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Psic: revista da Vetor Editora

Print version ISSN 1676-7314

Psic vol.5 no.2 São Paulo Dec. 2004

 

ARTIGOS

 

Discussão sobre o efeito positivo da equoterapia em crianças cegas

 

Discussing the positive effect of Equinotherapy on blind children

 

 

Carlos Henrique Silva 1; Sonia Grubits 2

Universidade Católica Dom Bosco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A equoterapia é um recurso terapêutico que utiliza o cavalo como um instrumento cinesioterapêutico para proporcionar uma melhora nas áreas motoras, cognitivas e emocionais de indivíduos portadores de necessidades especiais. Uma pesquisa foi conduzida com cinco crianças com diagnóstico de cegueira de acordo com o conceito da Organização Mundial de Saúde (OMS), na faixa etária de 5 a 11 anos de idade. O processo mostrou que sua aplicação, quando realizada com técnicas adequadas e por equipe capacitada, proporciona melhoras nos aspectos motores – relacionados à marcha e ao equilíbrio, aspectos cognitivos –, na aprendizagem pela estimulação dos outros sentidos e nos aspectos emocionais – relações sociais e sentimento de segurança.

Palavras-chave: Equoterapia, Recurso terapêutico, Cegueira, Aspectos motores, cognitivos e emocionais.


ABSTRACT

Equinotherapy is a therapeutic resource that uses the horse as a kinesthetic-therapeutic instrument to provide an improvement in the motor, cognitive and emotional areas of subjects with special needs. A research was conducted with five blind children, diagnosed according to the blindness concept of the World Health Organization (WHO), with ages varying from 5 to 11. The process showed that its application, when carried out with proper techniques and with a capable team, provides improvements in the motor aspects – related to walk and equilibrium, in the cognitive aspects –, learning by the stimulation of the others senses and also in the emotional social aspects – relationships and the security feeling

Keywords: Equinotherapy, Therapeutic resource, Blindness, Motor, cognitive and emotional social aspects.


 

 

Introdução

O atendimento às pessoas portadoras de necessidades especiais em equoterapia é uma das atividades que desenvolvemos por vários anos. Durante os primeiros anos, e mesmo antes de pertencer à equipe multidisciplinar do Programa de Equoterapia da Universidade Católica Dom Bosco (PROEQUO/UCDB), em Campo Grande, MS, atendíamos crianças com seqüelas de Paralisia Cerebral (PC), com autismo, com deficiência mental, com Síndrome de Down, pois são as patologias que apresentam um maior número de pesquisas na área e com publicações científicas a respeito.

Havia uma demanda de atendimentos de cegos e surdos e não encontrávamos publicações referentes ao atendimento, em equoterapia, desses portadores de necessidades especiais. A perda sensorial causa grande impacto no emocional do indivíduo, além de influenciar seu desenvolvimento cognitivo e motor. Com os anos de experiência no atendimento das outras necessidades especiais, e tendo comprovado os benefícios que esse recurso terapêutico proporciona a essas pessoas, procuramos aprofundar nossos conhecimentos sobre as implicações da cegueira, quer adquirida ou congênita, para os indivíduos e suas famílias.

Os resultados de nossa busca do conhecimento demonstraram que a cegueira afeta o processo perceptivo do individuo, em conseqüência suas relações com o ambiente se dão de forma peculiar, refletindo na estruturação cognitiva e na organização e constituição do sujeito psicológico (Amiralian, 1977). Percebemos, então, que essa limitação sensorial provoca prejuízos no ajustamento, lentidão ou eventual atraso no desenvolvimento biopsicossocial.

A equoterapia busca proporcionar aos praticantes um melhor desenvolvimento biopsicossocial, atuando por meio do movimento tridimensional do dorso do cavalo, nos aspectos motores, na relação sujeito–cavalo–terapeuta, em que o animal, funcionando como elemento de ligação, facilita ao terapeuta abordar as questões psicológicas e cognitivas. Na relação praticante–equipe–outros praticantes se processam o desenvolvimento das relações sociais e a inserção do praticante em um novo ambiente.

