SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.4 número1Aplicação do teste verbal Zulliger (forma individual) em pessoas surdas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psic: revista da Vetor Editora

versão impressa ISSN 1676-7314

Psic v.4 n.1 São Paulo jun. 2003

 

ARTIGOS

 

Aspectos fenomenológicos do psicodiagnóstico1

 

 

Nemésio Dario Vieira de Almeida

DETRAN-PE

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A presente resenha trata do livro: O ser da compreensão: fenomenologia da situação de psicodiagnóstico1, escrito pela professora Monique Rose-Aimée Augras. A autora, sem dúvida alguma, apresenta uma obra de excelente qualidade, levando em consideração a abrangência do tema e o leitor a que se destina. Os iniciantes e os já iniciados na prática do psicodiagnóstico encontrarão uma obra de organização clara e consistente apresentada em sete capítulos distintos (Por que não a fenomenologia?, A situação, O tempo, O espaço, O outro, A fala, A obra), permitindo-lhes compreender e analisar as propostas da autora.

Palavras-chave: Fenomenologia, Psicodiagnóstico, Psicologia clínica.


ABSTRACT

The present review deals with the book; O ser da compreensão: fenomenologia da situação de psicodiagnóstico (The being of comprehension: phenomenology of psycho-diagnosis situation), by Monique Rose-Aimée Augras. The authour presents a work of excellent quality taking into consideration the comprehensiness of the subject na the reader. The beginners and the already initiated in the practice of psychodiagnosis will find a clear and consistent work divided in seven chapter, allowing the reader to aunderstand and analyze the proposal of the author.

Keywords: Phenomenology, Psychodiagnosis, Clinical psychology.


 

 

A obra O ser da compreensão: fenomenologia da situação de psicoagnóstico da dra. Monique Rose-Aimée Augras professora e pesquisadora da PUC-RJ, apresenta uma reformulação do enfoque tradicional da prática do psicodiagnóstico, a partir de sua trajetória profissional como pesquisadora do extinto Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP) da Fundação Getúlio Vargas. Atualmente é professora titular do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A pesquisadora Augras em sua obra procura abandonar a visão psicanalítica tradicional que se tem do processo do psicodiagnóstico, apoiando-se na antropologia de concepção fenomenológica existencial, na qual mostra que angústia e conflitos são situações bem-vindas à dialética do existir e que se processam numa constante superação das tensões entre sujeito e objeto, homem e mundo, morte e liberdade.

Dessa forma procura abordar grandes temas da existência humana como A Situação, O Tempo, O Espaço, O Outro, A Fala e A Obra, procurando deduzir modalidades de compreensão dessas diversas vivências, ou seja, tratando de dirigir um novo olhar sobre os diversos vetores que compõem a situação de diagnóstico numa perspectiva fenomenológica.

Logo no início do seu livro Augras nos sugere um questionamento por demais pertinente: "Por que não a fenomenologia?". Para nos chamar atenção a respeito do vocabulário da psicologia clínica, e de grande parte da psicologia ser tomada empresta da psicanálise, "não haverá outro modo de formular os problemas individuais além deste?", ou seja, além dos conceitos propostos pela psicanálise. Ao mesmo tempo ressalta que o problema da distinção entre normal e patológico, "está no âmago da própria definição da psicologia clínica. Pode-se dizer sem risco de exagero que atualmente [em 1976] o conceito de normal está totalmente fora de moda" (augras, 2002, p.10).

Diante dessa relação doença mental e o conceito de normal é de suma importância reconceituar o que vem a ser saúde e doença:

uma definição em termos puramente estatísticos, situando o normal na faixa média, deve ser afastado, por desprezar os aspectos qualitativos do comportamento e prestar-se à caricatura do normal perqueno-burguês. A normalidade deverá ser descrita, antes como a capacidade adaptativa do indivíduo, frente às diversas situações de sua vida. Isto supõe um posicionamento filosófico, que estabeleça as dimensões do viver, e leve em conta o jogo dialético da vida (Augras, 2002, p.11).

Numa visão existencial a vida procede dialeticamente, ou seja,

"ordem e desordem" são processos contínuos no desenvolver do homem e do mundo "nesse caso, a saúde do indivíduo será avaliada em sua habilidade para não só manter o equilíbrio, mas também superar a crise do ambiente, utilizando então sua capacidade criadora para transformar esse meio inadequado em mundo satisfatório. Vê-se que essa definição da saúde como processo de criação constante do mundo e de si integra também o conceito de doença: saúde e doença não representam opostos são etapas de um mesmo processo (Augras, 2002, p. 12).

