A retomada de responsabilidade, a liberdade, consiste em escolher, assumir esses registros em suas contradições e nos julgamentos que o sujeito poderia ter a respeito. Trazendo-os em seu campo de inteligibilidade, e de escolha, o sujeito poderá maneja-los, elaborar e operar transformações, correspondendo a mudanças do modo de sofrimento. Trata-se de um outro nível de sentido, que eu diria intencional, investido afetivamente, cujo sujeito atribui o enunciado a si mesmo ("Eu sou isto, eu quis ou não quis isto").

As psicoterapias de inspiração psicanalítica e derivadas da psicanálise supõem, em geral, que o sujeito é a chave do sentido, o fato, ou pode recuperá-lo em seu nome próprio.

Mais tarde, nosso paciente buscará outros recursos, práticas em princípio não congruentes com o seu meio, mas solicitadas em desespero de causa ("nunca se sabe"), correspondendo, portanto, a sistemas tradicionais até mesmo arcaicos de representações, mais ou menos abandonados, ou que ressurgiram, ou que sobreviveram em meio a uma certa clandestinidade.

Mesmo sendo necessário distinguir varias categorias, essas práticas têm primeiro por princípio comum atar de novo o sentido, não ao sujeito, mas a entidades sobrenaturais, esotéricas, místicas cujo acesso necessita de uma iniciação e a mediação de iniciados.

O pressuposto comum é que o paciente interferiu de modo contraditório ou transgrediu, ou ainda foi capturado em encadeamentos significantes que ele ignorou, voluntariamente ou não, ou que o transcendem.

As práticas vão revelar-lhe, mais ou menos claramente, e ele poderá, se não agir, pelo menos, colocar-se de acordo, restituir-se em relação a suas linhas de força. Uma adequação encontrada restabelece o equilíbrio, a harmonia e procura acalmar, até mesmo eliminar, o sofrimento.

Existem diversas categorias por detrás dessa concepção comum:

o A categoria que remete às ciências paralelas. As entidades são identificadas como energias, fluxo vital, por meio dos quais o sujeito seria colocado fora do circuito. Práticas remetendo ao espírito e ao corpo trazem o indivíduo para o circuito harmonioso. Entende-se o sentido como uma dinâmica vital na qual o sujeito se recoloca. Mesmo que ele tenha um sistema de representações articulado em torno das energias, o sentido não remete a um sujeito que enuncia. Bioenergética, yoga, práticas chinesas...

o A escorregada em direção ao paranormal. Uma outra categoria é representada pelas vidências, baseadas na cartomancia, numerologia, astrologia, quiromancia... As entidades são de ordem diversa (números, constelações...), mas têm inscrito e determinam em uma ordem, a priori, oculta o destino do sujeito. Os videntes ou iniciados podem esclarecer-lhe, "ler" o que, dele, está "escrito", com, às vezes, algumas possibilidades de manobra e espaço de movimentação quanto às escolhas, oferecendo sempre, pelo menos, o benefício se saber. No mais freqüente, esse recurso tem eficácia, tem algum efeito, deixando entrever uma possibilidade de saída em condições de condutas propiciadoras. Encontramos até a idéia de destino, prescrição sobrenatural, de registro parafísico ou paranormal, que guardaria o código e o texto no qual se pode entender o sentido do sofrimento.

o Uma outra categoria (mas chamemos a atenção para o fato de que as categorias não são estanques, existem influências e sobreposições constantes entre umas e outras): o religioso, a busca das religiões que oferecem um sentido espiritual. Nesse caso, as entidades são espíritos, divindades (anjos, santos, deuses, demônios...) dotados de vontade própria e de poder, que decidem, intervêm, julgam (significantes morais) ao longo da vida do sujeito (castigam, protegem, favorecem, amaldiçoam...). O sofrimento, entendido como infligido por essas entidades (avisos, provas ou castigos) pode ser atenuado, transformado em algo de bom ou desaparecer, com a condição do sujeito seguir a vontade dessas entidades. Ele tem a tarefa de conhecê-las. A responsabilidade é de certa forma partilhada. O paciente errou ao ignorar o código divino ou espiritual. As entidades podem decidir quanto a reintegrar o paciente de acordo com os bons preceitos do texto místico. O sujeito, por meio de rituais reparadores e propiciadores, deixa-se guiar para interiorizar (colocar-se no sentido de) o caminho diretor (a vontade) divino. Ele coloca-se de acordo com o sentido sagrado que os padres sabem decodificar. Nos casos estudados, o sujeito recorre, sucessivamente e de modo freqüentemente concomitante, a todas as categorias evocadas, com sucessos diversos, mas nunca definitivos. No final, ele abandona sua busca, descobrindo que a infelicidade e o sofrimento que ele produz pode não ter sentido, pode ser apenas o resultado do acaso e da necessidade. Essa lucidez estóica permitiu-lhe afrontar seu sofrimento e escolher viver ou morrer, considerando, ao contrário, as mínimas oportunidades de prazer que lhe sobram. De algum modo, ele entendeu que de nada serviu tentar buscar o sentido em outro lugar, até mesmo em seu inconsciente. Ele entendeu que apenas ele pode construir esse sentido, como uma espécie de filosofia pessoal.