Desenvolvemos uma pesquisa cuja hipótese foi “a equoterapia proporciona aos cegos uma melhora nos aspectos motores, cognitivos, afetivos e de relacionamento”, pois nesses aspectos, segundo nossos estudos, apresentavam-se, muitas vezes, necessidades especiais e/ou atrasos se comparados ao desenvolvimento de um individuo com visão.

Ao desenvolver nosso projeto, deparamo-nos com uma questão: como deveríamos realizar nossa intervenção se o nosso praticante não pode ver? Mais uma vez, além dos estudos sobre estimulação de cegos, passamos a freqüentar o Instituto Sulmatogrossense para Cegos, para observar como ocorria o trabalho de estimulação na prática e qual o comportamento de nossos participantes. Essas observações nos levaram a desenvolver estratégias em equoterapia para o atendimento de cegos, já que em extensas buscas bibliográficas, não encontramos literatura a respeito e a cegueira requer uma abordagem bastante diferente das outras necessidades especiais.

Desenvolvemos investigação, durante três anos, com um grupo de praticantes cegos congênitos e outro com cegueira adquirida, realizando um estudo pormenorizado de cada caso, ao mesmo tempo em que adaptávamos a técnica de atendimento às dificuldades específicas de referidos grupos.

Participaram 5 (cinco) crianças com diagnóstico de cegueira de acordo com o conceito da Organização Mundial de Saúde (OMS), na faixa etária de 5 a 11 anos de idade, selecionadas entre um grupo de 10 (dez), que foi encaminhado para a equoterapia pelo Instituto Sul Matogrossense para Cegos Florivaldo Vargas, sendo quatro do sexo masculino e uma do sexo feminino.

O encaminhamento foi feito pelo instituto, sem a intervenção do pesquisador na escolha dos pacientes. O grupo era heterogêneo na idade, no histórico de vida, na etiologia das necessidades especiais, no desenvolvimento motor e cognitivo, tendo em comum apenas a cegueira congênita. O estudo que realizamos foi, portanto, um estudo exploratório, no qual analisamos as influências da equoterapia para o grupo em questão.

Foi utilizada uma Ficha de Avaliação Física padronizada e utilizada para avaliação de todos os praticantes pelo PROEQUO/UCDB. A avaliação física foi realizada por um fisioterapeuta da equipe do referido programa, auxiliado por acadêmicos estagiários do último ano do Curso de Fisioterapia e Terapia Ocupacional.

Possuíamos também uma ficha de avaliação psicológica utilizada para avaliar aspectos psicológicos dos participantes, também padronizada e utilizada pelo PROEQUO/UCDB. Essa ficha foi preenchida pela Psicóloga do ISMAC, que procedeu a avaliação e encaminhou as fichas ao Programa, procedimento que é utilizado para todos que participam do PROEQUO e são vinculados a uma Instituição.

Finalmente utilizamos uma ficha diária, elaborada pelos pesquisadores para o registro das observações diárias das sessões de equoterapia, em que todas as atividades são anotadas, bem como equipamentos utilizados, animal montado, equipe de trabalho, comportamentos emitidos pelo praticante, etc. Essa ficha é atualmente utilizada pelo PROEQUO/UCDB, para o registro individual de todas as sessões. As Fichas diárias eram preenchidas, logo após o término da sessão, pela equipe que realizava o atendimento do praticante, sob a supervisão dos pesquisadores.

Finalmente de acordo com Freire (1999, p. 38):

Levando-se em conta a psicologia evolutiva e diferenças individuais no estudo da personalidade, torna-se necessário formular para cada deficiente, um programa personalizado e que leve em consideração as exigências colocadas para aquele indivíduo, naquela determinada fase de seu processo evolutivo. Tais indicações podem derivar de um balanço global e funcional das aptidões relacionais, cognitivas, motoras e mesmo em termos de adaptação.