E ainda,

o normal é aquele que supera os conflitos, criando-se dentro de sua liberdade, atendendo igualmente às coações da realidade. Patológico é o momento em que o indivíduo permanece preso à mesma estrutura, sem mudança e sem criação. Nessa perspectiva, estabelecer o diagnóstico é identificar em que ponto desse processo se encontra o indivíduo, destacar as eventuais áreas de parada ou de desordem, e avaliar as suas possibilidade de expansão e de criação [...]. O diagnóstico procurará dizer em que ponto de sua existência o indivíduo se encontrava e que feixe de significados ele constrói em si e no mundo. Desta maneira, para citar mais uma vez Goldstein, "cada homem será a medida de sua própria normalidade" (Augras, 2002, p. 12).

No transcorrer de sua obra Augras propõe que a atuação do psicólogo clínico se dê

mediante a explicitação filosófica da situação existencial, considerando que o momento do exame, ou melhor, do encontro entre o psicólogo e o cliente, é a atualização de uma situação geral de encontro entre o eu e outro. Os parâmetros de compreensão deste encontro serão procurados dentro da filosofia existencialista, que se propõe examinar o homem em sua situação (Augras, 2002, p. 13).

Dessa forma ressaltando que

deverão ser repelidos quaisquer procedimentos que visem interpretar o comportamento do cliente, apoiando-se num sistema elaborado, a priori, antes e fora do acontecimento presente. Da mesma maneira que cada indivíduo for à medida de sua normalidade, em cada situação, o significado será buscado dentro daquilo que for manifestado. Nesse ponto de vista, a "objetividade" dessa apreensão, finalmente configurada em diagnóstico, apoiar-se-á em critérios de coerência, deduzidos daquilo que se ofereceu da história do indivíduo e das vivências presentes (Augras, 2002, p. 13).

Logo em seguida a nomeada autora apresenta uma proposta de colocação da psicologia clínica e, especialmente da situação de diagnóstico, na perspectiva da fenomenologia, isto é, o método fenomenológico

parece atender exatamente a nossos requisitos que postulam, de um lado, o reconhecimento da intersubjetividade, e do outro, os meios de elaborar uma compreensão objetiva. Nas palavras de Merleau-Ponty "a mais importante aquisição da fenomenologia é, sem dúvida, de ter associado o extremo subjetivismo ao extremo objetivismo em seu conceito do mundo e da racionalidade [...]. O mundo fenomenológico não é o ser puro, mas sim o significado que transparece na interseção de minhas experiências e das experiências alheias, pela engrenagem de umas com as outras, e portanto inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que chegam à unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência alheia na minha" (Augras, 2002, p. 15).

Em A Situação ela observa que os três aspectos da realidade humana, natureza, história e existência

podem ser deduzidos como etapas do processo de formação do homem: animal, socius, sapiens. O terceiro termo, porém é que carreia a especificidade da existência humana, atribuindo significação à natureza e à história e, por assim dizer, transfigurando-as. Desde já, a existência se propõe como um feixe intricado de interações e de tensões. Suporte da natureza e autor da história, o homem fundamenta-se na consciência de si e do mundo (Augras, 2002, pp. 20-21).

Nesse sentido, o conflito não deve ser concebido como algo ruim, nocivo

expressa, antes a luta necessária entre tendências contrárias que, sucessivamente opostas e sintetizadas, compõe o próprio processo da vida. Nos termos da psicologia individual, a crença tão difundida, segundo a qual conflito seria sinônimo de desajustamento, toma feições de ideologia superficial e ingênua. Advindo das tensões, o conflito é gerador de equilíbrio. Na dialética do sujeito e do objeto, a cisão é fonte do impulso para o conhecimento e motor para a construção mútua do homem e do mundo. Nesse sentido, a realidade é conflito, intrinsecamente. [...] (Augras, 2002, pp. 20-21).

Ou seja, "reconhecendo-se na in-tencionalidade da sua consciência, a existência humana emerge na cisão. Consciência de si e consciência do mundo são dois enfoques do mesmo fenômeno. A realidade humana exprime-se na sua dimensão de ser no mundo".