o Com o mundo moderno, uma outra categoria surgiu, pelo menos como estratégia, e poderíamos chamá-la política ou ideológica. Haveria um sentido da história que seria revelado pelos historiadores, filósofos, políticos, que deveria ser entendido como uma evolução progressiva, na qual os membros de uma sociedade estão inseridos pela participação coletiva em movimentos sociais (o mais comumente revolucionários). O engajamento no sentido histórico oferece literalmente sentido à vida do sujeito e o alivia, de certo modo, de seus males individuais.

o A revolução se inscreve na perspectiva de uma abolição do sofrimento social. É certo, que a política não é uma proposta de tratamento de sofrimentos individuais. Trata-se de um comprometimento mais do que um recurso, mas os efeitos são freqüentemente inegavelmente curativos (maio de 68 esvaziou os divãs dos psicanalistas). O discurso e a ação política desviam as preocupações pessoais.

As políticas institucionais

Basaglia, na Itália, propôs uma desinstitucionalização do sofrimento mental, de inspiração marxista, que pretendia pensar a loucura como uma alienação social. Esse pensamento esteve na origem do fechamento dos hospitais psiquiátricos. O doente reinserido e acompanhado no circuito das trocas e vínculos sociais deveria retomar o curso da vida de forma menos prejudicial.

A antipsiquiatria pretendeu, por sua vez, ver no sofrimento mental os efeitos de separações relacionais (double bind), a alienação microssocial servindo de modelo para dar sentido ao sofrimento, ou melhor, para denunciar a ausência de sentido imposta ao sujeito.

Deleuze e Guattari tornaram célebre uma tese afim com seu Anti-Édipo. Revisitando Lacan com a ajuda de Marx, sustentaram que, em particular, a esquizofrenia deveria ser entendida como uma revolta contra a "Edipanização", repressão do desejo, homóloga, no plano psíquico, à repressão capitalista no plano social, revolta, portanto, a sustentar, se não favorecer. Essa proposição procura dar sentido ao sofrimento e permitir sua superação por meio da suspensão de uma repressão na qual o sujeito tornar-se-ia o objeto.

À intersecção do político e da psicanálise, podemos nos ater a propostas da psicoterapia institucional que ganhou força na França depois da guerra, ainda aqui, sob uma dupla influência lacaniana e marxista. O sofrimento, em forma de psicose, seria o efeito de uma exclusão da ordem simbólica, da prática da linguagem entendida como capacidade de articular os significantes entre si e com os outros. A instituição como arranjo possível de elementos estruturantes (locais, momentos, funções, instrumentos...) é um equivalente da linguagem. Ela deve ser colocada à disposição daquele que sofre para que ele a use, por meio de seu "balbucio institucional", e acabe falando o que permanece escondido, não aproveitado, em si mesmo, por falta de acesso, e que afeta a ponto de levar ao sofrimento e à loucura. Trata-se menos de um sentido antecipado do que de uma estrutura de linguagem aberta por meio da qual o doente é estimulado, levado a reconstruir uma fala, significar-se.

Não há escala de valores nessas categorias e, mais uma vez, devemos entender que elas estão freqüentemente sobrepostas sem que as fronteiras entre elas sejam bem nítidas.

Retomando a eficácia: do simbólico à relação

O que pretendi sublinhar até aqui, é que o sofrimento é uma falta de sentido, uma ruptura do sentido que o sujeito tende a criar para certificar-se de uma coerência de identidade. O sofrimento aparece como efeito de uma ruptura na cadeia significante, ou perda de um significante. Os recursos e tratamentos consistem em reencontrar ou reatar uma cadeia significante (sentido).

Vimos que existem múltiplas formas de permitir, propor ou impor sentidos. Esse último é procurado aqui ou acolá (no prórpio inconsciente do sujeito, nos astros, nos espíritos, na revolução, por meio de instituições ou fora delas). A cultura, os costumes, a sociedade, as tendências individuais favorecem uma tal prática em vez de outra, em um dado momento. Essas práticas diferenciam-se essencialmente por sua capacidade de enunciação concedida ao sujeito (de criar seu sentido ou de recebê-lo de outro lugar).