Podemos então dizer que a equoterapia é um recurso terapêutico que proporciona, aos indivíduos com cegueira congênita ou adquirida, benefícios que os conduzem a uma melhor qualidade de vida.

 

Desenvolvimento

Equoterapia

Um dos conceitos que define esse recurso terapêutico se refere a ele como um conjunto de técnicas reeducativas que atuam para superar danos sensoriais, cognitivos e comportamentais e que desenvolvem atividades lúdico-esportivas utilizando o cavalo” (Cittério, 1999).

A equoterapia é um recurso terapêutico que pode ser aplicado as áreas de Saúde (portadores de necessidades especiais físicas, sensoriais e/ou mentais); Educação (indivíduos com necessidades educativas especiais) e Social (indivíduos com distúrbios evolutivos e/ou comportamentais).

Os efeitos terapêuticos que podem ser alcançados com a equoterapia são de quatro ordens (Garrigue, 1999):

melhoramento da relação: considerando os aspectos da comunicação, do autocontrole, da autoconfiança, da vigilância da relação, da atenção e do tempo de atenção;

• 2 melhoramento da psicomotricidade: nos aspectos do tônus, da mobilidade das articulações da coluna e da bacia, do equilíbrio e da postura do tronco ereto, da obtenção da lateralidade, da percepção do esquema corporal, da coordenação e dissociação de movimentos, da precisão de gestos e integração do gesto para compreensão de uma ordem recebida ou por imitação;

• 3 melhoramento de natureza técnica: facilitando as diversas aprendizagens referentes aos cuidados com os cavalos e o aprendizado das técnicas de equitação;

• 4 melhoramento da socialização: facilitando a integração de indivíduos com danos cognitivos ou corporais com os demais praticantes e com a equipe multidisciplinar.

A equoterapia exige a participação do corpo inteiro do praticante, contribuindo assim para o seu desenvolvimento global. Quando o cavalo se desloca ao passo, ocorre o movimento tridimensional do seu dorso; portanto, há deslocamentos segundo os três eixos conhecidos (x, y, z), ou seja, para cima e para baixo, para frente e para trás, para um lado e para outro. Tal movimento é transmitido ao cavaleiro pelo contato de seu corpo com o do animal, gerando movimentos mais complexos de rotação e translação.

 

 

O passo do cavalo, que determina uma ação tridimensional de seu dorso e a repetição desses movimentos de 1 a 1,5 por segundo, proporciona entre 1.800 a 2.250 ajustes tônicos em meia hora, que é o tempo médio de duração de uma sessão de equoterapia. Esse ajuste tônico ritmado resulta em uma mobilização osteoarticular que determina um número impressionante de informações proprioceptivas. Esse sistema promove as percepções (propriocepção), consciente e inconsciente das diferentes partes do corpo.

Necessidades especiais visuais

Os deficientes visuais constituem-se como o grupo que apresenta, talvez, as maiores e mais antigas preocupações, tanto para as ciências como para a filosofia. Filósofos têm teorizado sobre o fato de os olhos possuírem uma relação mística com a alma. A história nos relata sanções relacionadas à perfuração dos olhos como punição por crimes sexuais e sociais. Outros textos mostram os cegos reverenciados como adivinhos ou considerados como transmissores verbais das tradições e dos valores culturais.

Até os dias atuais as atitudes para com os indivíduos cegos são diferenciadas e se revestem de benevolência social ou veneração pelo trabalho que realizam. Superstições e atitudes carregadas emocionalmente com freqüência estão associadas à cegueira. O público em geral considera a cegueira como a perda física mais limitadora que existe (Amiralian, 1997).

A característica específica da cegueira é a qualidade de apreensão do mundo externo. As pessoas cegas precisam utilizar-se de meios não usuais para estabelecerem relações com o mundo dos objetos, das pessoas e das coisas que as cercam: essa condição imposta pela ausência de visão se traduz em um peculiar processo perceptivo, que se reflete na estruturação cognitiva e na organização e constituição do sujeito psicológico (Amiralian, 1997).