Para a dimensão do diagnóstico, objeto presente da preocupação de Augras, "a fala do cliente, nas entrevistas e nas provas, é a manifestação de sua realidade, e como tal será investigada. Através dela é que serão trazidos a lume as suas vivências: a sua história (o tempo), o seu corpo (o espaço), a sua estranheza (o outro), o seu fazer-se (a obra)" (Augras, 2002, p. 25).

Sobre O Tempo destaca que têm ocorrido equívocos em psicologia em relação aos estudos sobre o tempo:

questiona-se a consciência do tempo vivido, duração, memória, orientação no tempo social. Situa-se o homem em relação à sua historicidade. Mas, em todo caso, o tempo é concebido como algo exterior ao homem, que nele atua, que ele pode tentar manipular em proveito próprio, mas que, mais cedo ou mais tarde, afirma-se-á como o seu Senhor (Augras, 2002, p. 26).

E ainda, com esse enfoque o tempo não é algo exterior ao homem,

o tempo é extensão e criação da realidade humana. É paradoxalmente condição de sua existência e garantia da sua impermanência. Porque o homem cria o tempo, mas não o determina. Falar do tempo é descrever toda a insegurança ontológica do homem. Vê-se o quanto a psicologia tradicional do tempo, limitada a experimentos sobre a percepção do mesmo ou perdida em especulações acerca da oposição entre vivência individual e duração "objetiva", deixa de lado uma problemática mais funda, que a fenomenologia trouxe à luz: o tempo como construção. Conforme Heidegger, a explicitação autêntica do tempo situa-o "como horizonte da compreensão do ser, a partir da temporalidade como componente do ser" (Augras, 2002, p. 27).

Já em O Outro, na relação de diagnóstico numa perspectiva fenomenológica existencial "o mundo da coexistência não se estrutura em termos de oposição - ou de complementaridade - entre um sujeito e os diversos os objetos que o rodeiam" (Augras, 2002, pp. 55-56). Ao se interrogar a respeito da compreensão de si, Augras sugere que a situação do ser no mundo é caracterizada pela "estranheza", isto é,

nesse sentido, a compreensão do outro não descansa apenas na compreensão de si, mas se justifica a partir da situação do homem como desconhecido de si para si mesmo. Ou seja: a coexistência é também co-estranheza. O outro fornece um modelo para a construção da imagem de si. Por ser outro, contudo ele também revela que a imagem de si comporta uma parte igual de alteridade (Augras, 2002, p. 56).

Ao se referir sobre A Fala, ainda numa perspectiva fenomenológica da situação do psicodiagnóstico, a autora nos explica que

tanto a necessidade de colocar-se perante o outro, de integrá-lo, de superar a antinomia identidade-alteridade, quanto a conscientização do sentimento de estranheza, levam ao afã de compreender, explicitar, formular a situação do ser no mundo [...]. Compreender o mundo é interpreta-lo. Entendê-lo é elaborar um conjunto de signos, de símbolos, que lhe dêem significação humana, poder-se-ia dizer até vocação humana, dimensão humana [...]. A função simbólica configura a própria dimensão da integração homem-mundo. A fala, o discurso, enuncia a explicitação, formula a revelação da realidade humana que postula, para existir, a assunção da sua realidade. É aquilo que Aristóteles chamava o discurso que revela aquilo de que se fala (Augras, 2002, pp.75-76).

Em seu livro, a professora Monique Rose-Aimée Augras, embasada em experiências e pesquisas por ela realizadas, vem preencher uma das lacunas nos estudos do psicodiagnóstico, suprindo o estudante, o técnico, o especialista com uma obra séria, profunda, a partir da qual é possível desenvolver uma prática crítica mais adequada ao psicodiagnóstico, no dizer da autora "apoiar no cliente a procura da autenticidade requer do psicólogo que saiba igualmente residir dentro da própria verdade. Tal como a hermenêutica dos mitos, e a contemplação estética, a obra aberta da compreensão do existir humano necessita ser participação, transmutação e exercício da liberdade" (Augras, 2002, p. 96).

 

 

Endereço para correspondência:
nemesiodario@hotmail.com

Encaminhado em 13/03/03
Aceito em 23/06/03

 

1 Augras, M.R.A. (2002). O ser da compreensão: fenomenologia da situação de psicodiagnóstico. (10 ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.