De acordo com as culturas, os momentos da história, os meios, alguns recursos são admitidos, outros não. Alguns são vergonhosos e clandestinos, outros acompanham a moda e os costumes. O sentido pode ser imposto, construído, emprestado, sugerido... Isso já nos remeteu ao texto de Lévi-Strauss a respeito da eficácia simbólica. O que falta a essa proposta, segundo a qual as estruturas teriam ressonância uma sobre as outras nos diferentes estágios do viver, é uma eficácia imaginária, as capacidades de transmissões metafóricas. A estrutura não é suficiente, são necessários efeitos no plano das representações, imagens que comunicam, que substituem as cargas emocionais e afetivas. Não se trata de um significado apenas estrutural ou simbólico ou mesmo imaginário, mas igualmente de um investimento emocional e afetivo.

O sofrimento também é um excesso emocional que acompanha uma interrupção do sentido ou uma representação difícil de se entender. Qualquer que seja o recurso a que recorremos ou a que nos direcionamos, ele tem a função de rearticular.

A reinscrição em um contexto significativo permite assimilar novamente o sofrimento e mesmo destituí-lo, devolvendo os investimentos que ele drenou ao serviço de uma dinâmica viva e coerente. O sujeito recupera-se mais ou menos de acordo com o grau de interiorização e adesão. A eficácia depende do grau de adesão:

o impacto emocional (fascínio, hipnose, transparência...) que desloca o investimento psico-afetivo;

o compreensão, inteligência já relacionada ao efeito da reestruturação simbólica e imaginária.

Certamente, o sofrimento pode sempre ser parcialmente reduzido por uma modificação do suporte neurofisiológico; é aqui que a medicina pura opera. Mas, o homem é um ser de linguagem, palavra e desejo estão estreitamente ligados, palavra do desejo, desejo de enunciar, o sofrimento também é sempre a impossibilidade disso.

O impacto emocional é fortemente garantido pela relação transferência percebida como relação de amor, reencontro com alguém de benevolente, compreensivo, disponível que se oferece numa relação dual. Essa pessoa permite que se instaure uma comunicação; isso quer dizer que, graças a essa comunicação, o paciente se vê envolvido novamente em uma relação de troca, ele pode perceber-se entendido, e ele mesmo, recuperado, tendo reinventado uma fala. O amor aqui é o representante ou significante, elemento central que recoloca o paciente em um vínculo, que o retira da dificuldade de compreensão e do isolamento (o sofrimento é também um estado de abandono e de solidão moral completa).

O sujeito a que me referi recorreu sucessivamente ou simultaneamente a todas as categorias evocadas mais acima, ele encontrou aptidões, crenças, acolhimentos, sentiu afetos recebidos dos alívios, contudo, no final da caminhada, ele entendeu que o sentido não estava previamente escrito em algum lugar. Aceitando com lucidez que o homem está sujeito ao acaso e à necessidade, ele também entendeu que o sentido não pode ser descoberto, mas construído por meio do esforço renovado de juntar os elementos heterogêneos da vida. Nisso, ele encontra felicidade suficiente, malgrado as condições de sua doença que se tornaram extremas.

Qualquer que seja o recurso, parece que a simples esperança que o sujeito guarda de obter por aí o meio de reordenar a confusão interna, é suficiente para, em pouco tempo trazer alívio. Isso está bem próximo dos efeitos de crenças ou ainda do que chamamos de efeito placebo. Dito de outra forma, uma organização mental, simbólica e imaginária pode sempre reparar essa desorganização emocional e intelectual que chamamos de sofrimento: o sentido é retomado, seja ele proposto pelo meio ou elaborado com um esforço pessoal. É necessário ainda uma carga emocional que a relação ou a intensidade da expectativa podem suscitar. Infelizmente, a porte fica aberta a todos os charlatanismos e dependências que possam, eventualmente, decorrer. Seria fácil, ou mesmo possível, aceitar a idéia de que, qualquer que seja nossa exigência de encontrar um sentindo, trata-se sempre de uma construção, construção que nos traz à vida, que exprime nosso esforço de viver, "o trabalho de existir" (Pagès, 1998), mas que não nos curará do sofrimento da morte, da ausência de sentido que o homem apenas transpõe por meio da lucidez.

 

Referências

Arendt, H. (1963). Eichmann à Jerusalém. Rapport sur la banalité du mal. Paris: Gallimard.        [ Links ]

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Lévy, P. (1958). Si c´est un homme. Paris: Julliard.        [ Links ]

Pagès, M. (1996). Le travail d´exister. Paris: Desclée de Brouwer.        [ Links ]

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Robert, M. (1998) ... et les bras m´en sont tombés... Barret-le Bas, France: Le souffle d´or.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
j.barus@wanadoo.fr
Tradução de artigo publicado no Bulletin de Psychologie, volume 54, número 2, de março/abril de 2001.

Encaminhado em 30/06/03
Aceito em 08/07/03