O que não se pode desconhecer é que o deficiente visual tem uma dialética diferente, por causa do conteúdo que não é visual e da sua organização cuja especificidade é a de referir-se ao tátil, auditivo, olfativo, cinestésico. Dispor de todos os órgãos dos sentidos é diferente de contar com a ausência de um deles: muda o modo próprio de estar no mundo e de se relacionar (Mansini, 1994).

O desenvolvimento humano se dá por meio de vivências e experiências que, no caso da criança cega, são mais restritos e limitados, o que pode acarretar uma lentidão e até mesmo dificuldades em seu processo de maturação. As crianças cegas congênitas constroem a imagem do mundo pelo uso efetivo dos outros sentidos, daí a necessidade de estimulação dessas estruturas sensoriais para compensar a ausência da visão e diminuir a defasagem psicomotora.

Implicações da equoterapia para o cego

• Estimulação sensorial

Segundo Figueira (1996), o profissional, que tem como objetivo promover o desenvolvimento da criança cega, deve conhecer bem suas capacidades e seus potenciais, para explorá-los no decorrer do processo terapêutico. A criança cega não é capaz de se orientar, nem realizar adaptações em seu sistema muscular de acordo com as variações de posição, distância, tamanho e forma. Pela ausência da visão, as combinações autocorretivas de reforço mútuo entre a visão e as respostas motoras ficam muito comprometidas.

Devemos lembrar que não existe substituição de um sentido por outro. O conjunto sensorial funciona em sinergismo, em que nenhum dos sentidos realiza suas funções de forma isolada, eles se retroalimentam. Nesse sentido todo o processo terapêutico deve promover uma ampla estimulação dos outros sentidos em conjunto.

Nesse caso a equoterapia cumpre o seu papel terapêutico/educativo e de estimulação global do praticante cego, pois como diz Botelho (1999, p. 149):

... a cada passo do cavalo o centro de gravidade do praticante é defletido da linha média, estimulando as reações de equilíbrio, que proporcionam a restauração do centro de gravidade dentro da base de sustentação. O sistema vestibular é assim repetidamente solicitado, estimulando continuamente suas conexões com o cerebelo, tálamo, córtex cerebral, medula espinhal e nervos periféricos. Por meio de inúmeras repetições do movimento do andar do cavalo, o mecanismo dos reflexos posturais e a noção de posição dos vários segmentos corporais no espaço são reeducados durante 30 minutos da sessão de equoterapia.

Levando-se em consideração o local onde são realizadas as sessões de equoterapia, que por suas características naturais apresenta diversos estímulos auditivos e olfativos, além dos de comunicação que são proporcionados pela equipe multidisciplinar que realiza a intervenção, podemos considerar como um recurso que pode oferecer ao cego uma estimulação global e motivadora. Como diz Heimers (1970, p. 35):

Os estímulos que vem de fora constituem um fator importante na vida dos videntes, e os cegos os desconhecem, por isto, devemos manter sempre alertas esses estímulos, devemos despertar o interesse da criança cega para que ela não caia no marasmo. O movimento ao ar livre, na natureza, traz consigo um mundo de ensinamentos e experiências.

• Reeducação postural

A coordenação e o ritmo de uma criança cega ao andar podem ser mais desordenados do que os de uma criança com visão. Se a criança cega não for encorajada a conduzir seu corpo de maneira adequada, pode ser que mantenha uma grande distância entre as pernas ao ficar ereta e desenvolva uma má postura e uma forma de andar incorreta. Um problema comum é o da criança que deixa cair a cabeça sobre o peito. A criança cega deve ser instada a manter a cabeça erguida, perpendicular em relação ao chão (Oliveira, 1996).

A equoterapia vai ajudar na correção da postura, pois como diz Herzog (1989, p. 17):

... manter o equilíbrio significa, a principio, reconhecer uma atitude corporal pelo senso postural, depois reajustar sua posição. O cavaleiro deve coordenar seus próprios movimentos e dissociar os gestos dos braços e pernas. Ele é, portanto, conduzido a uma melhor compreensão de seu esquema corporal. Ele adquire, desde um primeiro contato, o domínio corporal, aprendizagem que, num primeiro momento, vai ser favorecida pelo terapeuta. É um trabalho que demanda concentração.

Sabemos que o aprendizado das técnicas eqüestres exige que o cavaleiro mantenha uma colocação correta na sela, ou seja, manter o tempo todo uma postura adequada, o tronco ereto e a cabeça perpendicular em relação ao solo, além de ter que dissociar os movimentos de braços e pernas, para que acompanhe os movimentos tridimensionais do dorso do cavalo e possa realizar o manejo correto das rédeas.

Durante as sessões de equoterapia, essas ações são desenvolvidas e estimuladas pelos terapeutas, fazendo com que o praticante realize o aprendizado correto da postura a cavalo. E como essas estimulações ocorrem por um período de 30 minutos, o número de informações proprioceptivas que provêm das regiões articulares, musculares, periarticulares e tendinosas são bastante diferentes das fornecidas quando estamos na posição de pé. As informações proprioceptivas dadas pelo passo do cavalo permitem a criação de esquemas motores novos: trata-se da reeducação neuromuscular.

• Relação com o outro

Paschoal (citado por Araujo, 1997), ao falar de educação psicomotora para crianças cegas, diz que é necessário permitir que a criança cega, desde pequena, se utilize do contato físico na relação corpo a corpo. Num trabalho psicomotor é necessário que o adulto permita essa entrega de si, para que ela possa sentir que o outro se movimenta, gesticula e que ela também pode se movimentar, gesticular, se soltar, etc. O autor diz que há nesse ato uma tomada de consciência por parte da criança do potencial motriz do seu corpo, de uma forma muito natural, livre, na brincadeira, no jogo, no momento em que ela está mais aberta, pois está mais absorta.

A equoterapia, como uma atividade que envolve a psicomotricidade, pode proporcionar à criança cega esse contato físico e de uma forma muito mais ampla, pois, desde o momento que o praticante cego chega ao local das sessões, ele é recebido pelos terapeutas e auxiliares e, enquanto aguarda sua vez, participa de jogos e brincadeiras, que permitem essa relação corpo a corpo. Quando está montado, esse contato físico passa a ser com o cavalo, que ele explora por meio dos outros sentidos, enquanto realiza os exercícios programados e o cavalo está ao passo.

Os diversos movimentos que ocorrem numa sessão de equoterapia além de contribuírem para essa tomada de consciência de seu potencial motriz, ocorrem, geralmente, de uma forma bastante prazerosa.

• Estimulação para o desenvolvimento tátil

Grifin e Gerber (1996, p. 15), em seu artigo Desenvolvimento tátil e suas Implicações na Educação de Crianças Cegas, ao se referirem ao desenvolvimento tátil de crianças cegas dizem que:

... a modalidade tátil é de ampla confiabilidade. Vai além do mero sentido do tato: inclui também a percepção e a interpretação por meio da exploração sensorial. Esta modalidade fornece informações a respeito do ambiente, menos refinadas que as fornecidas pela visão. As informações obtidas por meio do tato têm de ser adquiridas sistematicamente, e reguladas de acordo com o desenvolvimento, para que os estímulos ambientais sejam significativos. [...] A ausência da modalidade visual exige experiências alternativas de desenvolvimento, a fim de cultivar a inteligência e promover capacidades sócio-adaptativas. O ponto central desses esforços é a exploração do pleno desenvolvimento tátil.

O programa por nós desenvolvido e aplicado no atendimento equoterápico de crianças cegas privilegiou a estimulação tátil, pois desde o primeiro momento em que chegam ao local de realização das sessões, as crianças são estimuladas a efetuar o reconhecimento da área, o que chamamos de ambientação, e é por meio da experiência tátil e dos outros sentidos que a realizam.

Em seu primeiro contato com o animal, a criança, por meio da modalidade tátil poderá perceber sua forma, a textura do seu pelo, o calor de seu corpo, seus movimentos respiratórios, as diferenças dos pelos da crina e da cola, e aos poucos o reconhecimento dos equipamentos de montaria que serão utilizados durante as sessões. Esse procedimento é repetido em todas as sessões, para que a criança cega adquira o reconhecimento da estrutura e da relação das partes com o todo e também a consciência de qualidade tátil, importante para o seu desenvolvimento.

• Reforço e motivação

A esse respeito Figueira (1996, p. 8), diz o seguinte:

... em cada etapa do desenvolvimento uma capacidade emerge e é trabalhada pelo organismo, passando a ser integrada em uma escala crescente de desenvolvimento. Para que isto ocorra a criança necessita ser encorajada e reforçada pelos pais. Se não há reforço e motivação esta criança será invadida por uma sensação de insegurança e medo.

O desenvolvimento psicomotor se realiza pela combinação do prazer que a criança sente ao ter experimentado algo novo (uma aquisição motora e/ou sensorial) e o reforço familiar à aquisição feita.

Na equoterapia, os praticantes são encorajados e reforçados pelos membros da equipe que estão realizando a intervenção e, a todo momento, a cada ação realizada, a cada insegurança vencida, são estimulados a continuarem. Todo esse trabalho é realizado de forma a tornar o tempo em que permanecem montados o mais agradável e prazeroso possível, além de aproveitar todos os momentos e situações para o desenvolvimento dos outros sentidos.

• Aquisição ou reaquisição de esquemas motores e/ou mentais

As crianças cegas devem ter a oportunidade de vivenciar experiências totais de forma inteligente, ampla e generalizada que não somente compreendam conhecimento verbal e tátil dos objetos, mas também sua posição no espaço e no tempo, suas relações com a criança e com outros seres e objetos. Dessa forma ela vai se organizando, conhecendo e sentindo-se segura e confiante para se lançar em novas experiências (Figueira, 1996).

Nesse contexto o cavalo é um instrumento cinesioterapêutico, um ser vivente, dócil, que responde aos afetos que recebe, que tem vontade própria e que precisa ser dominado, para que o cavaleiro realize o manejo que desejar. Para Cittério (1999, p. 35): “A equoterapia poderá ser colocada num importante processo de aquisição ou reaquisição de esquemas motores e/ou mentais, no qual o indivíduo se tornará protagonista do momento reabilitador, um indivíduo ativo porque motivado pela relação com um outro ser vivente.”

Herzog (1989) relata que o cavalo pode ser um instrumento de acesso entre a realidade do praticante e a do terapeuta, funcionando ainda como intermediário entre o mundo intrapsíquico do praticante e o mundo exterior.

Assim, o cavalo proporciona ao praticante a criação de uma nova imagem corporal, devido às informações recebidas da montaria e à relação com a equipe, o que favorece a estruturação do eu. O deslocamento a cavalo, tendo pontos de referência (no nosso caso estímulos sonoros), exige a representação mental do gesto e do deslocamento.

O praticante deve respeitar o animal, fazendo com que ele compreenda aquilo que ele, praticante, decidiu sozinho. Isso faz com que o praticante que não fazia isso na vida cotidiana, o faça com o cavalo, resultando em uma revolução própria.

• Estimulação motora

Figueira (1996), quando reporta à assistência fisioterápica à criança cega congênita, reafirma que a melhor ajuda que a fisioterapia pode prestar é por meio da estimulação motora. A criança deve aprender a se movimentar, a conhecer seu corpo e ter prazer em se deslocar para descobrir o mundo que a cerca e dominar o espaço. A passividade impressa pela ausência da visão pode implicar alterações nas seguintes áreas: tônus muscular, postura, coordenação motora e psíquica, equilíbrio, orientação espacial, cinestésica e social.

O recurso mais apropriado é a cinesioterapia por meio de exercícios passivos, ativo-assistidos e ativo-livres, de acordo com o propósito em questão. A cinesioterapia, ou seja, terapêutica pelo movimento pode ser realizada pela estimulação auditiva, olfativa, gustativa, tátil, proprioceptiva e cinestésica, visando a desenvolver a consciência corporal, a coordenação motora, o equilíbrio, a correção postural, a marcha e a orientação no espaço.

A respeito dos ganhos em nível neuromotor, da equoterapia, Cittério (1992) relata que estes se evidenciam sobre o alinhamento corporal (cabeça, tronco, quadril), controle das simetrias globais, equilíbrio estático e dinâmico e que em nível psicológico percebe-se a melhora na capacidade de orientação e de organização espacial e também na capacidade executiva.

Na equoterapia o cavalo atua como agente cinesioterapêutico, facilitador do processo ensino–aprendizagem e como agente de inserção e reinserção social. Cittério (1999) aborda o assunto, afirmando que não devemos nos esquecer da hipótese comportamentalista na qual se baseia a equoterapia, método considerado como condicionamento motor impresso no ritmo e no comando, também chamado de “pedagogia em movimento” ou ainda “ciência do movimento”, e outros autores o tratam como “sistema de vida”.

 

Conclusão

Nossa pesquisa, o estudo de diferentes autores sobre cegueira e equoterapia propriamente ditas, proporcionou-nos importantes reflexões sobre esse recurso terapêutico, além da identificação de especificidades no atendimento à criança cega. O trabalho se deu fundamentado em princípios e na técnica da equoterapia desenvolvida e adaptada de acordo com nossa vivência durante nossa pesquisa e segundo a necessidade e potencialidade de cada praticante, objetivando seu desenvolvimento como um ser integral.

Além da estimulação dos outros sentidos, os resultados de nossa pesquisa apontam para uma melhora do relacionamento social do grupo, evidenciando os aspectos da comunicação, da atenção e das regras sociais, tanto no ambiente da equoterapia quanto fora dele.

Em relação aos efeitos da equoterapia sobre a psicomotricidade, ficou evidenciado uma melhora do grupo quanto ao equilíbrio e à postura do tronco ereto, o que implica também uma melhora do sentido de segurança. Os ganhos obtidos no aspecto do equilíbrio são muito importantes para o cego, pois a mobilidade do indivíduo que não possui a visão depende em muito desse sentido, cujo desenvolvimento necessita ser estimulado desde o nascimento.

Portanto, este estudo exploratório demonstra que a equoterapia é um recurso que contribui para a melhora de aspectos psicomotores e sociais de indivíduos com cegueira e, conseqüentemente, melhora sua qualidade de vida, respeitando-se o potencial e a fase de desenvolvimento em que se encontra o indivíduo.

Outra observação foi da importância do seguimento de um programa de atendimento adequado à cegueira, uma vez que requer técnicas de intervenção diferenciadas das aplicadas às outras necessidades especiais.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Av. Mato Grosso, nº 759 - Centro. CEP: 79002-231 - Campo Grande, MS
E-mail: sgrubits@uol.com.br

Encaminhado em 04/11/04
Revisado em 22/11/04
Aceito em 08/12/04

 

 

Sobre os autores:

1 Carlos Henrique Silva: Mestre em Psicologia, Professor de Psicologia Experimental e Psicofísica, Membro da equipe do Programa de Equoterapia e do Núcleo de Estudos e Pesquisa Interdisciplinar em Trânsito e Transporte (NEPITT) da Universidade Católica Dom Bosco.
2 Sonia Grubits: PhD em Semiótica pela Paris 8 (Sourbonne), Doutora em Saúde Mental pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP, Coordenadora do Programa de Mestrado em Psicologia da UCDB.